PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

ESPERANÇA SOLAR

Se atento, dentro do reflexo preciso, estou sensato,

fazendo o certo, com a sensibilidade acesa, sem chapar,

o afeto aberto, as razões bem estabelecidas, e todo um

manancial de projetos bem direcionados, cabe à loucura

dos dias da queda e do terremoto, todo o cataclismo que

me trouxe até aqui, depois da deriva, ser este esteio, 

a base, o núcleo duro de minha lucidez,

pois a vida sempre tem passado por um fio,

se abriam abismos, se achava que era o fim, 

tudo acabado, a derrota já declarada, sempre

que se sabe de histórias de vitória, no entanto,

descobre-se isto, que em outros momentos

tudo estava perdido, devastado, e a poesia

murmurava castelos de areia, se espatifando

no grande mar contra as rochas,

o corpo sendo aniquilado,

a alma sendo espancada,

os versos desaguando em

desespero, sim, exatamente

o que, depois da via tortuosa,

calmamente, levando o café à boca,

se olha, contempla, fita, e se diz com

serenidade que se está vivo e pleno,

com suas glórias, vitórias, 

diante do horizonte que nunca

lhe escapou, nem naqueles

dias do fracasso.


11/10/2024 Vibe

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

POEMA DE VENTO

 Feriado à forra da bebida ardente,

com as facas e os dentes, a mais 

forte luta na ira e na armada.


Pois poeta cai e levanta,

dá porrada e toma,

bebe fogo e canta a floresta,

seu hausto é o estro,

mais potente e tonitruante.


Eis o bel canto, em matizes

ferozes, a fazer da boêmia

a astúcia da noite, a que 

é vadia, a que dança no

meretrício, a noite bruta

dos poetas de vento.


10/10/2024 Monster

A PLENITUDE DOS BARDOS

Eu mantenho a vida acesa, pois a trama

se abre na floração, sem o fastio,

sem o lamento, longe do lodo,

assim o poema vive e vence.


As musas olhavam a melodia,

e a água transparente mostrava

do sol a clara luz, pois este tempo

em verso requer estrela,

e a estrela requer coragem,

no sol que brilha, e na noite

dos bêbados.


10/10/2024 Vibe 


CANTO DE BRISA - II

Suave este vento, face ao espelho d`água,

reza o tempo e reza a vela, faz paz no coração

das almas contemplativas, o mesmo fogo que

emerge e morre, de um fundo eterno,

na luz que habita a poesia.


Fecha este tempo da colheita, sem revés,

como galardão, ao vinho probo e vivaz.

Como eis poeta, voilá, seu canto é a vitória.


Em prece, nesta bruma e o orvalho,

e a maresia, pois assim o horizonte

vem do mar, e a visão assim anela

sua miragem mais bela.


10/10/2024 Sublime 

Internet e sistemas complexos - 6

“problemas não são isolados, mas reflexo de uma concentração de comando”

O processo de desmembramento das big techs, mesmo se for efetivado realmente, ainda seria algo que duraria décadas para ser concluído. Deste modo, na visão de uma internet renovada, embora o processo de desgarramento destas empresas seja longo, o fornecimento de uma interoperabilidade robusta e obrigatória já abriria o caminho para a renovação e diminuiria o fluxo financeiro das big techs e seus movimentos de aquisições e domínios.

Um dos meios de interoperabilidade é o de guerrilha, que se dá por engenharia reversa, bots, raspagem e demais táticas não autorizadas, e que passou a ser chamada de “comcom” ou compatibilidade competitiva. Tal tática era a forma que as pessoas descobriam tanto para reescrever softwares como para conserto de carros etc. Depois foram publicadas uma série de leis na tentativa de sufocamento destas iniciativas.

A comcom opera como diversidade tática, em contraste com o pensamento de curto prazo que abriu caminho para uma oligarquia na internet. Na UE (União Europeia) os mandatos de interoperabilidade já possuem vários anos de experiência, junto a um conhecimento de como as big techs tentam driblar tais limitações. Nos Estados Unidos, por sua vez, esta interoperabilidade ainda está restrita a softwares de videoconferências.

Junto à necessidade de iniciativas regulatórias corajosas, com uma visão avançada sobre estratégias de litígio, estas devem vir acompanhadas de políticas governamentais que favoreçam a competição, sobretudo em infraestrutura física, investimentos e aquisições. Mais uma medida poderá vir das universidades ao recusar o financiamento de pesquisas por parte de big techs, pois há sempre uma lista de condições, enviesando todo o processo.

Em face desta recusa de pesquisas condicionadas pelas big techs, as universidades devem ter pesquisas tecnológicas financiadas publicamente e com resultados divulgados também publicamente, aproveitando o ensejo para uma investigação sobre a concentração de poder na internet, e de como recuperar a diversidade do sistema. 

Para tal, por sua vez, deve-se ter o apoio a iniciativas que permitam a gerência de recursos comuns, na criação de redes comunitárias, dentre outros meios de colaboração, no fornecimento de bens públicos como água potável, estradas e defesa, por exemplo, que são bens essenciais. 

Visto que os problemas não são isolados, mas reflexo de uma concentração de comando e de controle da internet, um dos meios mais fortes que temos para debelar este poder das big techs é a participação agressiva do Estado de Direito para equilibrar estas relações de poder e de riqueza empresarial, acabando com as lacunas e optando pelo melhor caminho. 

Por sua vez, nas SDOs (organizações de desenvolvimento de padrões), que eram abertas e colaborativas, ainda quando foram criados os protocolos e padrões técnicos que formam a infraestrutura da Internet, agora estas recebem controle de algumas empresas, em que padrões que parecem espontâneos são, na verdade, resultado de escolhas comerciais de grandes empresas.

Tal controle acaba moldando também a pesquisa na internet, que virou um monopólio global, prejudicando a credibilidade das SDOs, o que pode provocar a perda do mandato global destas para a administração da internet no futuro. Existe, portanto, uma necessidade de uma mudança radical das SDOs, com padrões de internet abertos e globais, pela costura da interoperabilidade, que cria um tecido mais resistente e que protege contra a fragmentação e o domínio perene.

Um exemplo recente de tática antimonopólio veio da Califórnia, em 2018, com a aprovação da Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia, dando o direito aos consumidores californianos de optar por não vender ou compartilhar dados pessoais ao visitar sites da internet, com uma opção de controle de privacidade global que podia ser habilitada pelo usuário, o chamado sinal GPC.

Foi com esta inovação técnica independente, que era um método automatizado de controle de dados pessoais, o GPC, que se abriu caminho para soluções técnicas de controle de dados pessoais por parte de usuários, sem precisar recorrer a instâncias jurídicas de direitos autorais ou de privacidade. O GPC automatiza, para os residentes da Califórnia, a solicitação de aceitar ou rejeitar a venda de seus dados, como o rastreamento baseado em cookies nos sites. 

Contudo, especialistas ainda estão conduzindo uma especificação técnica através do desenvolvimento de padrões globais da Web no World Wide Web Consortium, ao passo que o GPC ainda é incompatível com navegadores como o Chrome e o Safari, levando um tempo para a sua adoção ampla, para que possa, de fato, virar uma prática antimonopólio na pilha de padrões.

Por meio de acordos financeiros opacos entre os mecanismos de busca e os navegadores temos uma padronização enviesada que oferece pouca transparência para os principais provedores de infraestrutura da internet. Por sua vez, os navegadores são peças de infraestrutura de alta complexidade que indicam o caminho de uso da internet para bilhões de usuários da Web, com fornecimento gratuito. 

Por fim, são os mecanismos de busca que deveriam ser cobrados por uma taxa pelos governos para a manutenção dos navegadores e outras infraestruturas da internet, com um financiamento transparente, através de uma supervisão multissetorial, transnacional e aberta. Como espaço em que se cria conhecimento e no qual opera a inteligência planetária, a internet pouco permite de inovação por estar concentrada e sendo tomada por hostes tóxicas e disfuncionais.

