“tal mundo incrível do sonho também é, por fim, a realidade
da alma”
Borges segue em seu Livro dos Sonhos com o famoso poema de
Lucrécio, Da Natureza das Coisas, que aqui em seu Livro IV, temos o trecho “Da
Natureza dos Sonhos”, e este nos dá uma visão do onírico que é como um tipo de
divisão do mundo entre aquela do mundo natural e dos sentidos físicos
ordinários, e um mundo paralelo que nos aparece ou se nos desperta quando
sonhamos.
É neste sono que se abre uma visão mais sutil, em que os
espectros passam com desenvoltura e tudo flui num outro diapasão que nos coloca
em contato com um mundo anímico que registra de forma diversa a realidade, esta
aqui mais sutil que o que se nos apresenta quando estamos no mundo real ou
físico, e que Lucrécio, de forma passional, tenta nos dar como que o panorama
em que tal mundo incrível do sonho também é, por fim, a realidade da alma.
E no texto que Borges nos enumera a seguir, que é o de
Alfonso o Sábio, Setenário (Lei XVI), temos aqui então a descrição mais
conceitual do sonho ou fenômeno onírico, já tendo neste caso a visão lucreciana
ganho aqui neste caso contorno menos sobrenatural e um viés do que pode ser
influência natural para o sonho.
Temos já aqui com Alfonso o sonho como o resultado da
atividade do dia para o que cai no sono e tem visões relacionadas a sua rotina
recente, ou ainda como que a visão onírica que se tem em meio a algo governado
pela natureza e não por alguma faculdade anímica, como visto por Lucrécio, na
sua visão até então espectral e sutil. E mesmo sendo natural, Alfonso nos diz,
contudo, que “os homens sonham muitas coisas, de maneira natural e com muita
razão”.
Borges segue então um retorno à visão espiritual ou
espiritualista do fenômeno onírico, que é o que temos com o texto de Joseph
Addison, em seu The Spectator, intitulado Sobre os Sonhos, em que o mesmo
teoriza ou tenta fazer a sua concepção dos sonhos, e ainda cita A Religião de
um Médico, de Thomas Browne, fazendo confirmar ou uma tentativa disto sobre a
emancipação da alma quando sonha.
O mesmo termo que temos, portanto, em Lucrécio, também temos
em Addison, numa visão aqui mais conceptual do que poética, mas tendo o mesmo
viés de libertação de um mundo ordinário que é a visão pretensamente sobrenatural
do sonho.
Em Giovanni Papini, O Trágico Cotidiano, aqui no texto A
Última Visita do Cavaleiro Enfermo, temos uma evocação e citação precisa do
texto shakespeariano, em que temos nós como que sonhados por algum outro ente,
e então tanto a visão do poeta sobre si mesmo é produto de um outro percipiente
que “nos sonha”, como também temos a confirmação da visão filosófica que julga a
realidade como uma alucinação ou um simulacro.
Neste ínterim, isto me faz recordar ainda, com a devida vênia
ao texto borgiano, a loucura em McBeth, o absurdo que é a vida como contada por
um louco, com som e fúria, e o sonho sendo esta canção sublime ou o estrondo de
um pesadelo em que o demônio é astuto, um gênio da natureza que é sobrenatural,
ou apenas, como poderia se dizer numa piada cética, resultado inerte de uma
comida gordurosa consumida altas horas da madrugada, ao cair o sono do glutão
notívago.
E no texto de Ulrica, talhado pelo Borges que nunca tem nome
próprio, mas que atua em sua propriedade textual em paradoxo, temos o autor
então diante da saga de Siegfried, ou melhor, um Borges mítico e também
histórico diante de uma escrita alegórica que se faz no próprio Borges a
recolocação de uma escrita alegórica, uma reverberação da metáfora como
refundação desta metáfora.
Aqui com Brunhild, o mito, a saga, uma história germânica
tardia dos Nibelungos, é o vão em que Borges cresce como intérprete mais uma
vez do que ele diz e do que ele faz outros dizerem, o paradoxo borgiano que nos
faz herdar a visão aqui da morte e do
sono como tema ou leitmotiv que se alimenta tanto de uma especulação
filosófica, de uma metáfora poética, como de uma saga por excelência, tudo a
serviço de uma literatura alegórica que se duplica e se desdobra em si mesma.
E à alegoria do juízo final de Quevedo, ao fim, Borges nos dá
a saber mais uma vez do absurdo e do incompreensível, e como que a sua rica
descrição nos fornece mais uma vez o pano em que se dará um absurdo espiritual
feito de contradição, paradoxo, e ao cabo de desconstrução de um desfile de
tipos que faria o mais absoluto cristão
corar frente a tal opróbrio.
Com as descrições de Quevedo, temos um autor, pela via
borgiana alegórica, fazendo apontamentos impiedosos, e que na literatura
borgiana se tem mais ainda grave quando a alma do absurdo reina como motivo
literário quando demonstra a verdade religiosa como o flerte com o impossível
ou o impensável. O texto borgiano atua pelo absurdo como reificação de seu
ímpeto alegórico, e nada é mais extremo como alegoria que a visão espiritual escatológica,
ou o afamado dia do juízo final, aqui como sonho.
Borges nos dá exemplos de avarentos, poetas, filósofos, e
demais figuras que desafiam o bom senso do céu e que ao fim temos, então, um
Judas, um Luthero e Mafoma, igualmente contraditos e condenados, todos num
juízo final que nos reafirma o absurdo da condição pecadora como incontornável.
E o sonho é aqui crer que tal se dá na verdade religiosa sem associar este
sonho último com o delírio ou com o próprio impossível se dando ares de mundo
coerente com uma certeza espiritual, o que neste contexto de Quevedo e de
Borges é uma inversão que vai dar no puro sonho que se desvanece como tal, apenas
um sonho.
E a presença demoníaca no texto de Quevedo (Borges) nos leva
a sua atuação como um tipo de juiz das falhas, e todo personagem que pretende
ser salvo acaba por ter sua vida pregressa escrutinada por todos os lados, e
uma vez já sabendo da vida de cada um, seja este o que for, o diabo o condena
com algo que lhe escapara antes de reivindicar tal condição de salvação da
própria alma, uma vez que aqui no texto “O Sonho do Juízo Final” temos uma
faculdade diabólica que redunda no fracasso humano, seja no seu plano de
salvação espiritual como de pretensa idoneidade moral.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/39240/17/os-sonhos-em-borges-e-a-saga-espiritural