“seria menos grave para a grandiosidade francesa admitir que Descartes veio à Holanda experimentar maconha”
Descartes estava distante de uma França governada pelo
cardeal-ditador Richelieu, onde a liberdade intelectual estava comprometida,
desfrutando com seus amigos na Holanda de sua liberdade. No livro de Pagès
temos novamente a posição de Tobie sobre o filósofo.
Na descrição de Pagès, temos : “Um ar de liberdade com
algumas nuvens de fumaça ... Que efeito fazia sobre Descartes e seus amigos,
esse “tabaco”, que pronunciavam “tabak”, como se usava naquele século? Tobie, o
expatriado, diz que os colocava em um estado “estupefaciente””. No parágrafo
seguinte, Pagès especula : “Não vejo ao que ele faz alusão. Procuro e me lembro
de uma passagem da “Primeira Meditação” : “Meu espanto é tal que é quase capaz
de me persuadir de que estou dormindo.”
Aqui coloco o trecho em que o autor Pagès refaz o percurso de
Descartes na sua descoberta clássica do cogito : “Noto que essas Meditações
Metafísicas, escritas em 1641, contam uma curiosa história. Um homem decide
cortar progressivamente todo contato com a realidade exterior ao ponto de
duvidar da existência das coisas. A obscuridade invade progressivamente sua
consciência. Depois, de repente, um flash, uma iluminação, uma deliciosa
certeza : eu existo. A revelação de um ponto fixo.”
Segue Pagès : “Lembro que meus mestres ensinaram que
Descartes era o “filósofo da consciência” mas sem indicar com precisão qual.
Consciência modificada ou consciência vigília? A do cogito é muito agitada.
É uma cena de teatro, com efeitos de ilusão, e mesmo
sedutores (o Gênio Esperto enganador) onde o herói surge da sombra como uma
faísca. Não precisa esperar Hegel e sua fenomenologia. Em Descartes a
consciência é um drama, dividido em episódios. Seis atos, seis meditações ...
Essa consciência tem sua história, sua aventura, suas “sombras” e suas
iluminações.”
Pagès refaz a cena do quarto, em que Descartes fez as suas
meditações : “Sei que avanço em terreno inimigo. Estupefação, iluminação ...
Ainda estamos no campo do racional? Mas não posso deixar de pensar na célebre
cena do quarto aquecido. Descartes conta esta história no Discurso, no início
da segunda parte, porém muito brevemente : “Eu estava então na Alemanha ...
Permaneci o dia todo trancado sozinho num quarto aquecido, onde tive todo o
tempo de me entreter com meus pensamentos”.
Ora, esse dia de clausura não foi nada de sossegado, como
permite supor este trecho. Uma tempestade! Um transe místico! É o que na
realidade aconteceu. Sabemos disso por uma narrativa pormenorizada que
Descartes faz desse dia numa obra da sua juventude intitulada Olympica, hoje
perdida, mas que conhecemos graças a Baillet e Leibniz, que a leram.”
Pagès segue este relato impressionante desta iluminação de
Descartes : “Que noite a de 10 de novembro de 1619! Nosso fidalgo alugou, nos
arredores de Ulm, um “poêle”, quer dizer um quarto aquecido “à moda alemã”. Um
fogão de faiança alimentado do exterior por um cômodo intermediário assegura um
calor constante, sem fumaça, nem corrente de ar, e sem que o hóspede seja
perturbado pelos criados carregados de lenha.
Naquela noite – pois a aventura é noturna - , Descartes teve
visões, sonhos, alucinações : “Ele se cansou de tal forma que o fogo subiu-lhe
ao cérebro, e ele caiu numa espécie de entusiasmo que afetou sua mente abatida
e o colocou em estado de receber as impressões dos sonhos e das visões”, conta
Baillet.”
Na narração de Pagès, foi nesta tempestade cerebral ou mental
que Descartes encontrou a sua nova filosofia, a sua ciência admirável, aqui tal
espírito cartesiano é praticamente um daimon, pode ser um djinn, um espírito da
floresta alemã, o filósofo neotomista Jacques Maritain chamava esta noite de
Descartes de “Pentecostes da razão”. Leibniz, contudo, não fez cópias deste
Olympica de Descartes, pois uma obra de razão originada de um evento
completamente irracional talvez lhe incomodasse.
Pagès então conhece uma filósofa belga, de nome Bonnie S.,
amiga de Tobie, e vem a conversa sobre Descartes e sua descoberta meditativa,
depois que Pagès expôs seus argumentos, temos o seguinte : “Bonnie escutava
fumando um cigarro; Tobie, fechando os olhos, querendo me fazer acreditar que
dormia. O que não era verdade, pois me interrompeu quando evoquei o “estupor”
descrito nas Meditações.
_ Sabe que, ao duvidar da existência dos homens que ele vê
passando na rua e se perguntar se não se tratam de manequins de chapéu,
Descartes tem o mesmo raciocínio dos psicóticos? Evitei a digressão e continuei
minha exposição. Quando expliquei que Descartes tinha provavelmente fumado
tabaco mas que, quanto a maconha, ainda era preciso encontrar provas, os olhos
de Tobie piscaram com um clarão mefistofélico : _ Você está perdido! Caiu na
ratoeira! À partir do momento em que admite que Descartes fumou tabaco, está
admitindo que ele fumou maconha!”
Pagès segue então a obsessão de Tobie, e nos narra : “Tirou
do bolso um livro intitulado L`Embarras des Richesses, abriu-o numa página já
marcada e leu o seguinte : “O costume que tinham os cervejeiros de adicionar
aos seus produtos substâncias alucinógenas ou suscetíveis de provocar transes,
tais como as sementes de memendro preto, de beladona a maçãs espinhosas,
remonta pelo menos ao fim da Idade Média ...
Roessingh, o historiador da indústria holandesa do tabaco,
não afasta a possibilidade de que uma parte da mercadoria poderia ser
“temperada” com Cannabis Sativa, bem conhecida dos holandeses, que tinham
viajado ao Oriente e à Índia.” Esse trecho foi extraído de um livro respeitado
e sério, concluiu mostrando-me a capa do livro de Simon Schama.”
Pagès segue ao final de sua narrativa, nas palavras da
filósofa belga, que lhe diz : “Gosto de Descartes, pois escrevia só
ocasionalmente. Vocês censuram sua obra por ser fragmentária. De fato, ele não
perdeu seu tempo construindo um sistema e estava com razão. A posteridade se
encarregou disso.
Compreendo sua saída, seu adeus àquela mundanidade parisiense
que engole o intelectual e o transforma em saltimbanco. A liberdade de
pensamento não é somente aquela concedida pelo Estado, mas aquela que você
mesmo toma em relação a si mesmo, a seus mestres, a seus semelhantes.
A partir de um certo nível de notoriedade, não se pensa mais.
O sucesso faz bem ao ego mas prejudica o cérebro. Prestamos serviço pós venda.
O pensamento que precisa de amadurecimento e de solidão é impossível na sua
ilustre balbúrdia. Os intelectuais que se deixam fascinar por Paris devem
abandonar toda e qualquer esperança.”
Então Tobie se dirige a Pagès : “_ No final, ao fazer as
contas, seria menos grave para a grandiosidade francesa admitir que Descartes
veio à Holanda experimentar maconha. Quando se procuram outras razões, é mais
desastroso ainda.”
(FIM)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/descartes-e-a-maconha-final