PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 28 de junho de 2018

OS SONHOS EM BORGES E A SAGA ESPIRITUAL


“tal mundo incrível do sonho também é, por fim, a realidade da alma”

Borges segue em seu Livro dos Sonhos com o famoso poema de Lucrécio, Da Natureza das Coisas, que aqui em seu Livro IV, temos o trecho “Da Natureza dos Sonhos”, e este nos dá uma visão do onírico que é como um tipo de divisão do mundo entre aquela do mundo natural e dos sentidos físicos ordinários, e um mundo paralelo que nos aparece ou se nos desperta quando sonhamos.
É neste sono que se abre uma visão mais sutil, em que os espectros passam com desenvoltura e tudo flui num outro diapasão que nos coloca em contato com um mundo anímico que registra de forma diversa a realidade, esta aqui mais sutil que o que se nos apresenta quando estamos no mundo real ou físico, e que Lucrécio, de forma passional, tenta nos dar como que o panorama em que tal mundo incrível do sonho também é, por fim, a realidade da alma.
E no texto que Borges nos enumera a seguir, que é o de Alfonso o Sábio, Setenário (Lei XVI), temos aqui então a descrição mais conceitual do sonho ou fenômeno onírico, já tendo neste caso a visão lucreciana ganho aqui neste caso contorno menos sobrenatural e um viés do que pode ser influência natural para o sonho.
Temos já aqui com Alfonso o sonho como o resultado da atividade do dia para o que cai no sono e tem visões relacionadas a sua rotina recente, ou ainda como que a visão onírica que se tem em meio a algo governado pela natureza e não por alguma faculdade anímica, como visto por Lucrécio, na sua visão até então espectral e sutil. E mesmo sendo natural, Alfonso nos diz, contudo, que “os homens sonham muitas coisas, de maneira natural e com muita razão”.
Borges segue então um retorno à visão espiritual ou espiritualista do fenômeno onírico, que é o que temos com o texto de Joseph Addison, em seu The Spectator, intitulado Sobre os Sonhos, em que o mesmo teoriza ou tenta fazer a sua concepção dos sonhos, e ainda cita A Religião de um Médico, de Thomas Browne, fazendo confirmar ou uma tentativa disto sobre a emancipação da alma quando sonha.
O mesmo termo que temos, portanto, em Lucrécio, também temos em Addison, numa visão aqui mais conceptual do que poética, mas tendo o mesmo viés de libertação de um mundo ordinário que é a visão pretensamente sobrenatural do sonho.
Em Giovanni Papini, O Trágico Cotidiano, aqui no texto A Última Visita do Cavaleiro Enfermo, temos uma evocação e citação precisa do texto shakespeariano, em que temos nós como que sonhados por algum outro ente, e então tanto a visão do poeta sobre si mesmo é produto de um outro percipiente que “nos sonha”, como também temos a confirmação da visão filosófica que julga a realidade como uma alucinação ou um simulacro.
Neste ínterim, isto me faz recordar ainda, com a devida vênia ao texto borgiano, a loucura em McBeth, o absurdo que é a vida como contada por um louco, com som e fúria, e o sonho sendo esta canção sublime ou o estrondo de um pesadelo em que o demônio é astuto, um gênio da natureza que é sobrenatural, ou apenas, como poderia se dizer numa piada cética, resultado inerte de uma comida gordurosa consumida altas horas da madrugada, ao cair o sono do glutão notívago.
E no texto de Ulrica, talhado pelo Borges que nunca tem nome próprio, mas que atua em sua propriedade textual em paradoxo, temos o autor então diante da saga de Siegfried, ou melhor, um Borges mítico e também histórico diante de uma escrita alegórica que se faz no próprio Borges a recolocação de uma escrita alegórica, uma reverberação da metáfora como refundação desta metáfora.
Aqui com Brunhild, o mito, a saga, uma história germânica tardia dos Nibelungos, é o vão em que Borges cresce como intérprete mais uma vez do que ele diz e do que ele faz outros dizerem, o paradoxo borgiano que nos faz herdar a visão aqui da  morte e do sono como tema ou leitmotiv que se alimenta tanto de uma especulação filosófica, de uma metáfora poética, como de uma saga por excelência, tudo a serviço de uma literatura alegórica que se duplica e se desdobra em si mesma.
E à alegoria do juízo final de Quevedo, ao fim, Borges nos dá a saber mais uma vez do absurdo e do incompreensível, e como que a sua rica descrição nos fornece mais uma vez o pano em que se dará um absurdo espiritual feito de contradição, paradoxo, e ao cabo de desconstrução de um desfile de tipos que faria o  mais absoluto cristão corar frente a tal opróbrio.
Com as descrições de Quevedo, temos um autor, pela via borgiana alegórica, fazendo apontamentos impiedosos, e que na literatura borgiana se tem mais ainda grave quando a alma do absurdo reina como motivo literário quando demonstra a verdade religiosa como o flerte com o impossível ou o impensável. O texto borgiano atua pelo absurdo como reificação de seu ímpeto alegórico, e nada é mais extremo como alegoria que a visão espiritual escatológica, ou o afamado dia do juízo final, aqui como sonho.
Borges nos dá exemplos de avarentos, poetas, filósofos, e demais figuras que desafiam o bom senso do céu e que ao fim temos, então, um Judas, um Luthero e Mafoma, igualmente contraditos e condenados, todos num juízo final que nos reafirma o absurdo da condição pecadora como incontornável. E o sonho é aqui crer que tal se dá na verdade religiosa sem associar este sonho último com o delírio ou com o próprio impossível se dando ares de mundo coerente com uma certeza espiritual, o que neste contexto de Quevedo e de Borges é uma inversão que vai dar no puro sonho que se desvanece como tal, apenas um sonho.
E a presença demoníaca no texto de Quevedo (Borges) nos leva a sua atuação como um tipo de juiz das falhas, e todo personagem que pretende ser salvo acaba por ter sua vida pregressa escrutinada por todos os lados, e uma vez já sabendo da vida de cada um, seja este o que for, o diabo o condena com algo que lhe escapara antes de reivindicar tal condição de salvação da própria alma, uma vez que aqui no texto “O Sonho do Juízo Final” temos uma faculdade diabólica que redunda no fracasso humano, seja no seu plano de salvação espiritual como de pretensa idoneidade moral.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/39240/17/os-sonhos-em-borges-e-a-saga-espiritural





