“há um processo viral de quem tira mais fotos"
Selfie é uma palavra em inglês, um neologismo que tem origem
no termo self-portrait, que significa autorretrato, e é uma foto tirada e
compartilhada na internet. Atualmente, no fenômeno da internet, a fotografia se
tornou veículo popular e banalizado, e que vem de uma arte que desafiou
parâmetros do conceito do que seja arte, em fins do século XIX, e que tem
mestres como: Alfred Stieglitz, Edward Steichen, Brassäi, Henri-Cartier
Bresson, Robert Capa e o nosso Sebastião Salgado, dentre muitos outros.
Agora, com a transição da fotografia analógica, a crise da
Kodak, e a expansão da fotografia digital, que se tornou incontornável com o
uso de smartphones, há um processo viral de "quem tira mais fotos". E
o melhor : isso dá likes e temos o Instagram de prova, linkado com o Facebook,
de preferência.
Não tenho a menor pretensão aqui de fazer o papel de
"cagador de regras", de dizer o que é certo e errado nisso, até
porque não se tem o correto ainda neste fenômeno de quantidade e redes
infinitas de fotografia, via smartphones e suas conexões com a internet e suas
respectivas redes sociais. O ponto de crítica seria mais no sentido de tentar
exatamente auferir sentido ao que seja uma fotografia. De que, se eu postar o
meu almoço diário na minha rede social não faz sentido só para mim, mas também,
para meus amigos ou para quem me segue.
O selfie, por seu turno, seria o ápice deste questionamento
que deve ser feito, sem uma posição radical contra, mas sem o deslumbramento de
que este fenômeno é vítima. Postar "toda a sua vida" na rede social
faz bem ao ego, pode influenciar pessoas, mas faz um sentido maior? Tudo bem, o
twitter pode funcionar como uma agenda biográfica e de rotina, hoje tenho até
maior moderação com isso e meu twitter até se tornou mais irônico e ambíguo.
Mas, vale colocar centenas de fotos nas redes sociais com uma
assiduidade que talvez diminua ao invés de aumentar a percepção do que acontece
na vida das pessoas? Faço as perguntas que acho pertinentes, não sou dono de
nenhuma verdade, e nem venho responder estas perguntas, pois elas são um mote
de reflexão e não um jogo certo de certezas absolutas.
A fabricação da felicidade no Facebook, e isto linkado com
fotos do Instagram, por seu turno, mexe com o conceito de felicidade, que
remete, por sua vez, em tempos de redes sociais, com a exibição de si ao mundo
(nada mal, por sinal), mas temos crítica? Ou melhor, temos algo a dizer que
mude alguma coisa?
Nada contra a felicidade alienada, nada contra o ser feliz de
fotos diárias, mas isso tudo é verdade? Ou seja, vincular sua felicidade com
exibição de fotos de selfie não seria algo vazio, na verdade? O duck face,
paroxismo do selfie, não seria, como Nietzsche diria, um movimento de rebanho?
E, para despertar esta felicidade em direção ao seu irmão rejeitado, o senso
crítico, não podemos moderar nossos costumes? Não julgar o excesso, mas saber
que as fronteiras da vida são bem maiores que os gestos pré-fabricados e
midiáticos.
A exibição do ego deveria ser alicerce fundamental de
construção crítica, trabalho filosófico e de informação, dentro deste limite
expansivo de consciência nos tornaríamos melhores, não só em sentido de
felicidade, mas em sentido de transformação do mundo, em clareza e distinção
cartesianas com doses extravagantes, e bem dosadas, da plêiade que explode
dionisiacamente de tempos em tempos.
O movimento de criar sentido deve ser imediatamente
empreendido, e trabalhar a felicidade em função do sentido. Tal trabalho
crítico tem que romper com essa tessitura fotográfica que não se torne só uma
fabricação do ego ao gosto do freguês, ou seja, o que o próprio ego trabalha
como imagem. O vício embutido neste jogo de aparecimento fotogênico se esquece
de seu profundo nada existencial na fronteira muitas vezes irreal que se perde
em algumas curtidas e, voilá, viramos lixo digital.
A construção de sentido deveria ser o significado da felicidade.
O selfie pulveriza a felicidade e o sentido. A fotografia se torna um registro
hipnótico na qual as redes sociais são as mais atuantes e assíduas. Por
exemplo, se posto filosofia tenho alguns likes, se posto foto tenho mais, e
isso é bom. Mas o sintoma que tento identificar, amiúde, é a relação do
conceito de felicidade com o exibicionismo, e retrabalhar esta exibição com
fundo de crítica, talvez o abismo e o céu da vida aprofundada como experiência
radical de conhecer a si mesmo no meio do furacão do mundo, sem culpa
existencial, só como estar nesta jornada consciente, bem informado. O despertar
é sinal de saúde, e eu quero esta saúde.
O selfie, com seu duck face (a imagem da foto mandando
beijinho), movimento de rebanho, poderia levar Nietzsche a arrancar os bigodes,
e levá-lo de criticar o rebanho cristão ao rebanho da "nova
fotografia", que, por fim, deve ser bem aproveitada sim, mas o critério é
o filho da razão, e sem senso nada se torna, tudo se dilui.
O ponto a se pensar melhor é de que, assim como está
ocorrendo um excesso nos rumos das artes plásticas, por outras razões mais
históricas, a fotografia também passa por uma mudança radical, a qual não se
pode prever os efeitos, mas, filtrando tudo isso, os artistas e fotojornalistas
ainda são o sumo de que se alimentará a fotografia como ação histórica, e não
no universo previsível do selfie.
O beijo mascara o rebanho, e a fotografia vai ao fundo mais
do que à superfície. Usemos nossos smartphones bastante sim, mas sem ser uma
fábrica risonha sem fundo de verdade. Construamos o sentido, felicidade sem
sentido não é felicidade, ser feliz é saber de que fúria, dor, pranto, e
crítica, também fazem parte deste plano chamado mundo. Sorria na fotografia,
mas não deixe de olhar o mundo lá fora.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/37981/14/selfie
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