“tomei telepatina e meu terceiro olho abriu”
Certo dia, isso já tem uns bons dez anos, resolvi passar uns
três dias dentro de um hospício para fazer uma reportagem. Ela rendeu boas
histórias, algumas delas até viraram contos pequenos, mas uma em particular me
chamou atenção, e me remeteu às viagens de William Burroughs atrás de seu Yage,
erva que continha a chamada substância da telepatia, a telepatina. Dentro do
hospício, descobri, no meu segundo dia lá dentro, que havia um homem de uns 40
anos no quarto 12 que, segundo outros internos, era um mago. Depois,
consultando o seu psiquiatra, descobri que era um sugestionado místico, que o
paciente se julgava em transe espiritual e que tinha a faculdade de telepatia.
Pedi autorização ao psiquiatra para conversar com seu
paciente que, por recomendação médica, passava a maior parte do dia sedado,
numa cama, dentro do quarto 12. Fui até lá de tarde, que é quando o paciente em
questão era liberado para o almoço, e que, após a refeição, podia passar umas
horas da tarde interagindo com os outros pacientes daquele hospício.
Fui até ele, vi que tinha um olhar do que, no espiritismo,
que bem conheço, se tratava de um obsediado já em estágio avançado de
fascinação. Fiquei uns bons dez minutos só olhando para ele, antes de
abordá-lo, reparando na sua linguagem corporal e no seu diálogo com os outros
internos: "Vejam só, eu tomei quinhentos ácidos em um ano, mas o porre
mesmo foi o Yage, depois do peiote não deu nada, depois da ayahuasca não deu
nada, mas a telepatina me deu o poder, posso ler todos os seus pensamentos, eu
sou o dono desse lugar aqui, posso me comunicar com vocês através da telepatia,
tomei telepatina e meu terceiro olho abriu, man!".
Ao que outro interno respondeu: "Você é o mago, é? Me
mostra sua chama vermelha, me mostra sua chama vermelha!". Outro, ao lado,
começou a rir e falou: "O mago tá louco, depois somos nós que somos
doidos!". Ao passo que o mago respondeu: "Posso ver o teu pensamento,
tem um monstro dentro da tua cabeça, meu caro discípulo, invoco mamón e
moloque, tenho a espada da justiça em minhas mãos, meu poder astral é
magnânimo, vou me concentrar a criar o teu fogo interior, só um minuto e teu
monstro vai sumir daí!". O outro paciente retruca: "Você é o mago,
mas não me comanda, daqui a pouco vão te pegar e dar um sossega, você é besta,
muito besta, até um metido à besta!".
Olhava aquele diálogo surreal e incrível, e então,
finalmente, me aproximei do mago para conversar com ele: "Fala mago! Como
você está? Ouvi dizer que tu tem o dom da telepatia? Poderia me mostrar como
isso se faz? Também posso me tornar um telepata?" "Ainda bem que você
crê! Tenho esse poder da telepatia sim, você quer ver?" "Claro, sou
médium e só me falta o dom da telepatia para que tudo funcione para mim."
"Então vai lá, se concentra, vê o que estou vendo?
Embuti uma flor de lótus dentro da sua cabeça, posso ver os seus pensamentos,
agora vou lhe enviar um tipo de pensamento, e você me diz se recebeu."
"Opa, peraí, um minuto, mais um minuto ... ahá! Agora eu vi, você pensou
numa serpente lutando com um porco, não foi?" "Eh ... sim! Sim! Você
entendeu tudo! Tá vendo como sou um telepata! Eu sou um telepata! Eu sou um
telepata!" "Sim, você é um telepata!" "Eu sou o dono deste
lugar, ouço todos os pensamentos de todos que estão aqui dentro! Eu sou um
telepata! Tá vendo aquele gordão babando ali no meio do pátio? Ele tem o dom da
cura nas mãos, ele é meu servo, sou o mago e sei o que ele está pensando agora,
ele só pensa em coisas com bacon, seu corpo clama por bacon toda hora, olho e
vejo um porco no lugar de sua alma." "Cara, isso é demais, vamos lá
falar com seu servo, que tal?" "Claro, eu sou um telepata! Vamos lá
que vou ouvir o pensamento dele e falar o que vi dele para você."
Bom, àquela altura já sabia que a fascinação espiritual do
autointitulado mago e telepata era um perigo para ele mesmo, sabia que seria
muito difícil que ele saísse daquela trama psíquica, e que o máximo que podia
fazer, como repórter que sou, e não como psiquiatra, era embarcar na onda pra
ver até onde ela ia, e foi o que eu fiz, fingi ser um crédulo, "mais um
discípulo". O mago também, a meu ver, tinha um problema sério de ego, sua
crença em si mesmo parecia um tanque, ele era o dono de tudo, ao menos naquele
lugar, mas, concretamente, não passava de um dos pacientes de um hospício, e
pior, vivia a maior parte do tempo recluso, não se sabe e nunca se saberá o que
passa exatamente por sua mente quando está sedado e recluso no quarto 12, nem o
que sonha quando está dormindo, e nem o que tanta medicação provoca e o que
tanta droga alucinógena provocou até ele chegar a este ponto que, agora, eu
estava vendo.
Fomos até o seu discípulo, o gordo babão, para mais uma
exibição dos dons do mago telepata. "Eu sou um telepata! Todos aqui são
meus discípulos, eu sou o dono deste lugar, ouço todos os pensamentos daqui,
vamos aqui, eu sou o mago e vou ler seus pensamentos." Se dirige ao gordo
babão, "Eu sou um telepata! Agora vou me concentrar e olhar dentro de seu
pensamento. Você está pensando em bacon, sempre pensa em bacon, não é
verdade?" "Eeeeu tô pen pen san dôôôô ah ah ah ah! Bacoum bacoum
magôôô eue tô pensano ou ou ou ou .... blah!" "Tá vendo, ele só pensa
em bacon, toda hora ele só pensa em bacon, eu vi seu pensamento, ele tem a alma
de um porco, um espírito está a seu lado, sua vida virou uma obsessão por
bacon, ele nem fala direito mais, é meu servo, me serve taças de ouro maciço
com vinho à meia-noite em um de meus banquetes reais. Faço magia negra dentro
do meu palácio. Eu sou um telepata! Eu sou um telepata!".
Bom, depois daquela cena horrível de humilhação contra o
gordo babão, pelo mago ególatra, deu quatro horas da tarde, e então dois
enfermeiros recolheram o mago para tomar injeção, e o telepata em questão
voltaria, pelo resto daquele dia, às trevas de sua reclusão no quarto 12. Da
minha parte, produzi uma reportagem, algumas partes eu poupei para não chocar,
e aqui está meu relato da principal história que vi dentro do hospício, foram
três dias de uma experiência bem curiosa, como se fosse uma antropologia da
loucura, muito mais do que o intuito da reportagem em si, ou de possíveis e
forçadas psicologizações que não dão conta do fenômeno humano. E foi isso que
eu vi lá, a natureza humana, talvez até mais amplificada por uma dor entre
anestesias inexplicáveis.
Guilherme Thompson, cronista e outsider.
(pseudônimo periódico da coluna)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/37945/14/conversa-com-um-telepata-dentro-de-um-hospicio
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