quarta-feira, 27 de junho de 2018

DISMALAND


“jazzman, bluesman, guitar hero, brio todo em fera”

De olhos bem abertos, ao parque risonho em que os dentes correm com a mente tal uma boca, o mundo ao dispor, a fome dos sóis como um amarelo borrado em espanto, tal a hora que antes havia nos tempos de ouro, sem dor e morte, e bate no relógio todos os dias o contorno dos corpos diante dos faróis.
O horror de Manson, fico de frente à espada, Los Angeles, e o Verão do Amor em San Francisco, a Swinging London, eu o mártir, estes outros tantos, meus carrascos, a dominação do espírito, e os sinos que habitam o tilintar dos frascos de veneno, do Bordeaux embriagado com vinhos de eternos cantores da fábrica de Jazz.
Buda em escarlate, as damas sucintas com mentiras iluminadas, versos que batem de frente, gritos que fogem de hospícios, que batem de frente, que gritam odeio vocês todos, que pulam o poema com tanta febre e terror. O rock, de dentro do coração, não sabe de todos estes esquemas que vivem de um padrão arrotado como canções de tédio. Jesus encarna a música que habitava Fender, luta renhida com sete chamas azuis na bruta lâmpada de Alladin. Insano!
De olhos bem abertos, ao parque das lágrimas, fantasmas de roupa preta batem à porta, atendo um mendicante, me torno um renunciante, flechas do torpor caem como bom soporífero, Morfeu ganha um miasma e um hematoma, eu ganho músculos como um doutor de poesia em banho de sal, mar de Mármara, reto e dançante, nadando para o sol tal o sonho de Ícaro. Vingue-se!
Mas, como um plácido verso, donde a pura flor emana, detenho-me em fúria com calma, viro-me ao tempo lasso da temperatura do corpo perfurado em tatuagens, Krishna subindo em árvores, OM transando no Mahabarata, lento o vinho com cidades estouradas de violência, bento o dia, vertendo a noite. Mate-me!
Eu quero a sedução da morte, a queda do véu, o desvelar de olho com sério pensamento, que corre em fadas e vinhas tal o sonho puro de diamante, eu quero a mortal intuição de todos os símbolos na carne, os miasmas terríveis da dor, as cores estupefatas do amor, os linhos e as malhas de túnicas com sabores de vento, os labores de prazer tal tear como rios de guitarras batendo em meus órgãos, nas tripas coração de elencos de teatro, a queda do Tártaro, o mistério dos surtos bíblicos, o Nirvana como derrota do corpo, o fim da História como o nada místico da aniquilação, a dor remendada com notas de dólares, Hollywood com sementes de riso na stand-up de um pendor básico de poema roto, os mestres do universo vindos de Órion, a estrela azul da imaginação como bom conto de prata embotada de ferrugem, aço marmóreo de toda a força, Dismaland devastada. Verta meu sangue negro!