O rewilding da internet, por fim, implica em iniciativas de regulamentação, definição de novos padrões e de novas formas de organização e edificação de infraestrutura, através de compartilhamento de estratégias, segundo a tática de interoperabilidade, criando este novo feixe de interrelações mais resilientes, de diversidade, abertura e liberdade, nesta internet renovada, com o fim do extrativismo de uma monocultura tecnológica comandada por big techs.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com 


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

COSMOCOCA


Geraldo Verón, artista plástico e de videoarte, era nascido no Rio de Janeiro, criado no Engenho de Dentro e depois foi para a Lapa, onde começou um curso de teatro livre, e depois começou a pintar e fazer esculturas. Logo alugou um casarão na Rua do Lavradio, junto com mais seis amigos, e ali foi fundado um ateliê de nome “Arte e Loucura”. Verón, no entanto, mesmo com seus trabalhos de pintura e escultura indo para a frente, virando seu nome comum na boca de galeristas cariocas e logo depois paulistas, continuava participando de intervenções que ele aprendera no teatro livre, e fazia parte de um coletivo de música, dança e teatro de rua, de nome “Borogodó”, que era inicialmente mal visto, cujo diretor de nome Benjamin Sâmio, que tivera boas montagens no palco italiano, e tinha feito alguns sucessos no teatro de circuito comercial, foi considerado alguém que tinha surtado ou entrado numa viagem de ácido quando montou o Teatro Total, com este conceito de teatro aberto, urbano, e de rua, e que agora se dividia em dois grupos, tanto o Borogodó, do qual participava Verón, como o Grupo Duelo, que também atuava na Lapa, Centro e arredores. 

Verón estudava agora uma forma de unir o que conhecia de artes plásticas e aplicar isto ao teatro de rua e dentro das galerias ao mesmo tempo, num tipo de arte-teatro que ainda não tinha sido feito. Verón era filho de argentinos, o pai, que morrera há alguns anos, era nada convencional, um egresso da Argentina, e que foi trabalhar de comerciante e tocar cuíca no Estácio e na Cidade Nova e morar no Engenho de Dentro. Um argentino branco metido a sambista, com os pretos da Praça Onze, e que acabou sendo admitido por lá depois de passar no teste da cuíca. Ainda no tempo do Teatro Total, Verón foi da segunda turma montada pelo diretor Sâmio, e acabou sendo um bom ator de improviso, passou a declamar e também montar cenas pitorescas em que se usavam motes e o que se chamava de “clichês”, mas eram mais como disparadores de cenas, todos meio parecidos, mas que abriam os novelos da improvisação e do uso do corpo em cena, nas ruas e nas praças, e o som e o movimento do próprio corpo sendo estudados como este instrumento de teatro urbano e de intervenção. 

Os estudos sobre as possibilidades de expressão corporal, da voz, como uma ressonância ambiental, coletiva, integrada ao que cerca aquele corpo, aquela voz, que colocava o ator ou atriz consciente de sua ação em seu meio, isso sendo mais importante do que o texto, isto na concepção aberta de Sâmio, ia contra a incorporação quase esquizofrênica do personagem feita pela orientação teatral de Stanislavski, por exemplo. O trabalho do som, de um ator/atriz capaz de expressão/expressividade e de captar a atenção eram fundamentais na arte da rua, de coletivos que faziam a arte da intervenção urbana e aberta, com público móvel e variado. A consciência de atuação ia então a favor de um distanciamento a princípio brechtiano, de apresentar o personagem tal qual, do espetáculo, já com a quarta parede demolida e o palco italiano derretido e o cenário simplificado e gerando a imaginação ativa para sugerir a cena e o texto, sendo a expressão de som e movimento, junto com a captação da atenção, os desideratos da atuação de rua, tendo como técnica mais formal, por sua vez, a coreografia, e isto na junção de atores e atrizes conscientes de seu corpo e voz coletivas, como num ditirambo em que entrava também a dança e a música. 

Verón, então, levava suas atividades entre o Borogodó, vindo do Teatro Total, e seu trabalho no ateliê Arte e Loucura, e tinha como grande amigo e também compadre de ateliê Sávio Silveira, o Savinho, que fazia esculturas que eram uma espécie de barroco com arte popular, e umas pinturas naif com temas folclóricos e imaginativos. Savinho era gay e tinha fugido de casa com 17 anos depois de apanhar do pai e ter que tomar pontos na cara e na cabeça, ficou morando na rua durante seis anos, foi para um abrigo e fez um curso gratuito de confecção e depois de entalhamento em madeira, daí evoluindo como escultor, vendendo suas peças na Carioca e na Frei Caneca, e depois se juntando a outros artistas de rua e populares e conhecendo depois Verón e uma artista circense que passou a andar com eles de nome Fiona, nome de circo, pois se chamava Ivete Lima. 

Outro camarada era o Gira, que tinha esse apelido vindo de sua prática como candomblecista, e fazia o que chamava de Arte Negra. Ele era escultor e fazia pinturas, e também começou no Teatro Total, na mesma segunda turma de Verón. Gira também fazia jogos de pegar otário na Carioca, em que ganhava uns trocados para almoçar e depois ia para um quitinete no Lavradio, vizinho do ateliê em que trabalhava, e também conseguia dinheiro quando participava de mostras nas galerias, mas ficava na Lapa, a maior parte do tempo, pois lá gastava pouco e vivia muito, como gostava de dizer. Gira se chamava Aílton Pereira, e tinha nascido no bairro do Cordovil, depois se mandando para a Lapa, para ficar no meio da malandragem e aprender truques para sobreviver. 

Fiona, por sua vez, vinha da classe média alta e fez pano na Fundição Progresso e depois se especializou em circo, com acrobacia e elasticidade corporal no grupo Garcia. Fiona vivia para o circo, pois a família já tinha bens alugados, hotéis, pousadas e então ela pôde escolher livremente o que fazer da vida sem pensar no lado financeiro, que já estava resolvido. Mesmo tendo um apartamento na praia da Barra, ela também alugava outro na Rua do Riachuelo, pois durante a semana fazia atividades de rua e no Circo Garcia, e também viajava, às vezes, para se apresentar, e estava estudando práticas circenses para ser aprovada no Cirque de Soleil, seu grande objetivo, pois ainda estava com vinte e três anos e em grande forma física e fôlego. Fiona também fazia atuações no Borogodó, com danças e coreografias. 

Benjamin Sâmio, por sua vez, aprofundava suas pesquisas sobre teatro de rua e dava muitas aulas e workshops, montando ainda muitas peças, dirigindo e produzindo, e também escrevia novas montagens, junto com outros autores-fazedores, nesta concepção de espetáculo que superava sempre a de peça e de texto, fundamento que sempre definia os rumos desta dramaturgia radical e gratuita, pois nunca tinha cobrança de ingressos, só contribuições espontâneas. A renda dos dois grupos ia para os próprios coletivos, que estava concentrada em duas contas em que havia o sustento tanto do Borogodó como do Grupo Duelo, este mais popularesco e herdeiro dos trejeitos da Commedia Dell`Arte e dos grupos itinerantes e mambembes, e com influências do Século de Ouro do Teatro Espanhol e dos Autos de Gil Vicente, tendo o Auto da Barca do Inferno sido uma vez montado numa praça na Lapa. O Borogodó, por sua vez, fazia experimentações diversas, como um laboratório da linguagem teatral e de seu diálogo com outras artes como as visuais, musicais e a dança, resgatando valores atávicos do ditirambo e do culto dionisíaco, das origens do teatro grego, e misturando a uma cultura de teatro de rua, popular, podendo montar clássicos repaginados, por exemplo, e também produções originais e contemporâneas, remodelando o tempo todo as propostas e os exercícios.

A renovação constante do que veio do chamado Teatro Total despertava em Verón já as suas próprias concepções, e isso agora se associava a experiências com psicodélicos e o consumo de cocaína. Em poucos meses, já em sua atuação como ator no Borogodó, ele amadureceu a primeira parte do que seria esta sua junção Arte-Teatro, e misturou uma concepção de performance, vinda das artes plásticas, com algo teatral, e que foi colocar dez pessoas vestidas em diversas cores, fazendo um movimento de redemoinho e passes elípticos, a mostra chamada “os astros pêndulo” terminaram com um ator fazendo um sketch sobre hipnose e chamando transeuntes para participar. 

