“Bocage, que tinha domínio das regras da poesia árcade,
também tinha um temperamento inquieto”
BOCAGE:
Em 1791, Bocage publica o primeiro tomo das Rimas, e é com
este trabalho que o poeta consegue se firmar em sua reputação poética, enquanto
suas composições satíricas e eróticas entram para demolir com golpes violentos
a moral, a política e a religião de sua época. Com esta veia crítica Bocage
acaba por ser expulso da Nova Arcádia e, três anos mais tarde, em 1797, é preso
e processado por ter feito irreverências antimonárquicas e anticatólicas, também
sendo acusado de conspiração contra a segurança do Estado e pela autoria de
papéis ímpios, com conteúdo crítico e sedicioso. É então recolhido à cadeia do
Limoeiro, e depois, por influência de amigos, e após muitas súplicas e movimentos
de retratações, é transferido para o mosteiro de São Bento e deste para o
mosteiro dos Oratorianos. Então é retirada a acusação contra o Estado, mantendo
a que ele fez contra a religião, de teor menos grave como delito.
Em 1799 Bocage volta então à liberdade, e é neste momento que
ele se entrega ao álcool, ao tabaco e ao trabalho, e é quando publica seu segundo
tomo de Rimas. Porém, os excessos de uma vida dissipada cobram a fatura com um
aneurisma que acomete o poeta, no que ele vai parar no leito. Em 1804, é
publicado o terceiro volume de Rimas e, um ano mais tarde, em 21 de dezembro de
1805, aos 40 anos, Bocage morre em Lisboa.
A poesia de Bocage pode ser bem definida em três fases, que
são a da mentira arcádica, a da confissão amorosa escrita sob as regras árcades
e a dos poemas curtos, de sofrimento e morte, com tais fronteiras sendo porosas
e não estanques. Bocage, quando se analisa a sua poesia, era um poeta que está à
frente dos escritores do seu tempo, embora também seja um excelente representante
do Arcadismo, com seu pleno domínio lírico e de temática amorosa de sua poesia
e poética.
O belo, na poesia árcade, vem como uma metáfora depurada, sem
excessos, uma linguagem convencional, harmoniosa, tudo atua como se o natural
viesse com o filtro da razão, constituindo a base do ideário neoclássico do
século XVIII. Pois aqui o trabalho do poeta é de estabelecer, em cânones
harmoniosos, simples e diretos, a dinâmica da vida, no que a criação individual
torna-se coletiva através das leis convencionais de criação artística. Então
temos a poesia árcade como uma poesia racional que tem como temas a vida
simples, bucólica, com um desprezo pelo luxo, e que tem poemas que podem ser
modos de louvar as origens espontâneas de um mundo primitivo, tudo isso
idealizado por uma natureza e um tempo imaginários.
Bocage, que tinha domínio das regras da poesia árcade, também
tinha um temperamento inquieto e que era insatisfeito, no que Bocage conseguiu,
com esta inadaptação, um possível afastamento dos cânones árcades quando quis,
sendo um dos melhores exemplos deste período histórico de poeta que estava na
fronteira entre um cânone e algo novo, ele era a figura representativa desta
crise, que ia para além das simples questões estéticas do gosto e do estilo, tendo
sim inserção no próprio teor do modelo de vida literária e dos preceitos
aceitos na poesia árcade e no mundo iluminista.
Em sua poesia, Bocage, como homem e poeta entre fronteiras,
está entre seus cenários bucólicos e camponeses, de pastores apaixonados, seres
alienados da realidade e do tempo, imersos no mundo mitológico de uma
imaginária Grécia pastoril, e tendo em paralelo uma atividade poética que ia
contra o cânone árcade, que era, por sua vez, a expressão de uma nova poesia
entranhada nas emoções, com reflexos pessoais e subjetivos de amor
desventurado, de homem torturado pela vida e pelo medo da morte.
POEMAS:
CONFORMANDO-SE COM OS
REVESES DA SORTE: O
poema levanta a ideia mestra de destino, este ser completo, inexorável, e que
tem na palavra cruel um adjetivo ao abuso de suas faculdades, no que o poeta,
atormentado, nos dá os versos, que é o seu sopro: “Se o Destino cruel me não
consente/Que o ferro nu brandindo irado, e forte,/Lá nos horrendos campos de
Mavorte/De louros imortais guarneça a frente:”. A batalha está posta, brande o
ferro, o fio da espada: “Que o meu nome apesar da negra morte/Fique em padrões
e estátuas permanente:/Se as suas ímpias leis inexoráveis/Não querem que os
mortais em alto verso/Contem de mim façanhas memoráveis:/Submisso à má ventura,
ao fado adverso,/Ao menos por desgraças lamentáveis/Terei perpétua fama no
universo.”. A luta clássica entre o infortúnio e a glória, num mesmo homem, ou
melhor, poeta, e que na certeza dos píncaros da fama universal, enfrenta o leão
cruel do destino, laços de aço da dor e esperança sublime de sua poesia em alta
paragem na montanha do futuro, que todo poeta o faça em vida, façanhas vivas
são melhores que gemidos de um ser da penumbra.