Prenhe de loucos a nota fria da canção, os devedores pagam suas mulas de coca, passo à Cordilheira, jazzman, bluesman, guitar hero, brio todo em fera, animal interno que eclode ao sucesso, prenhe a nave veneno e rumo sem norte, o frio de escalas em harmonia, o poema que ruge com máquina de Tupã, sempre vivo Osíris, e Tamuz, Marduc babilônio na queda dos anjos de Tiamat, mito vertendo navegação em astrolábio, tem tudo na rigorosa moral, no sangue puro dos éticos de dores regidas por fracassos, nas dores sentidas do palácio, na política de títeres sem dedos, as estrelas correm em seus epiciclos, a hipnose varia com Wundt, eu detenho-me diante da morte, caio em choro por toda a alameda, não tenho tempo misterioso, arranco as vestes com tenazes de pecado, com broto de bambu como último almoço antes da guilhotina, tal é vinho depois quando estou já no céu, com meu anjinho da guarda a dar risadas de uma espoleta de olhos vermelhos, dentro da canção está a dor profunda da vontade morte vida que estoura os tímpanos, que morre vive com a conta paga na hora do suicídio em vão. Música!
Leve-me ao parque, vamos brincar, cavalos coloridos, crocodilos, elefantes, leões, o globo da morte, venha em toda a súcia de politiquentos artistas, Demônios, Deuses, gente estropiada, a entrada é gratuita, o céu está in love, a terra está arrasada, não há mistério, toda a cor de vivência humilha os detentores do saber, a verdade ultrapassa todo rigor de pensamento, o poema só estoura o que já vem bem explodido, e a vida implode por hipocrisia, não temos nada a fazer no parque, a roda gigante é um eterno retorno de ciclo entre fogo e água, vivo períodos de placidez e outros de suicídio, caio em mim e saio de si, tem um Outro na vida dos loucos, a fama só resgata um mártir depois que este já morreu. Dismaland!
O parque tem carrinhos, bebês verdes, moças amarelas, homens de preto, carroças de algodão doce, ó leãozinho, morde meu peito! Ó girafinha, estique o pescoço para ver, está diante do Homem, este animal feroz que habita teu parquinho, besta-fera é esta que arma a guerra, que tem visto para o inferno, e o céu nostálgico aparece nos sonhos de religião destes miseráveis. Pois sim, reto o drama, existência falida, espírito inteiro, no entanto. Veja, não há mistério, Buda sorri de uma piada infame, o poema sorri por pura inspiração. Legalize!
Erva santa, me salve! Vou à Jamaica, passo pelo Haiti, Dismaland é o No man`s land, Eliot sabia de Dismaland, Banksy não mostra-se assim inteiro, venha ao parquinho comer doces de sonhos bobos, palhaços com caras pintadas de vermelho, o inferno de Dante, a comédia de erros com idiotia de propaganda, muita miséria de mentira, muita verdade escondida, venha ao parquinho, andem com seus patins, deem milho aos patinhos de feira, comam a fartar os sanduíches de carne assassinada, festa tem, bem ao gosto do público, distinto e brilhante, o poema só dá sol a este calor de astúcia, venha à Dismaland, olha a fera diante do carrasco, não há escape, sonhar com tudo isso só vira poesia se o sonho não morre de inanição, a fome deste mundo é Dismaland, bruxas de preto, feiticeiras de branco, mulheres fatais de vermelho, e os homens azuis de desejo, os cortes de cicatrizes em seus gritos, vindos de rinhas de macho, e com lâmpadas acesas na cabeça quando fazem a Ideia dar errado. Venham!