A segunda parte da ideia foi executada um mês depois e se chamou “libélulas”, em que homens vestidos de mulher circulavam entre espelhos e no final da performance aparecia um ator vestido de bruxa e se revoltava contra os espelhos, intervenção de nome “ego death”. Verón agora concebia a terceira parte das peças de performance que seriam o ato final desta ideia de giro e que seria a simulação do movimento circular e pendular das entidades de umbanda em torno de uma desobsessão. Os atores e atrizes aqui atuavam como médiuns/cavalos, fumavam charuto e bebiam sidra e cerveja, iam até o altar de Zé Pelintra, ao final, pedir a bênção e derramar álcool para o santo. Depois da parte do Zé Pelintra, a intervenção terminava simulando uma propaganda de cerveja, com uma atriz rebolando e falando “prazer”, “sexo”, “cerveja” e xingava um ator, enquanto este falava o texto decorado da propaganda,  de “bundão”, “cafajeste”, “corno” e depois bebia uma lata de cerveja e beijava o tal ator na boca, encerrando a intervenção-performance.

O diretor Benjamin Sâmio aprovou toda a ideia que era um misto de performance e intervenção urbana teatral com textos esparsos, dança e música. Verón disse que estava desenvolvendo outro projeto no ateliê da Rua do Lavradio, e que seu reconhecimento como artista plástico iria crescer mais ainda, pois sabia que o chamado projeto era um choque a ser testado para ver o que aconteceria. Sâmio disse para Verón silenciar e não espalhar, pois quando algum projeto ganha potência demais, é hora de fazer na surdina e deixar o barulho para o momento de divulgação. Benjamin Sâmio foi então junto com Verón até o ateliê e saiu radiante, certo de que Verón era seu pupilo mais genial e que ficaria para trás, pois o que Sâmio tinha de empreendedor, Verón teria de disruptivo, revolucionário. Era a face do produtor e diretor que reconhecia o artista com todos os seus tiques, bênçãos e maldições, e que ele agora reconheceu na figura de Verón, depois da ida ao ateliê da Rua do Lavradio.

Verón e Gira, depois de uma visita a uma benzedeira no bairro da Penha, decidem ir para a Gamboa, lá encontram com bêbados e malandros, conseguem umas trouxas de maconha, uns pinos de coca, e um LSD de gel, então fumam e cheiram tudo, bebem cerveja por horas, shots eventuais de cachaça, e amanhecendo decidem dividir o gel, que sabiam que era bem forte, e que Verón lembrava de ter tomado quando era bem jovem, numa viagem para Mauá. O negócio bate forte e eles vão parar no porto, ficam zanzando perto dos armazéns e tendo visões. Gira diz que tinha um dos navios apitando, e que parecia estar entrando na pista dos carros, Verón tem um acesso hilariante, e olha para a cara de Gira e começa a rir. Gira começa a achar que tava maluco, que o tal navio estava navegando na pista, que ia entrar no bairro etc. Enquanto isso, a cada vez que Verón olhava para a cara de Gira tinha um acesso de riso. Eles ficam nessa até o meio-dia, quando a onda do gel começa a baixar e vão dormir na casa de uma amiga de Gira que morava na entrada do Morro da Providência. 

De noite, acabam jantando na casa desta amiga, com Fiona chegando lá de convidada, pois também conhecia a anfitriã, e ri da tal história dos armazéns, dizendo que queria ter estado lá, mas não ficou sabendo o que eles estavam aprontando naquela noite e acabou indo para uma boate de playba no alto do Joá, ficou com um boy lixo para se divertir e depois de três horas nunca mais viu o cara na vida. Foi dormir na casa de uma amiga lá perto, no Joá, e de manhã foi fazer exercícios de tecido e de saltos na Fundição Progresso, recebendo o recado de Mirna, a dona da casa no Morro da Providência, para vir jantar com os amigos, que Gira e Verón estavam na casa dela. Depois da janta, os três seguem para a Lapa. 

Passam-se três dias e um fato estranho começa, pois Savinho não dava notícias há quatro dias, desde que numa noite foi visto vendendo esculturas e artesanato no Largo da Carioca. Foi quando Verón atinou e avisou Sâmio, que tinha um amigo delegado e que atuava na região da Carioca e da Uruguaiana. Depois de uma semana de investigação, dois moleques meio enrolados, evasivos e complicados acabaram falando que tinha rolado “uma parada” na Frei Caneca, e que dois caras bateram no tal artesão com “cara de fraquinho”, que parecia um “zé ruela”. Depois não souberam dizer, disseram que só lembraram disso. A polícia civil confirmou o mesmo enredo com uma comerciante e um dono de banca de jornal e tentou a descrição dos dois elementos, a câmera da rua registrou o momento em que um cara se aproximou do artesão, depois a câmera apaga, fica com rabiscos, e quando volta a imagem, já não tinha mais ninguém.

Depois de dois dias surge uma nova testemunha, que era Robertão, dono de bar na Frei Caneca, que afirmou categoricamente que o bichinha dos cacarecos tava com dívida com agiotas, e foram cobrar a paga. Robertão disse que o bichinha apanhou feio e foi levado pelos cabelos e pela cabeça até dentro de um opala todo fudido, marrom claro, e o carro saiu em disparada, depois não disse nada, pois preferia se calar, mas o delegado convenceu Robertão, que ele tinha proteção garantida, que sua denúncia ficaria no anonimato, e os caras eram, portanto, um agiota de nome Everaldo e outro de nome Zequinha, e que viviam assacando trabalhadores nos arredores, e tinham relação com o jogo de bicho, pois Zequinha também era apontador do jogo de bicho numa das esquinas da Frei Caneca. 

Agora o trabalho era ver as câmeras da cidade para acompanhar a trajetória do opala, ele zune pela Rio Branco, pega o Aterro do Flamengo e segue até o Recreio dos Bandeirantes, onde finalmente some da captação da central da prefeitura, pois ali havia locais incógnitos. Mas já se sabia que a placa do carro era clonada, e num cruzamento de informações se descobriu o endereço de Zequinha, que morava na Rio das Pedras, e de Everaldo, que morava na Gardênia Azul. Os dois não foram achados em suas casas, e passaram a ficar como procurados e foragidos. Enquanto isso, uma força tarefa procurava por notícias de Savinho, para saber se estava vivo ou morto. Depois de seis meses de investigações, uma arcada dentária foi encontrada na Baía de Sepetiba e foi identificada como de Savinho, sendo depois encontrado seus restos mortais dentro da baía, e uma carcaça de opala queimada tinha sido encontrada numa região perto da Praia da Macumba, mas não se sabia se era do mesmo opala de placa clonada dos meliantes, mas que tinha gotas de sangue seca. Depois de um exame científico se confirmou ser do DNA de Savinho, pois uma amostra de um pedaço de estofado que não tinha pegado fogo deu para examinar em condições ideais e não se teve mais dúvida, agora era ir à caça dos fugitivos. Depois de dois meses, finalmente, Everaldo foi preso, estando na casa de uma namorada na Costa Verde, e se descobriu que Zequinha tinha sido executado pelo tráfico, pois a polícia civil tinha dado uma incerta perto de uma boca e quase que a casa cai por causa das “alopragem” de agiota de Zequinha, pois a civil veio atrás dele.

Verón, Gira e Fiona comemoram, junto com Sâmio, a solução do caso, e haveria um evento juntando os grupos Duelo e Borogodó para homenagear Savinho. Uma festa com muita cerveja, foi montado um espetáculo escrito por Sâmio, e que tinha dança e música e que terminava num grande ditirambo dionisíaco. Fiona consegue fazer um número circense de equilíbrio e disse que em duas semanas viajaria para a França para fazer um teste no Cirque Du Soleil, que era seu objetivo de vida principal. Fiona passa no teste e teria que se mudar para Paris o mais rápido possível, e então organiza uma festa na Lapa, em que se mistura suas amizades da alta sociedade e o pessoal da boêmia da Lapa, em que se juntava o pessoal do teatro e uns malandros bêbados de quem Fiona tinha feito também amizade, pois se misturava com todo mundo e mais um pouco. No final faz um discurso e chora, mas disse que estava prestes a realizar um sonho e que com sonho não se brinca. Pega um avião e aluga um apartamento perto da Gare Du Nord, para ficar perto do trem.

