“o Quijote, porém, ganha batalhas póstumas contra seus
tradutores e sobrevive a qualquer versão descuidada”
PEQUENA INTRODUÇÃO
Em “Discussão” de 1932, Borges reúne os temas que serão
correntes em toda a sua obra literária, tais como infinito, realidade, magia,
inferno e cabala.
A PENÚLTIMA VERSÃO DA
REALIDADE
Borges discorre aqui acerca de um artigo de Francisco Luis
Bernárdez sobre as especulações ontológicas do livro “A idade viril da
humanidade”, trabalho composto, por sua vez, pelo Conde Korzybski, tal obra que
Borges confessa desconhecer. E aqui temos como tema as três dimensões que tem a
vida, no que Korzybski elenca faculdades geométricas como comprimento, largura
e profundidade, sendo a primeira dimensão associada à vida vegetal, a segunda à
vida animal, e a terceira à vida humana. Tendo aqui, portanto, os vegetais
levando uma vida em longitude, os animais uma vida em latitude, e por fim os
homens levando uma vida em profundidade.
O Homem nos aparece aqui como este que abarca o tempo, e
segundo Rudolf Steiner, temos aqui este ente humano no tempo como aquele que
possui o eu, e então a memória do passado e a previsão do futuro, isto é,
possui o tempo. Por conseguinte, só temos uma negação de uma suposta oposição
entre o espaço e o tempo após sua origem na concepção spinoziana dos atributos
do pensamento e da extensão, erro metafísico, e que é corrigido quando se
entende que o tempo antecede o espaço, que o espaço, num idealismo mais
elevado, é um dos episódios do tempo.
O espaço, portanto, é uma das formas da fluência do tempo, no
que certas faculdades dos sentidos, como o olfato, e a audição, com a música, por
exemplo, temos então a subversão deste espaço, ou melhor, uma independência
destes fenômenos da concepção e realidades espaciais. Aqui temos então a
refutação do espaço como forma universal de intuição, como queria conceber
Kant.
A SUPERSTICIOSA ÉTICA
DO LEITOR
Borges discorre aqui sobre a superstição em relação ao estilo
no que se refere à escrita e também falando sobre a relação do leitor com o
texto literário. Temos então um superdimensionamento da concepção de estilo
quando se fala do fenômeno literário, dogmas de estilo que passam desde a
economia dos adjetivos como pela concisão como qualidade ou virtude literárias,
tal conceito último que Borges chama devidamente de charlatanice da brevidade.
Em Dom Quixote e seu autor Cervantes, Borges logo tenta com
esta obra fazer uma operação de desmistificação da questão do estilo, esta obra
que aparece aqui, portanto, como um todo mal ajambrado, de fácil tradução, ao
contrário de um Gôngora, por exemplo, que tem tal qualidade formal, em que a
tradução lhe é um tormento.
No caso do Quixote de Cervantes, Borges nos dá a sua dimensão
de texto que não busca a perfeição, e portanto, temos aqui páginas imortais que
podem “atravessar o fogo das erratas, das versões aproximativas, das leituras
distraídas, das incompreensões”, no que Borges então conclui que “o Quijote,
porém, ganha batalhas póstumas contra seus tradutores e sobrevive a qualquer
versão descuidada”.
O OUTRO WHITMAN
Numa primeira interpretação de Whitman, temos este poeta que
pode ter sido um dos precursores dos muitos inventores caseiros do verso livre,
como levanta Borges, questão que então passa pela imitação do poeta no que se
refere à faculdade literária da enumeração, fato nada original que recua no
tempo até ao exemplo dos salmos da Escritura, pois aqui Borges ainda nos
articula uma versão equívoca do poeta Walt Whitman.
Temos sim a imagem verdadeira de um poeta conciso, “de um
laconismo trêmulo e suficiente”, uma poesia de privação, portanto, que nos dá
uma escrita livre de intenções intelectuais e que nos brinda com o mundo comum
e sensorial com informações primárias que vão dar o norte de uma poesia, por
fim, que tem a riqueza de uma frugalidade que se nutre das contingências e não
de formas sublimes.
UMA VINDICAÇÃO DA
CABALA
Borges inicia o texto nos lembrando de que o Corão para os
islamitas é um escrito original que é um dos atributos de Deus, anterior à
própria Criação. E o autor logo faz referência também à concepção de que a
Escritura, por sua vez, é uma escrita do Espírito, aqui como não a divindade geral,
mas a terceira hipóstase da divindade que ditou a Bíblia.
Este cérbero teológico, nos mostra Borges, tem a imaginação
de uma trindade que nos entrega a concepção de um pai e de um filho e de um
espectro como a articulação de um único Deus ou entidade divina que é tomado,
segundo uma exegese liberal, como uma teratologia intelectual, e Borges ignora
qual seria tal desiderato monstruoso de uma divindade de três hipóstases, só
aceitas por ato de fé, pois no intelecto se trata de uma aberração lógica e ontológica.
Temos então como lembrete que o tema cabalístico parte da
Gênese (que é a substância da Cabala) e não de outros temas bíblicos, o que nos
dá uma visão na qual a natureza da extensão e da acústica dos parágrafos, uma
vez que a Cabala se propõe uma operação linguística que culmina num misticismo
da linguagem, tem implicações casuais.
E Borges opõe tal linguagem ao que está presente na
versificação que, por sua vez, opera a linguagem como ente sonoro, numa
prosódia aventureira que estará presente, segundo Borges, em poetas como
Tennyson, Verlaine e no último Swinburne. Quando então Borges nos lembra que o
“casual nos versos não é o som, mas o que significam”, estando aqui no meio
deste caminho autores como Valéry e De Quincey, um tipo intelectual, mas que
ainda assim limita o casual na escrita.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/37986/17/o-livro-da-discussao-de-jorge-luis-borges-ij-parte-i