PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 28 de junho de 2018

OS SONHOS EM BORGES E A SAGA ESPIRITUAL


“tal mundo incrível do sonho também é, por fim, a realidade da alma”

Borges segue em seu Livro dos Sonhos com o famoso poema de Lucrécio, Da Natureza das Coisas, que aqui em seu Livro IV, temos o trecho “Da Natureza dos Sonhos”, e este nos dá uma visão do onírico que é como um tipo de divisão do mundo entre aquela do mundo natural e dos sentidos físicos ordinários, e um mundo paralelo que nos aparece ou se nos desperta quando sonhamos.
É neste sono que se abre uma visão mais sutil, em que os espectros passam com desenvoltura e tudo flui num outro diapasão que nos coloca em contato com um mundo anímico que registra de forma diversa a realidade, esta aqui mais sutil que o que se nos apresenta quando estamos no mundo real ou físico, e que Lucrécio, de forma passional, tenta nos dar como que o panorama em que tal mundo incrível do sonho também é, por fim, a realidade da alma.
E no texto que Borges nos enumera a seguir, que é o de Alfonso o Sábio, Setenário (Lei XVI), temos aqui então a descrição mais conceitual do sonho ou fenômeno onírico, já tendo neste caso a visão lucreciana ganho aqui neste caso contorno menos sobrenatural e um viés do que pode ser influência natural para o sonho.
Temos já aqui com Alfonso o sonho como o resultado da atividade do dia para o que cai no sono e tem visões relacionadas a sua rotina recente, ou ainda como que a visão onírica que se tem em meio a algo governado pela natureza e não por alguma faculdade anímica, como visto por Lucrécio, na sua visão até então espectral e sutil. E mesmo sendo natural, Alfonso nos diz, contudo, que “os homens sonham muitas coisas, de maneira natural e com muita razão”.
Borges segue então um retorno à visão espiritual ou espiritualista do fenômeno onírico, que é o que temos com o texto de Joseph Addison, em seu The Spectator, intitulado Sobre os Sonhos, em que o mesmo teoriza ou tenta fazer a sua concepção dos sonhos, e ainda cita A Religião de um Médico, de Thomas Browne, fazendo confirmar ou uma tentativa disto sobre a emancipação da alma quando sonha.
O mesmo termo que temos, portanto, em Lucrécio, também temos em Addison, numa visão aqui mais conceptual do que poética, mas tendo o mesmo viés de libertação de um mundo ordinário que é a visão pretensamente sobrenatural do sonho.
Em Giovanni Papini, O Trágico Cotidiano, aqui no texto A Última Visita do Cavaleiro Enfermo, temos uma evocação e citação precisa do texto shakespeariano, em que temos nós como que sonhados por algum outro ente, e então tanto a visão do poeta sobre si mesmo é produto de um outro percipiente que “nos sonha”, como também temos a confirmação da visão filosófica que julga a realidade como uma alucinação ou um simulacro.
Neste ínterim, isto me faz recordar ainda, com a devida vênia ao texto borgiano, a loucura em McBeth, o absurdo que é a vida como contada por um louco, com som e fúria, e o sonho sendo esta canção sublime ou o estrondo de um pesadelo em que o demônio é astuto, um gênio da natureza que é sobrenatural, ou apenas, como poderia se dizer numa piada cética, resultado inerte de uma comida gordurosa consumida altas horas da madrugada, ao cair o sono do glutão notívago.
E no texto de Ulrica, talhado pelo Borges que nunca tem nome próprio, mas que atua em sua propriedade textual em paradoxo, temos o autor então diante da saga de Siegfried, ou melhor, um Borges mítico e também histórico diante de uma escrita alegórica que se faz no próprio Borges a recolocação de uma escrita alegórica, uma reverberação da metáfora como refundação desta metáfora.
Aqui com Brunhild, o mito, a saga, uma história germânica tardia dos Nibelungos, é o vão em que Borges cresce como intérprete mais uma vez do que ele diz e do que ele faz outros dizerem, o paradoxo borgiano que nos faz herdar a visão aqui da  morte e do sono como tema ou leitmotiv que se alimenta tanto de uma especulação filosófica, de uma metáfora poética, como de uma saga por excelência, tudo a serviço de uma literatura alegórica que se duplica e se desdobra em si mesma.
E à alegoria do juízo final de Quevedo, ao fim, Borges nos dá a saber mais uma vez do absurdo e do incompreensível, e como que a sua rica descrição nos fornece mais uma vez o pano em que se dará um absurdo espiritual feito de contradição, paradoxo, e ao cabo de desconstrução de um desfile de tipos que faria o  mais absoluto cristão corar frente a tal opróbrio.
Com as descrições de Quevedo, temos um autor, pela via borgiana alegórica, fazendo apontamentos impiedosos, e que na literatura borgiana se tem mais ainda grave quando a alma do absurdo reina como motivo literário quando demonstra a verdade religiosa como o flerte com o impossível ou o impensável. O texto borgiano atua pelo absurdo como reificação de seu ímpeto alegórico, e nada é mais extremo como alegoria que a visão espiritual escatológica, ou o afamado dia do juízo final, aqui como sonho.
Borges nos dá exemplos de avarentos, poetas, filósofos, e demais figuras que desafiam o bom senso do céu e que ao fim temos, então, um Judas, um Luthero e Mafoma, igualmente contraditos e condenados, todos num juízo final que nos reafirma o absurdo da condição pecadora como incontornável. E o sonho é aqui crer que tal se dá na verdade religiosa sem associar este sonho último com o delírio ou com o próprio impossível se dando ares de mundo coerente com uma certeza espiritual, o que neste contexto de Quevedo e de Borges é uma inversão que vai dar no puro sonho que se desvanece como tal, apenas um sonho.
E a presença demoníaca no texto de Quevedo (Borges) nos leva a sua atuação como um tipo de juiz das falhas, e todo personagem que pretende ser salvo acaba por ter sua vida pregressa escrutinada por todos os lados, e uma vez já sabendo da vida de cada um, seja este o que for, o diabo o condena com algo que lhe escapara antes de reivindicar tal condição de salvação da própria alma, uma vez que aqui no texto “O Sonho do Juízo Final” temos uma faculdade diabólica que redunda no fracasso humano, seja no seu plano de salvação espiritual como de pretensa idoneidade moral.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/39240/17/os-sonhos-em-borges-e-a-saga-espiritural





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