Sâmio faz uma visita ao novo ateliê de Verón, um que ele era solo, que não era mais dividido com outros artistas, e ali consegue vislumbrar a usina de experiências que Verón estava gerando. O novo ateliê que ficava numa grande sala comercial do centro, já depois da Lapa, acima de um teatro médio, e o acesso ao ateliê era restrito, só Verón e o zelador da edificação tinham as chaves. Sâmio teve acesso, pois Verón considerava o diretor e produtor teatral como um mestre seu, até um segundo pai, e queria sua posição sobre o que estava produzindo, pois sabia que tinha dado um salto enorme desde a trilogia que tinha sido apresentada na Lapa, ainda com os recursos do teatro de rua. Sâmio apenas diz para que Verón continuasse, pois aquilo era História.

Sâmio, junto ao grupo Duelo, desta vez monta Ubu Rei, de Alfred Jerry, como uma intervenção urbana e política. O agito se dá até meia-noite, na Lapa, em que a montagem vira uma festa ditirâmbica, contudo, policiais aparecem e começam a dar dura em alguns espectadores, um transeunte protesta, e tem uma confusão, com três moleques de rua e uma travesti sendo levados, sob os apupos do público e dos atores e atrizes, e gritos de “fascistas etc”. Um sargento coloca sua equipe para acabar com o evento, e quase que Sâmio leva uma cacetada, passando raspando pela sua orelha direita. A montagem é dispersada e Sâmio, que tinha autorização da prefeitura para a montagem, pois não era nenhuma idiota, denuncia os policiais envolvidos no incidente, que acabam passando por um processo administrativo que não dá em nada.

Enquanto o tal projeto de Verón ficava quase pronto em seu ateliê solo, ele curtia bem a boêmia da Lapa e da Gamboa, e estava saindo com malandros do submundo, e muitas vezes ia com o Gira para flanar tanto pela Lapa como pela Gamboa. Numa noite, depois de muita cerveja e cocaína, rola o tal LSD de gel, que um cara arrumava, mais uma vez, lá pelas bandas do bairro da Saúde, e desta vez Verón e Gira, cada um toma um gel inteiro, sem dividir. O negócio começa a bater três da manhã. Eles zanzam pelas ruas, Gira começa a dar gritos e delirar, Verón tem crises de riso e visões de gatos pulando dos prédios. Gira começa a ter visões dantescas e entra numa bad trip. Verón, alheio ao que rolava, continuava tendo seus acessos de riso, e Gira deita numa esquina da Gamboa e dorme no chão, delirando, achando que ia morrer. Verón, viajando intensamente, não se dá conta e esquece de Gira, vai até seu ateliê, já às oito da manhã, para trabalhar, ainda viajando de gel, e depois fuma um cigarro e dorme. 

Gira é acordado por um comerciante local da Gamboa, às sete da manhã, e o tal comerciante vê que Gira não estava bem, pois não falava coisa com coisa, embaralhava a conversa e nada fazia sentido, e tinha um papo mágico, de visões etc, que faz com que o comerciante chame o Samu para levar Gira para um exame etc. Gira estava em surto, a viagem do gel detonara um surto psicótico em Gira, ele é examinado por um psicólogo e é encaminhado para uma internação no Capes, seu primo Ataíde é que fica sabendo do paradeiro de Gira somente três dias depois da noite na Gamboa, pois tinha falado com Gira naquela noite, e logo concluiu : “Ele estava com aquela porra do Verón, puta que pariu!”. 

Ataíde chama dois amigos, ele morava no Morro da Providência, para “pegar o Verón etc”, Sâmio fica sabendo da movimentação, e sabe-se lá como, deu um jeito na situação, dizendo que Verón era assunto dele etc. Ataíde controla a raiva e acaba dissuadido, pois Sâmio afirma que aquilo tudo ia piorar se tivesse polícia e que era para Ataíde tomar conta de Gira e sair de confusão. Ataíde, que conhecia Sâmio desde criança, acaba ouvindo os conselhos do “tio Sâmio”. 

Depois de segurar a onda do Ataíde, que decidiu, a pedido de Sâmio, não arrumar treta, mas não queria mais ver e nem falar com Verón, Sâmio foi falar com Verón e avisou que se ele continuasse misturando sua vida artística com aquela loucura toda da noite, que seria uma pena, pois ele perderia um gênio. Verón tremeu nas bases, mas achou que aquilo era uma idealização de Sâmio, e que tinha um caminho longo pela frente, e que sua arte estava prestes a bombar nos holofotes de galeristas, e que ele poderia cheirar meio mundo com a grana que iria ganhar. Verón parecia não perceber o estágio em que já estava, pois apresentava uma resistência ao consumo de substâncias, mas o que Sâmio quis dizer que aquilo tudo era uma bomba relógio, que funciona em silêncio até explodir.

Um pouco depois daquela conversa, as coisas mudam, e Verón se afasta do grupo de teatro e também de Sâmio, começa a sair para boates e lugares mal frequentados, também acaba se afastando de muitos dos amigos que conhecia do teatro de rua e se junta a uma turma de artistas e um marchand que tinham uma aura sinistra e parecia que Verón entrava num novo mundo autodestrutivo fingindo riqueza e controle, pois o modus operandi daquele grupo de afetados era de algo clean, quase asséptico, mas por trás de tudo havia um consumo industrial, sobretudo de cocaína. O modo com que conversavam entre si, era tudo muito diferente, distante e afetado, e Verón, talvez pelo consumo desvairado de pó, também já tinha mudado muito, tornando sua rotina uma coisa fria, intensa artisticamente, mas com a emoção de um estenógrafo ao lidar com familiares e amigos antigos, e ficando na maior parte do tempo sem dar notícias. 

Verón armava seu trabalho em seu ateliê individual (também havia deixado a produção coletiva em artes plásticas da Rua do Lavradio), e tinha a ideia de fazer uma grande exposição dinâmica, e que na sua cabeça era uma mistura de arte e temas literários e a apologia da cocaína, algo polêmico, mas que na sua concepção era algo disruptivo, radical, revolucionário, e uma associação com cosmologia, cosmogonia, ego, morte do ego, overdose, exemplos da “interpretação dos sonhos” de Sigmund Freud, e mais o tema da extinção do tráfico de drogas e da liberdade do corpo e da liberdade química. Verón sabia que fazia algo grande, com extensão e conteúdo, e também sabia que era uma faca de dois gumes, e sentia cheiro de problema, mas talvez fosse polêmica e problema o seu objetivo.

Sâmio consegue o contato de Verón depois de muito tempo, encontra o artista junto ao marchand daquela galera esquisita com quem andava agora num restaurante bem caro, cheio de ostentação, acha aquilo estranho e viu como as coisas tinham mudado. Não gosta do que vê, nem da conversa, e enfim desiste de Verón, percebe que já não fazia parte daquilo, que Verón tinha ido para um outro mundo, e era algo esquisito, bem coisa própria do pó e de suas sugestões, coisa que Sâmio sabia por ter usado a droga ligeiramente. Ele sabia que Verón estava encrencado, mal acompanhado, apesar de ser também uma má companhia para algumas pessoas, e caiu fora daquilo.

Neste ponto, falando nisso, Gira agora tinha saído da internação, mas estava morando com a mãe e a avó, acomodado, sem fazer porra nenhuma, e fumando um cigarro atrás do outro e tomando medicações para se manter sóbrio. Estava levando uma vida pacata e controlada, mas no sentido de uma vida pálida, se fechando num casulo, e consumindo ao menos quatro maços de cigarro por dia. Gira estava irreconhecível, tinha desaparecido, era alguém mudo a maior parte do tempo, tendo vezes que murmurava alguma coisa e acendia um cigarro, ficando no quintal de casa ou vendo televisão meio que aleatoriamente, sem conexão com o que passava na TV.