VENDO-SE ACOMETIDO DE
GRAVE ENFERMIDADE: A
doença aparece como tema poético, e temos aqui o instinto de decadência bem
desenvolvido por quem levou parte de sua vida como um dissipado: “Pouco a pouco
a letífera Doença/Dirige para mim trêmulos passos;” (..) “Virá pronunciar final
sentença,/Em meu rosto cravando os olhos baços,/Virá romper-me à vida os tênues
laços/A foice, contra a qual não há defensa.” (...) “Espero que primeiro que o
teu corte/Me acabe viva dor dos meus delitos.”. Fala ou declamação de um preso,
e que na liberdade se espalhou em boêmia, e a face ou foice da morte lhe acaba
as dores de seu delito.
CONTRA O DESPOTISMO: Despotismo, o inexorável, o poema
contra tal força se debate, contra o ateísmo do poder: “Sanhudo, inexorável
Despotismo,/Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,/Que em mil quadros
horríficos te enlevas,/Obra da Iniquidade, e do Ateísmo:/Assanhas o danado
Fanatismo/Porque te escore o trono onde te enlevas;/Porque o sol da Verdade
envolva em trevas,/E sepulte a Razão num denso abismo:”. A luta da razão
sepultada, e o fanatismo que evolve a verdade nas trevas, iniquidade que o
poeta enfrenta, davi e golias, e que se salva na independência de seu coração
poético: “Mas, apesar da bárbara insolência,/Reinas só no ext`rior, não
tiranizas/Do livre coração a independência.”. O governo despótico é externo, a
liberdade ainda está preservada nos recantos do coração e seus versos.
À NOVA ARCÁDIA: O poema anuncia o novo, e de como
este enfrenta os cânones vigentes, a sátira é uma destas armas novas, no que o
poeta nos dá o seu relato: “Oh triste malfadada Academia!/O vate Elmano em
sátiras se espraia;”. No que o poema segue: “Apolo exulta, o povo te assobia;/A
glória tua em convulsões desmaia;”. E a reação da velha arcádia contra a nova
não demora, o satírico e o declamador aparecem aqui na luta do progresso,
sempre alvíssaras a quem luta, pois o cânone aqui é flagelado pelos novos
poetas: “Ao satírico audaz põe duro freio,/Pune o declamador, que te flagela;”.
POEMAS:
CONFORMANDO-SE COM OS
REVESES DA SORTE
Se o Destino cruel me não consente
Que o ferro nu brandindo irado, e forte,
Lá nos horrendos campos de Mavorte
De louros imortais guarneça a frente:
Se proíbe que em sólio refulgente
Faça os povos felices, de tal sorte
Que o meu nome apesar da negra morte
Fique em padrões e estátuas permanente:
Se as suas ímpias leis inexoráveis
Não querem que os mortais em alto verso
Contem de mim façanhas memoráveis:
Submisso à má ventura, ao fado adverso,
Ao menos por desgraças lamentáveis
Terei perpétua fama no universo.
VENDO-SE ACOMETIDO DE
GRAVE ENFERMIDADE
Pouco a pouco a letífera Doença
Dirige para mim trêmulos passos;
Eis seus caídos, macilentos braços,
Eis a sua terrífica presença:
Virá pronunciar final sentença,
Em meu rosto cravando os olhos baços,
Virá romper-me à vida os tênues laços
A foice, contra a qual não há defensa.
Oh! Vem, deidade horrenda, irmã da Morte,
Vem, que esta alma avezada a mil conflitos,
Não se assombra do teu, bem que mais forte:
Mas ah! Mandando ao céu meus ais contritos,
Espero que primeiro que o teu corte
Me acabe viva dor dos meus delitos.
CONTRA O DESPOTISMO
Sanhudo, inexorável Despotismo,
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade, e do Ateísmo:
Assanhas o danado Fanatismo
Porque te escore o trono onde te enlevas;
Porque o sol da Verdade envolva em trevas,
E sepulte a Razão num denso abismo:
Da sagrada Virtude o colo pisas,
E aos satélites vis da prepotência
De crimes infernais o plano gizas:
Mas, apesar da bárbara insolência,
Reinas só no ext`rior, não tiranizas
Do livre coração a independência.
À NOVA ARCÁDIA
Oh triste malfadada Academia!
O vate Elmano em sátiras se espraia;
Fervem correios ao loquaz Talaia,
Que a todos teu descrédito anuncia:
Apolo exulta, o povo te assobia;
A glória tua em convulsões desmaia;
Ah! primeiro que a pobre em terra caia,
Corte-se o voo da fatal porfia:
Ao satírico audaz põe duro freio,
Pune o declamador, que te flagela;
Dá-lhe assento outra vez no magro seio:
Bem como a quem profana uma donzela,
Que em pena do afrontoso estupro feio
Fazem próvidas leis casar com ela.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/32778/18/bocage-ij-o-delirio-amoroso-e-outros-poemas-ij-parte-ii
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