Roberto Piva, que muitas vezes passa por poeta maldito, se destacou no cenário da poesia paulistana ao publicar sua principal obra Paranoia em 1963. Piva teve influência, sobretudo, do surrealismo e da geração beat americana. Destacando-se que Piva foi, junto com Cláudio Willer e Sérgio Lima, um dos únicos poetas brasileiros a ser resenhado pela revista francesa La Bréche - Action Surrealisté, dirigida por um dos magos do Surrealismo, André Breton.
Acabei de ler o livro Paranoia de Roberto Piva. Devorei rapidamente suas páginas como um louco feroz que se ensandeceu na geração beat. O poeta faz um percurso por São Paulo, e suas influências vão de Garcia Lorca a Jorge de Lima. Esse caldo poético resulta num apanhado de imagens originalíssimas que não devem nada à beat generation americana.
Por muito tempo presente apenas no meio culto dos poetas, a poesia de Piva reaparece e está sendo revitalizada. O valor de sua escrita está finalmente saindo do submundo dos poetas e vindo ao público com justiça, mesmo que tardiamente. Aliás, o atraso no reconhecimento de alguns poetas é um mal brasileiro.
Para mim, se destacam no livro Paranoia, quatro poemas: "Praça da República dos meus Sonhos"; "Jorge de Lima, panfletário do Caos"; "Os anjos de Sodoma" e "Poema Porrada". A obra de Piva é bem intensa. Mas, a geração beat brasileira foi ofuscada pela geração conservadora de 45 e pelos neoconcretos. Espremida entre essas duas correntes, os beats brasileiros passaram despercebidos do grande público, que hoje pode ter acesso à obra de Piva e de seus amigos “beats” com mais facilidade, sem falar na publicação da obra de Piva pela editora Globo, que relançou o poeta e lhe tirou da nuvem tóxica da obscuridade. Parabéns aos editores que fizeram isso, assim poderemos sair de poucas opções de leitura na poesia de língua portuguesa que, cada vez mais, se excede nas citações de Drummond e Pessoa, e se esquece de milhares de outros que honraram a nossa língua com tanta maestria quanto eles. Faça-se a justiça e evite-se os excessos reverentes que deturpam a grande criatividade de nossos poetas.
Voltando-me à qualidade da escrita formidavelmente caótica de Piva, no poema “Praça da República dos meus Sonhos”, temos os nomes ilustres de Álvares de Azevedo e de Garcia Lorca citados logo de saída, tudo num clima urbanoide de ritmo narcotizado. Esse poema é um fruto proibido do pecado alucinógeno, donde se tem o Delirium Tremens de um alcoólatra poeta, nascido do caos de seus versos para o mundo que lhe cerca, e logo adiante, trombando com pederastas e Dom Casmurro. Um papo cabeça genial em forma poética invade a minha mente, em que putas logo passam e o poeta se depara com o jovem prodígio Rimbaud, poema que se encerra numa sabedoria debruçada numa porta santa.
O segundo poema que eu destaco é “Jorge de Lima, panfletário do Caos”, em que Piva demonstra seu entendimento sobre o poeta, com a palavra azul que cintila em Piva dando o tom do poema, decifrando numa constelação de cinza o poeta Jorge de Lima, despedaçando vagalumes contra os ninhos da Eternidade, chamando o poeta de professor do Caos; aliás, uma virtude também presente em Piva que, em relação ao mestre Jorge de Lima, Piva se comporta como o seu aluno do Caos.
O terceiro poema que eu cito é “Os anjos de Sodoma”, um poema de anáfora, recurso exaustivamente usado por quase todos os poetas alguma vez na vida, e que nesse poema de Piva é usado discretamente, evocando o mantra do título do poema que é um voo de anjos até o céu que têm suas asas destruídas pelo fogo. Algo meio como Ícaro? Certamente. É um poema curto, e que se funda na mística dos anjos, e que se encerra com o arrependimento de Deus, imagem poética perfeita que fecha a ideia de Piva para o poema.
Finalmente, encerro a minha análise com o curioso “Poema Porrada”. Seria algo semelhante ao “Poema em Linha Reta” de Fernando Pessoa? Pode ser. Fui ver e ler, e então percebi que era algo tão forte, intenso e criativo quanto o poema de Pessoa (que é o meu favorito do poeta junto com A Tabacaria). Pois bem, Piva “desce a lenha” nesse poema, honrando o título que lhe deu. É uma porrada mesmo, ele desfere golpes impiedosos com versos que não devem nada a nenhum gênio da raça, citando Oscar Wilde e Modigliani, com o universo sendo cuspido por um cú sangrento de um Deus-Cadela, imagem escatológica que pode ser uma boa alegoria para a criação do mundo. Deus talvez tenha nos regurgitado em seu sonho megalomaníaco (licença poética de minha autoria). Piva delira e encerra o poema com uma porrada monumental, realizando o seu desejo de destruição e fuga com a loucura como um “espelho na manhã de pássaros sem Fôlego”. Genial!
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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