Verón ficou sabendo, depois de muito tempo, da situação de Gira, mas não sentiu quase nada, estava muito ocupado com seu projeto, e tinha o planejamento de um duplo lançamento, um primeiro, menor, e um segundo, depois de um mês, que seria o projeto principal. A vida noturna continuava intensa, e em meio a esta galera esquisita, que envolvia Verón em descaminhos cada vez maiores e mais insustentáveis, ele também gastava tudo em pó e putaria, voltava de manhã para o seu ateliê, e praticamente não mais dormia, só tirava uns cochilos, estava ficando com a cara emaciada, a pele fina e branca, os olhos não expressavam nada além de uma constante névoa de ressaca de bebida e cocaína, e suas emoções pareciam aplainadas, assim como sinais de afeto. O aviso de Sâmio vazou pelos ouvidos e nada causou, o caminho era cada vez mais tortuoso e vertiginoso, em meio às produções insanas de um artista workaholic e genial. 

Sâmio aparece mais uma vez, perto da Gamboa, onde sabia que Verón tinha um contato que era um mala que fazia corre e morava em Parada de Lucas, e ficou de propósito na esquina vendo o pessoal ali, a galera que estava com Verón, e depois a negociação entre Verón e o tal mala. Sâmio tentava descobrir se um boato que ouviu de um ator do Borogodó era verdade, que na verdade o negócio era pior do que parecia, pois este ator sabia de um pessoal que estava vendendo armas e drogas, e ainda tinha um esquema de roubo de carga. Estranho foi que Sâmio ficou sabendo que Verón agora morava numa casa num condomínio da Barra, depois de sempre ter morado pela Lapa e arredores. 

Sâmio, depois que a tal “conversa” entre Verón e o tal mala acabou, foi atrás de Verón, o abordou, e foi fazendo perguntas sucessivas, Verón era evasivo, muitas vezes cínico, e tentava cortar a conversa fazendo perguntas sobre o teatro de rua, como o pessoal estava, de que “não teve mais tempo de ir ver as peças etc”, mas Sâmio fez investidas até finalmente prensar Verón e inquirir sobre histórias de criminalidade, como é que tava a vida, e a noite etc. Verón começa a ficar incomodado e disse para Sâmio sumir, pois não queria envolvê-lo no corre, sabia de coisas, acabou admitindo, e por isso falou para Sâmio sair dali, pois tava começando a dar bandeira. Sâmio insiste, fala para Verón abrir o jogo, ele fala pouco para Sâmio, resiste, e ao fim consegue que Sâmio vá embora.

Passam-se dois meses e Verón, junto com um galerista de renome, começa a primeira parte de sua exposição individual, pois tinha assinado um contrato com uma galeria de renome internacional, e seu nome já circulava pela França e Alemanha, já tinha feito viagens esporádicas, expôs junto a outros artistas em coletivas e planejava uma individual em Paris e depois na Inglaterra, já com a grife da galeria da qual agora era contratado. A primeira parte, chamada “romance com cocaína” é lançada no Rio de Janeiro, depois vai para São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e depois Belo Horizonte, um mês depois sai a segunda parte, chamada de “Cosmococa”, que faz o mesmo tour, e depois tanto “romance com cocaína” como “cosmococa” vão para a França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha e Suécia. Verón ganha uma fortuna, sobretudo da Sotheby's, e ainda uma bolsa em que fica dois meses num laboratório de artes em Paris.

Romance com cocaína relacionada artes plásticas com literatura e o tema sobre a droga dos andes, desde o chá de coca até a sua versão sintética, e cosmococa era um poliedro químico que misturava uma concepção cosmológica própria e o tema da cocaína, e na montagem dos materiais se encontrava a própria substância. Foram feitas denúncias sobre uso de drogas e apologia durante as montagens de “cosmococa”, bem mais explícitas e literais que a do “romance com cocaína”, só que um marchand experiente, a curadoria e a galeria que contratou Verón conseguiram blindá-lo. Claro que esta blindagem começou a criar fissuras, pois a autopromoção maníaca de Verón começava a colocar toda aquela orgia na cara de todo mundo, como uma espécie de porra louca que veio para “epatér la bourgeoisie”.

Fiona encontra Verón num bistrô de Paris numa tarde, no período em que ele fez o tal laboratório de artes plásticas, e teve uma impressão péssima, parecia estar conversando com outra pessoa, que não era a do teatro de rua, Verón parecia frio, sempre estava maquinando, calculando, muitas vezes tinha que atender seu celular e falar como se tivesse usando códigos e escamoteando tudo. Fiona, que tinha sido muito amiga de Verón, sobretudo na época das montagens do Borogodó, depois de duas horas, cafezinho, croissant etc, decide encerrar a conversa e sair dali. Verón não liga muito, e continua a sua saga autodestrutiva. 

De volta ao Brasil, a tour continuaria para mais uma montagem no Rio de Janeiro, no Riocentro, das duas partes da série de forma simultânea. Em meio ao evento, uma movimentação estranha começa, e alguém denuncia a montagem “cosmococa” anonimamente dizendo que lá, nos camarins, estava tendo “orgias de sexo e de drogas”. Tal denúncia, por sua vez, ia ao encontro de uma investigação que já durava sete meses sobre um grupo de galeristas, um marchand e alguns artistas que atuavam com tráfico de drogas e de armas e roubo de cargas, pois se tratava de uma organização criminosa que lavava dinheiro do crime com as montagens de exposições e divulgações de arte, tudo pelos registros de nomes de galerias falsas, pois a galeria que contratara Verón, por exemplo, sequer imaginava que havia lavagem de dinheiro nas montagens de “romance com cocaína” e “cosmococa”, uma vez que Verón tinha enganado o galerista francês que o contratou, dizendo que 50% do lucro das exposições iriam para três galeristas menores do Rio de Janeiro, com os quais tinha “uma dívida de gratidão etc”.

No final do horário programado das montagens simultâneas, a Polícia Federal entra na exposição “cosmococa” com um mandado de prisão contra Verón, e junto ao artista plástico, mais onze pessoas são apreendidas para averiguação, e é apreendida uma quantidade razoável de maconha e cocaína. Verón é preso por crime de tráfico de drogas, especialmente cocaína, tráfico de armas, mas sem ligação com a parte da quadrilha que fazia roubo de cargas que, no caso, as prisões efetuadas envolviam desde o tal marchand, como toda a patota que Verón frequentou nos últimos anos. Sâmio fica sabendo de tudo, e que Verón pegaria uma cana de dez anos, em regime fechado, sem chance de relaxamento, pois teria que cumprir a reclusão na íntegra. 

Sâmio encontra Verón depois de dois meses que o artista estava preso, e confirma com ele que “você lembra do que falei, que ia perder um gênio, você não ligou, foi fazer isso daí, esta merda toda, eu te falei, você jogou pela janela seu dom, eu queria ter isto que você tem, mas muitas vezes a natureza gosta é de desperdiçar, eu nunca vou conseguir fazer o que você faz, sou um homem do teatro, mas nunca tive esta aura, que sei que você tem, mas, esse pessoal é foda, você não foi o primeiro e nem será o último, é que nem pegar um tesouro e queimar, e você queimou tudo, o fato é que eu tinha medo, mas aconteceu, eu perdi um gênio”. 


Conto pronto em 09/10/2024


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com 


DISMALAND

 

O parque foi montado por um grupo de artistas que usavam estêncil, pixo e grafite. Alguns artistas plásticos e de circo se misturaram ao grupo original e veio a ideia de fundação deste parque alternativo de nome “Dismaland”. Dois amigos, Fred e Royce, por sua vez, decidiram ir até lá, pois tinham ido ao famigerado Tívoli, que era meio esquisito, mas o Dismaland parecia o produto de horror cósmico lovecraftiano mais doido do que qualquer trem fantasma fuleiro do terceiro mundo ou montanha-russa com looping em que alguém chame o raul sem avisar. 