(Nota: Dismaland é o centro do universo velho diante do novo que virá, se torna futuramente a utopia da Era de Aquário, com escusas, não entro em detalhes desta visão do futuro, pois a pena só indica que Dismaland é a fase negra antes de uma nova fase brilhante de ciência e espírito.)

Ao coração do mundo dedico estas flores humildes.

(POEMA EM PROSA)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/39235/14/dismaland





segunda-feira, 25 de junho de 2018

SONETOS DE GÓNGORA


“logo o poeta se envolve em dívidas para manter a sua fachada de nobre”

Góngora, já viajando em missões como cabido, pensava em virar poeta palaciano, e neste meio, já almejando se tornar um dos grandes, também poeta da realeza, começa a sua inimizade com Quevedo, este que tanto iria criticá-lo e destilar várias farpas.
No cenário literário espanhol temos extensas contendas neste período de ouro. Resumindo a situação : Lope briga com Góngora, Góngora com Quevedo, e Quevedo com Ruiz Alarcón, e este, por fim, com Lope.
Em 1603 o poeta deixa seus escritos que comporiam o Flores de poetas ilustres de 1605 com Pedro Espinosa, aqui com Góngora, poeta cordovês, já de volta a sua terra, vai pelos anos seguintes produzindo uma poesia cortesã.
Contudo, marca a entrada em sua chamada segunda fase em 1610 com uma canção sobre a tomada de Larache, fase que renderia muitas críticas ao poeta. Mas, é neste período que o poeta começa a produzir uma poesia ou obra de tomo, com poemas mais ambiciosos e maiores, os que dariam, por exemplo, em obras como : “Fábula de Polifemo e Galateia” e as “Soledades”.
Em 1617 temos, adiante, seu Panegírico ao Duque de Lerma, trabalho literário decorrente da festa promovida pelo Cardeal de Toledo, este que era tio do Duque de Lerma. Lembrando que a esta altura o grau de elaboração desta obra era o maior até então da obra gongórica.
E temos, na biografia de Góngora, em sua pretensa vida e poesia cortesã, um ponto insustentável, pois logo o poeta se envolve em dívidas para manter a sua fachada de nobre, consumando a sua ruína o fato de poeta também estar mergulhado no vício do jogo, vivendo agora numa pompa aparente, na verdade afogado cada vez mais em dívidas.
Por fim, já próximo da morte de Góngora, este doa a seu sobrinho d. Luís de Saavedra a sua obra literária, que incluía tanto sua poesia como a sua prosa. Lembrando que não se sabe exatamente da prosa gongórica e nem se esta se tratava de sua produção epistolar. E o poeta, por fim, morre em Córdova, em 23 de maio de 1627.

POEMAS :

SONETOS

II (1582) : O poema é de um estro gongórico que imita um esgar petrarquiano, aqui como mímesis de versos de um soneto de um Minturno, por exemplo, no que temos : “De honestidade templo o mais sagrado,/Cujo alicerce belo e gentil muro,/De branco nácar e alabastro duro/Foi por divinos dedos fabricado;” (...) “Soberbo teto, que filetes de ouro,/Enquanto em seu redor gira o sol louro,/Ornam de luz, coroam de beleza;/Humilde adoro-te, ídolo formoso :/A quem por ti suspira ouve piedoso,/A quem te ergue hinos e as virtudes reza.”. O templo, eis, é erguido, o soneto nos canta com um esmero uma descrição majestosa, e nos dá esplendor o templo com fundo sagrado e numa forma trabalhada ao modo barroco.

VI (1582) : O soneto raia com um lume glorioso, no que temos : “Raia, dourado Sol, orna e colora/Desse alto monte o luxuriante cume,”. E segue o estro gongórico, agora com riqueza e realeza, no que vai : “Afrouxa as rédeas a Favônio e Flora,/E usando ao esparzir o novo lume/Teu generoso ofício e real costume,/O mar argenta, de ouro os prados cora,/Para que desta veiga o campo raso/Borde, saindo Flérida, de flores;/Contudo, não saindo ela acaso,/De ornato e cor ao monte não dês traço,/Nem persigas da Aurora o rubro passo,/Nem mar argentes, nem campinas doures.”. As flores dão a este campo do soneto sua luz, um bordado que de ornato tem o fundo e a forma.