O grupo que desenvolvia o tal conceito-Dismaland não tinha muito juízo, ao passo que a dupla de amigos era de dois idiotas que falariam merda, provavelmente, durante o tour inteiro pelo tal novo parque de atrações. Fred, um zé buceta de marca maior, e Royce, um pau no cu que não entendia nada de porra nenhuma, sabia alguma coisa de rock, e de resto, sua cabeça era totalmente vazia. 

O líder do grupo de artistas que criou o Dismaland tinha o nome artístico de MX-G, que sabia das mecânicas cósmicas, muita bala de menta, gengibre, e roldanas, ritos pneumáticos, gasolina, zigue-zague, noções sobre hidráulica, pichar, pintar, fazer bonecos de vodu, esculturas, envenenar políticos com estêncil etc. Outro dos artistas era uma mulher jovem, de nome artístico La Vendetta, e que fazia serigrafia com roupas, xerox, tatuagens, pintava, fazia esculturas, matava suas namoradas lésbicas em rituais de sexo, ou seja, trocava de parceira, deixando um estrago para trás, não lamentava, fazia música eletrônica, tomava MDMA, e atacava de DJ em festa rave. O terceiro principal do grupo Dismaland, por sua vez, tinha o nome artístico de Chalk Boom, e fazia muito estêncil e era muralista usando spray, além de queimar seus desafetos com gasolina, pois era um racer de primeira. 

Sobre o conceito-Dismaland, depois de MX-G se destacar como artista de estêncil na cidade de Mega, sendo herdeiro do movimento de grafiteiros que tinham gerado artistas de galerias como Noam e Phil MC, que também era DJ de hip hop, MX-G era agora considerado um dos maiores da História do movimento que vinha deste primeiro, isto é, o que um dia fora o The Urban Crew, agora tinha um grupo de vanguarda de rua de nome Falcons.

MX-G já estava milionário só com suas intervenções de estêncil e ainda tocava numa banda de Trip Hop de nome Radicals, que tinha ao menos três álbuns clássicos, dois do fim dos anos 1990 e um já em 2005. Agora tinha um projeto paralelo que misturava rap e jazz, num clima psicodélico, de nome Voodoo Lounge, e que tinha lançado um álbum cultuado tanto por hipsters como pelo pessoal ligado ao hip hop, de nome Freedom`s Station, só com músicas instrumentais. 

Por sua vez, La Vendetta era empresária de uma rede de lojas de roupas, logomarca que surgiu da evolução de seu trabalho original de serigrafista de estampas, a famosa peita, em que fazia desenhos originais, e também estilizava com nomes de bandas e figuras de personalidades de domínio público. Se destacava também como DJ de circuitos de festas rave, tanto em Mega como nos arrabaldes, como na pequena cidade de Stone, que tinha meio que virado uma Meca tanto para o grime, o UK, mas sobretudo o techno e o trance de eventos de festas rave, uma cidadezinha de sítios simpáticos e que agora vivia alugada para festas gigantes de malucos que vinham tanto de Mega como de fora. 

Numa dessas festas, uma das maiores, a Fusion, que tinha edições semestrais num grande sítio de Stone, foi que se projetou o trabalho de La Vendetta como DJ e que retardados chapados de LSD como Fred e Royce iam sem entender o conceito musical, artístico, etc, só para fritar e derreter no meio do gramado. Fred falava sem parar sobre o que ia fazer, e era muita coisa, mas nunca fazia nada, passava a tarde em casa vendo TV, agravando o caso depois que sua faculdade, onde cursava História, ficou 6 meses em greve. Royce era mais playba e ainda não fazia faculdade e tinha reprovado duas vezes no ensino médio, tinha entrado numas de malhar e tomar bomba e parecia um toco de amarrar jegue, com uma cara de psicopata cheirando lança-perfume na última edição da Fusion. 

Chalk Boom, por sua vez, se destacava como muralista nos paredões de prédios, sobretudo no subúrbio de Mega e com algumas intervenções conhecidas no centro de Mega. Como racer, tinha ganhado um título de campeão de 500 cilindradas de motociclismo, e depois foi vice-campeão, ficando em quinto na última temporada. Tinha começado nas 200 cilindradas, ficando com uma terceira colocação e um vice-campeonato, isso entre motociclistas de Mega e de fora, e pretendia correr mais dois anos e se aposentar, passando a virar um consultor na equipe Paragon, na qual corria já há sete temporadas nas 500 cilindradas. No seu trabalho de estêncil, só ficava atrás, em influência, sucesso e valor de mercado, de MX-G. 

A junção agora de MX-G, La Vendetta e Chalk Boom para o projeto de Dismaland era já uma evolução dos chamados sítios de intervenção que eles já faziam nas edições da Fusion, e que agora vinha como um parque alternativo. Os Falcons, que tinha nascido da costela do The Urban Crew, era um conceito atualizado e contemporâneo do que vinha da vintage coletivista da The Urban Crew, e era um diálogo entre artes visuais e música eletrônica, trip hop de down beats e a cultura geral do hip hop.

A Fusion, organizada por um empresário workaholic do centro de Mega, John Dayton, era a festa mais concorrida e visada das temporadas que ocorriam, sem parar, lá pelas bandas de Stone. John Dayton, inclusive, já tinha namorado La Vendetta, que tinha o nome civil de Mônica Messina, e que depois priorizou seus relacionamentos lésbicos e efêmeros. Dayton vivia à mil, muitos falavam que ele tomava MD, mas era café, guaraná e um complexo vitamínico de neurótico, dormindo três horas por dia, sem ter o costume de tirar folga ou férias. 

No grupo do Falcons, por sua vez, que era um coletivo bem numeroso, com uma administração descentralizada, como uma marca, um símbolo comum, que diferentes vertentes compartilhavam em Mega, esse vasto coletivo, consequentemente, se subdividia, tendo então, por exemplo, os chamados núcleos, e MX-G, La Vendetta e Chalk Boom faziam parte do The Movement, um dos grupos principais ligado aos Falcons, assim como o Klaxon, que atuava mais como revista e entretenimento, com uma publicação de música alternativa e eletrônica que vendia bem em Mega e outras cidades.

A revista Frame, a principal publicação do grupo Klaxon, dialogava muito com as práticas do The Movement, e a novidade do Dismaland, em Mega, não passara batido, e era um esforço vindo do The Movement, mas que repercutia por todo o espectro dos Falcons e no cenário cultural da cidade como um todo, chegando também aos ouvidos de Dayton, idealizador e organizador da Fusion, e que agora negociava diretamente com La Vendetta, a secretária executiva de Dismaland, uma primeira edição da festa Fusion no tal parque, e que seria também a primeira edição em Mega.

MX-G, por sua vez, deu uma longa entrevista na Frame, falando sobre as suas duas bandas, as coisas no The Movement, e sobre o Dismaland. “Sei que o Radicals deu uma parada agora, desde o ano passado, e estamos, nós, o Dude, e o Phil L, cada um tocando seus projetos sônicos, bem legal, e muito doido também, pois os caras deram umas deixas na gravação que fiz com o Voodoo Lounge, e minha ideia amadureceu em três semanas intensas, era misto de jazz com hip hop, algo suave e beirando uma psicodelia sônica que está no contemporâneo, longe de cataclismos de Moog datados ou engenhocas valvuladas nostálgicas ou simulacros, para todo mundo fumar maconha e fingir que está em Woodstock, uhuuuh!, e esta coisa toda”. MX-G parecia mais um operário, um mecânico, meio professor pardal, do que alguém muito louco que vivia movido a mescalina, MD e produtos voláteis. 

MX-G deu a deixa, quando o repórter perguntou : “É bem ultrapassada esta confusão entre criatividade e consumo de drogas, o que acontece é que tem as histórias da La Vendetta e toda a lenda em torno das raves e das festas da Fusion, e eu ando com ela (La Vendetta), e mistura uma crendice de que todo mundo que é criativo tem que ser muito doido e viver chapado de LSD como se estivesse em Monterrey, lá em 1967 etc.” 

A Frame, por sua vez, era uma revista que estava ficando bem popular entre a juventude de Mega e de outras cidades grandes, e tinha virado uma fonte de dinheiro para o grupo Klaxon, que agora tinha um ativo tão forte quanto a inserção do The Movement na Fusion e no projeto do parque de Dismaland, o que colocava o espectro de criação artística de Mega chamado Falcons dividido entre duas vertentes principais, o The Movement e o Klaxon, já chamando a atenção de Dayton, que queria capitalizar tudo e virar um acelerador para aqueles diversos artistas e suas criações, como alguém que vivia numa terra avançada e de oportunidades, pois ele via aquilo como investimento, longe do atraso de jerks empreendedores de milho e de trigo que cultivavam uma relação atrabiliária com a arte desde sempre.

Em Dismaland, por sua vez, era preparada a inauguração do parque. Vindos do Tívoli, os amigos retardados Fred e Royce um dia encontraram MX-G na rua e perguntaram do tal parque, eles meio que ficaram pasmados e puxando o saco, falando das pinturas de estêncil, enquanto MX-G, que tinha trinta coisas para fazer, sorria simpaticamente, falando pouco, até achar uma deixa para deixar os jovens ali, e tocar a agenda para a frente. Uma hora que Royce começou a falar de ácido, MX-G falou “ah, tenho que falar com La Vendetta disso, inclusive, valeu, até mais!”. 

A inauguração teria o título de “A viagem do mago”, e funcionaria como uma intervenção-ensaio, e os brinquedos temáticos não foram divulgados, era um segredo bem guardado. Contudo, La Vendetta foi com Dayton para que ele visse as novidades no parque, e ele disse que iria investir naquilo, que era diferente, sem afetações pretensamente infantis, meio horror show etc. Dayton vivia cada vez mais nos bairros boêmios de Mega, e abriu um escritório de sua empresa no bairro de Platina, onde ficava o parque Dismaland e um dos principais ateliês do The Movement, liderados por MX-G e Chalk Boom.

Enquanto isso, no centro de Mega, na área de prédios financeiros, espelhados, Chalk Boom se encontrava pendurado a 60 metros, fazendo um mural enorme, um paredão de um prédio em que ficava um dos principais escritórios de Dayton. Com várias armações empilhadas, equipamentos de segurança, máscara etc, Chalk Boom sacudia um arsenal de sprays, e aos poucos se definia a imagem de um parque temático, era Dismaland, mas numa versão fictícia, com seres alados e um sol psicodélico no topo. Também havia formas geométricas e pós-cubistas que compunham o paredão, em que cores quentes e cítricas dominavam o cenário do que até então tinha sido um pálido paredão cinza claro.

Depois de fazer trabalho de DJ no chamado Festival Rocca, em Stone, que durou sete dias, La Vendetta marcou uma reunião com outros DJs e dois produtores, um deles era da Fusion e a questão era a de montar as tendas da Fusion numa primeira edição em Mega, mais exatamente no mesmo terreno em que ficava o parque Dismaland. La Vendetta disse que depois da inauguração levaria a equipe para visitar o local e estudar junto com um mestre de obras as condições para adaptar a festa dentro do próprio parque. Em comparação ao terreno de Stone, que era de um fazendeiro, e que envolvia um resort e um imenso campo de golfe, o terreno em que ficava o parque Dismaland também era grande, mas comportava um terço do espaço aberto que havia na fazenda de Stone, o que diminuiria o número de pistas temáticas, por exemplo. 

Dayton, por sua vez, que era o único de fora da equipe original que tinha visto toda a montagem do parque de Dismaland, faz a inauguração de seu mural no centro de Mega, e Chalk Boom acaba contratado por uma construtora que estava com um imenso condomínio quase pronto para venda, mas que o dono da construtora teve a ideia de contratar o grafiteiro para que os paredões dos prédios fosse preenchido com grafites gigantes, no que Chalk Boom teve que montar uma equipe de vinte grafiteiros muralistas para dar conta do recado, e depois de pronto o trabalho, o tal condomínio foi inaugurado, num bairro novo e projetado de Mega, com extensões enormes, avenidas para todos os lados, de nome Parque Novo, e o condomínio com o nome de Bella Vitta. 

MX-G, por sua vez, faz mais uma intervenção política de estêncil, em que o prefeito de Mega aparece em uma caricatura e cédulas voando. Tal trabalho ficava na entrada de um túnel num bairro decadente de Mega, de nome Carmelita, e a divulgação foi feita no dia seguinte no site do The Movement, e que ficou como banner do site por um mês. O prefeito tenta dissimular e convida o The Movement para um trabalho com a prefeitura, além de MX-G ser convidado para um encontro com o prefeito na sede da prefeitura, o que é recusado com um post na rede social, no reply do perfil do prefeito, feita pela arroba do The Movement, com o seguinte recado : “Não”, seguido de um emoji de vômito. Dayton adora, pois sabia que o prefeito era um cara encruado e atrasado, pois celebrar contratos em Mega era enfrentar um cipoal burocrático infinito, e uma súcia de funcionários letárgicos e infelizes que travavam tudo. Dayton dizia que os caras “só faltavam bocejar no telefone etc”.

Chega então o dia da inauguração de Dismaland, e que seria o tal evento temático “A viagem do mago”. Royce e Fred, a dupla de amigos idiotas, começam a se empolgar e separam um ácido para cada um. La Vendetta preparava uma abertura musical e depois uma feira de roupas e acessórios de sua loja, com muitos de seus trabalhos de serigrafia, que agora eram prensados em série por uma equipe, com ela dando as ideias criativas e práticas. A tal viagem do mago se referia, por sua vez, à seção principal de brinquedos de Dismaland, e que seria a primeira apresentação do parque, para depois mostrar os outros brinquedos, que tinham outros temas e pegadas. 

Duas horas da tarde de sábado, abrem as portas do Dismaland. O bairro de Platina estava com vários banners de divulgação, além de alguns outdoors com o logo do parque e desenhos, preços, e uma agenda já definida para três meses. Tudo muito rápido, pois a divulgação de datas só foi liberada na quinta, dois dias antes da abertura dos portões, sendo que antes só havia banners com o logo e quase nenhuma informação, além de outdoors propondo enigmas. Jovens, adultos e crianças aparecem. Na entrada estavam vendedores autorizados, pois a organização conseguiu bloquear o acesso de ambulantes, e era tudo linkado com a empresa de eventos que se associou aos produtores e idealizadores do parque, era um ambiente extremamente controlado, bem organizado, com gente experiente, até do que se fazia na Fusion, por exemplo.

A venda de bebida alcoólica era proibida tanto na entrada como dentro do parque, e dentro do parque havia franquias de lanchonetes e um restaurante, além de um espaço com bebedouros e banheiros gratuitos. Tickets para cada brinquedo eram vendidos no local ou por aplicativo, os preços eram bem salgados, mas se tratava de um projeto caro, custoso e ambicioso. Ninguém ali estava a passeio, ainda se tratando do pessoal do The Movement, que já estava tabulando com Dayton, o empresário mais antenado de Mega. Também havia uma franquia em que se vendia doces, pipoqueiros e vendedores de algodão doce, pessoas contratadas com tanquinho de refrigerante, água, suco e mate, além de locais para fotos instagramáveis, com cenários montados e pessoas fantasiadas que trabalhavam no parque.

O pessoal entra animado, e La Vendetta apresenta um set mais pop em relação ao que ela fazia em raves, e consegue lotar a pista, que era um gramado, com caixas de som em cada canto, e depois com as falas de MX-G, a própria La Vendetta e Chalk Boom, além de um produtor, este que também atuava na Fusion, e uma divulgação do The Movement, como a marca por trás da Dismaland, já anunciando a parceria com a festa Fusion e um agendamento que foi apresentado ali na hora.