XIII (1582) : O soneto levanta uma influência possível de Bernardo Tasso, e temos adiante mais uma demonstração do estro metafórico que faz do verso gongórico um ornato sonoro até na tradução que temos, no que se vê, portanto : “Ora que a competir com teu cabelo/Ouro brunhido ao sol reluz em vão,/E com desprezo, no relvoso chão,/Vê tua branca fronte o lírio belo;” (...) “Colo, cabelo, fronte, lábio ardente/Goza, enquanto o que foi na hora dourada/Ouro, lírio, cristal, cravo luzente/Não só em prata ou víola cortada/Se torna, mas tu e isso juntamente/Em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada.”. O soneto nos descreve como colo o cristal, cabelo o ouro, a fronte ainda como lírio e o lábio, por fim, cravo.

XVIII (1583) : O soneto, já acusando uma imitação de Ariosto, terá no Brasil, por exemplo, versões de poetas como Cláudio Manoel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga, e aqui temos, pela versão gongórica, um estro magnífico, no que  vem : “Qual do Ganges marfim, ou qual de Paro/Branco mármor, qual ébano luzente,” (...) “qual tão caro/Safiro oriental, qual rubi ardente,/Ou qual neste feliz tempo presente/Tão douta mão de um escultor tão raro/Estátua conformara e até fizera/Ultraje milagroso à formosura/Seu formoso labor,” (...) “Diante dos olhos teus, sua figura,/Bela Clóri, dulcíssima inimiga?”. O soneto nos dá algumas definições de beleza feitas pela poesia, e a Clóri ainda estas não a iguala, é o que nos faz crer o poeta, com luxuriante estro em que tudo é possível.

XX (1583) : Em soneto que nos dá imitação de Égloga de Garcilaso, em novos ecos de Bernardo Tasso, temos : “Ilustre e formosíssima Maria,/Enquanto deixam ver-se a qualquer hora/Em tuas faces a rosada Aurora,” (...) “Mexe o vento à madeixa voadora/Que a Arábia nos seus veios elabora/E o rico Tejo nas areias cria;/Antes que Febo com a idade eclipsado/E o claro dia feito noite obscura/A Aurora fuja do mortal nublado;” (...) “Desfruta a cor, desfruta, e a luz, e o ouro.”. O soneto rico é um lume em que mais nos dá a ilustre e formosa Maria, num avanço colorista do estro barroco que tem efeito aqui no Brasil sob o poeta Gregório de Matos, por exemplo.

A D. SANCHO DÁVILA, BISPO DE JAÉN

LXXIX (1608) : Aqui temos a descrição poética do palácio do bispo, no que vem : “Sacro pastor de povos, que em florida/Idade, pastor, guias o teu gado,” (...) “Cantem outros tua casa esclarecida,/Mas teu palácio, com razão sagrado,/Cante Apolo de raios coroado,/Não Musa humilde de laurel cingida.” (...) “Milagroso sepulcro, mudo coro/De mortos vivos, de anjos tão calados,/É um céu de corpos, é um vestuário de almas.”. E a tal palácio o poema nos dá lume, com rigor e riqueza do estro barroco, aqui em colorismo gongórico.

OUTRAS COMPOSIÇÕES DE ARTE MAIOR

XXXIX (1608) : O poema florido, mais rico se faz, e sempre, aqui da inspiração sob comando da imaginação de Góngora, no que temos : “Da hoje florida falda/Em que a Alva fez de pérolas bordado,” (...) “Que pedem, com ser flores,/Branco a tuas fontes e a tua boca olores.” (...) “Mais de pontas armado de diamante :/Eu as pus de fugida,/E cada flor me custa uma ferida./Mais, Clóri, te hei tecido/Jasmins nesse cabelo desatado/E a mais beijos convido” (...) “Pagas-me em favos eu jasmins te dar.”. O poema tem este ardor que nos brinda com emoção mais um exemplo da arte barroca, aqui como arte maior, ao menos à época.

POEMAS :

SONETOS

II

(1582)

De honestidade templo o mais sagrado,
Cujo alicerce belo e gentil muro,
De branco nácar e alabastro duro
Foi por divinos dedos fabricado;
Pequena porta de coral prezado,
Claras lumeeiras de mirar seguro,
Que à mais fina esmeralda o verde puro
Para redomas tendes usurpado;
Soberbo teto, que filetes de ouro,
Enquanto em seu redor gira o sol louro,
Ornam de luz, coroam de beleza;
Humilde adoro-te, ídolo formoso :
A quem por ti suspira ouve piedoso,
A quem te ergue hinos e as virtudes reza.

VI

(1582)

Raia, dourado Sol, orna e colora
Desse alto monte o luxuriante cume,
Segue com doce mansidão, ó nume,
O rubro passo da alvejante Aurora;
Afrouxa as rédeas a Favônio e Flora,
E usando ao esparzir o novo lume
Teu generoso ofício e real costume,
O mar argenta, de ouro os prados cora,
Para que desta veiga o campo raso
Borde, saindo Flérida, de flores;
Contudo, não saindo ela acaso,
De ornato e cor ao monte não dês traço,
Nem persigas da Aurora o rubro passo,
Nem mar argentes, nem campinas doures.

XIII

(1582)

Ora que a competir com teu cabelo
Ouro brunhido ao sol reluz em vão,
E com desprezo, no relvoso chão,
Vê tua branca fronte o lírio belo;
Ora que ao lábio teu, para colhê-lo,
Se olha mais do que ao cravo temporão,
E ora que triunfa com desdém loução
Teu colo do cristal, que luz com zelo;
Colo, cabelo, fronte, lábio ardente
Goza, enquanto o que foi na hora dourada
Ouro, lírio, cristal, cravo luzente
Não só em prata ou víola cortada
Se torna, mas tu e isso juntamente
Em terra, em fumo, em pó, em sombra, em nada.

XVIII

(1583)

Qual do Ganges marfim, ou qual de Paro
Branco mármor, qual ébano luzente,
Qual âmbar ruivo ou qual ouro excelente,
Qual fina prata ou qual cristal tão claro,
Qual tão miúdo aljôfar, qual tão caro
Safiro oriental, qual rubi ardente,
Ou qual neste feliz tempo presente
Tão douta mão de um escultor tão raro
Estátua conformara e até fizera
Ultraje milagroso à formosura
Seu formoso labor, gentil fadiga
Que não fora figura ao sol de cera,
Diante dos olhos teus, sua figura,
Bela Clóri, dulcíssima inimiga?

XX 

(1583)

Ilustre e formosíssima Maria,
Enquanto deixam ver-se a qualquer hora
Em tuas faces a rosada Aurora,
Febo em teus olhos e na fronte o dia,
E enquanto com gentil descortesia
Mexe o vento à madeixa voadora
Que a Arábia nos seus veios elabora
E o rico Tejo nas areias cria;
Antes que Febo com a idade eclipsado
E o claro dia feito noite obscura
A Aurora fuja do mortal nublado;
Antes de o que hoje é em ti ruivo tesouro
Vencer a branca neve na brancura,
Desfruta a cor, desfruta, e a luz, e o ouro.

A D. SANCHO DÁVILA, BISPO DE JAÉN

LXXIX 

(1608)

Sacro pastor de povos, que em florida
Idade, pastor, guias o teu gado,
Mais com o assobio do que com o cajado,
E mais que com o assobio com tua vida,
Cantem outros tua casa esclarecida,
Mas teu palácio, com razão sagrado,
Cante Apolo de raios coroado,
Não Musa humilde de laurel cingida.
Tenda é gloriosa, onde em leitos de ouro
Vitoriosos dormem os soldados
Que já despertarão a triunfo e palmas;
Milagroso sepulcro, mudo coro
De mortos vivos, de anjos tão calados,
É um céu de corpos, é um vestuário de almas.

OUTRAS COMPOSIÇÕES DE ARTE MAIOR

XXXIX 

(1608)

Da hoje florida falda
Em que a Alva fez de pérolas bordado,
Tecidos em grinalda
À tua fronte estes jasmins traslado
Que pedem, com ser flores,
Branco a tuas fontes e a tua boca olores.
Guarda destes jasmins
De abelhas era um esquadrão volante,
Rouco se de clarins,
Mais de pontas armado de diamante :
Eu as pus de fugida,
E cada flor me custa uma ferida.
Mais, Clóri, te hei tecido
Jasmins nesse cabelo desatado
E a mais beijos convido
Do que houve abelhas no esquadrão armado;
Lisonjas a porfiar,
Pagas-me em favos eu jasmins te dar.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/39205/17/sonetos-de-gongora