O set de La Vendetta dura exatamente uma hora, começando e terminando pontualmente, sem enrolação, e o evento segue, tem a abertura dos brinquedos do setor principal, que eram os que estavam ativos, pois havia mais dois setores ainda por inaugurar e um novo que estava sendo negociado para Dayton entrar como investidor, sem no entanto virar sócio, pois não queria interferir nos rendimentos que estavam indo para o The Movement, que também era de seu interesse, uma vez que ele queria tornar toda a Falcon numa pool, como uma aceleradora, mas agora com assessoria e supervisão empresarial. 

A viagem do mago começa, eram, dentre diversos brinquedos, um trem que entrava num castelo, e ali se contava uma história fantástica, o mago era um dos últimos bonecos a aparecer no túnel, e se podia escolher itinerários diferentes, juntando um total de cinco enredos diversos quando se entra no túnel e seus acessos laterais. Um bate-bate bizarro, que, entre alguns carros, personagens fantasiados faziam uma bagunça, trollando os outros carros. Um carrossel que parecia um cenário de horror cósmico, com pintura decadente de propósito, uma montanha-russa em que se podia jogar lá do alto vômito de mentira, um plástico verde e uma bisnaga com geleca verde que caía do alto pelos que entravam para o brinquedo, o que tinha o ticket mais caro do parque. Um número de luz e sombras em que aparecia uma bruxa também fazia parte do conjunto de atrações, e no fim era uma correria desenfreada. Um lago artificial que tinha seres míticos e de terror também fazia parte da paisagem, onde o usuário podia usar um pedalinho e tirar fotos daquelas figuras fantasiadas. E num jump principal, de um elevador que caía, que ficava no centro do parque, na frente, se passava uma espécie de teatrinho em que estavam o tal mago e alguns outros personagens.

Por volta de quatro da tarde chegam Fred e Royce ao Dismaland, cada um tinha tomado uma bicicletinha e quando deu cinco da tarde bateu o negócio e os retardados ficaram rindo e falando merda, fazendo comparações esdrúxulas com o Tívoli etc. Fred dizia que “os artistas do Dismaland começaram lá no Tívoli, eu vi, eu era pequeno, e tinha a dancinha da conga hahahaha”, ao que Royce respondeu “não seja idiota, a conga é que começou lá no Tívoli e agora tá que nem uma quenga desempregada hahahaha”.  Fred atinou “o tal mago, falaram que ele voa, e ele voa, não é Royce?”, ao que Royce responde “sim, ele voa, tem suspensórios e eletrodos que ficam na bunda dele e ele voa”. Fred pergunta : “E as fadas?”, ao que Royce responde : “Eu vi uma saindo do banheiro, com um quite de maquiagem, ela brilhava de rosa e de vermelho, acho que o ácido bateu hahahaha”. Fred : “Agora a viagem do mago vai durar, e ele tá todo lacrado pela bunda, é um ator! hahahaha!”. 

MX-G viu os dois jovens passando e lembrou do dia na rua e pensou “caramba, esses moleques são muito chatos, deixa eu acelerar meu passo”, foi até a administração do parque, que era um escritório que ficava dentro de um contâiner, e lá conversou rapidamente com La Vendetta, pois Chalk Boom já tinha ido embora, pois estava dirigindo a equipe de muralistas do condomínio no bairro do Parque Novo e tinha que encerrar os trabalhos do dia por lá. A conversa foi fechar questão sobre a segurança do parque, pois os brinquedos tinham sido vistoriados e aprovados, os guias eram habilitados, tudo funcionando, no caso restava assinar o contrato com a segurança privada de uma empresa que cuidaria da vigília do parque e contra problemas disciplinares entre usuários de brinquedos, e foi escolhida a empresa, pois a equipe disponível ali no dia era provisória. 

O dia segue bem, anoitece e o parque fecha às oito da noite. Fred e Royce entram nos brinquedos todos, tinham tickets para tudo, comeram as bobagens das lanchonetes, o ácido durou até de noite, e no fim Fred disse “o bate-bate, acho que vi um vampiro lá, ele estava com sangue na boca, ele dirigia que nem um doido”, Royce responde “claro idiota, ele era um ator, também tinha prego na bunda dele, para ele ficar lá preso no bate-bate, o sangue era suco de groselha, para ele ficar lá fingindo que era perigoso, mas era a porra da groselha, bebidinha de bambi, hahahaha!”. Fred atinou “hahaha, groselha, bebida de moça, coloca um tang rosa, hahaha, bebe e faz cara de mau, hahahaha, se o mago beber groselha ele vira fada hahaha” Royce responde “se o mago bebe groselha, os suspensórios e os eletrodos que ficam na bunda dele começam a beliscar e ele começa a gritar hahahahaha”.  Aí chega um segurança e manda os dois retardados embora, pois o parque estava fechando e já estava tudo vazio.

MX-G, que saiu do contâiner por último, chegou a ver os dois moleques indo embora e pensou “puta que pariu!”, e chegou até o segurança e perguntou se estava tudo bem, sem mencionar os moleques que já tinham saído do parque sem vê-lo. Depois ligou para La Vendetta, Chalk Boom e Dayton e todos comemoram que tinha ido tudo bem e dado tudo certo na inauguração do parque, e que tinha lotado de gente, com uma porrada de tickets, lanches e bebidas não-alcoólicas vendidas, souvenires vendidos, camisas, bandeiras, pôsteres, fotos nos cantos instagramáveis etc. O próximo passo era garantir o tal evento “a viagem do mago” pelos próximos meses até a abertura do setor B e do setor C, para, finalmente, concluir o que seria um setor D, feito em conjunto com Dayton. 

Chalk Boom, um mês depois, conclui o trabalho coletivo no Parque Novo e coloca o The Movement para comprar dez apartamentos do tal condomínio, na verdade, com desconto de 75%, feita pela construtora, sendo que ele ia morar em um, e MX-G ia alugar outro, com outros membros da equipe de Chalk Boom alugando ou morando. O caixa do The Movement pingava cada vez mais e eles decidem comprar a revista Frame do grupo Klaxon. Parecia que o movimento era de engolfar toda Falcons, que era descentralizada, e criar uma única administração central, criando uma discussão interminável com Dayton, que queria comprar tudo e fazer um pool, um hub. 

MX-G e La Vendetta, principalmente, estavam ambiciosos, mas ao mesmo tempo receosos de dispensar a experiência de Dayton para os negócios. Chalk Boom era a favor do hub e que não queria perder tempo e virar um “homem da maleta” e ficar só com duas horas para grafitar etc. Mas, por sua vez, MX-G, que já estava milionário com sua arte urbana de estêncil, pois era um fenômeno gigantesco, estava pensando em expandir o The Movement e aumentar a sua influência na vida cultural de Mega, comandando e centralizando todos os eventos e intervenções. 

Depois de três reuniões, e com MX-G irredutível diante das propostas e sugestões de Dayton, o empresário desiste e disse que MX-G “iria se arrepender etc” pois “não sabia o que estava fazendo e que não entendia nada de negócios”. O tal hub ou pool, então, não sai do papel, e MX-G dá início ao movimento predatório de englobar todos os movimentos que formavam a Falcons e comprar e colocar a nomenclatura “The Movement”, aproveitando para registrar a marca em seu nome, colocando La Vendetta como sócia minoritária, com 33% das ações, ele tendo 51%, e Chalk Boom seria acionista por direito adquirido, com 11%, e os outros 5% com pequenos acionistas. Chalk Boom, mesmo sendo o terceiro maior acionista, avisou a MX-G que não queria saber de assuntos administrativos e que se concentraria em sua atuação em Mega com a sua equipe de muralistas. MX-G então ficou como presidente do The Movement, e La Vendetta como secretária executiva. Dayton, por fim, saiu bufando da última reunião com MX-G, e falou : “cara, você ainda vai se foder”. A esta altura, a tal edição da Fusion em Mega já tinha ido para o vinagre.

Mas o negócio era que tanto o Dismaland como a aquisição da revista Frame tinham sido lances de mestre, e Dayton teve que engolir seu ego de maior empresário de Mega (era o que ele pensava, mas tinha ao menos duas dezenas de empresários tão bons como ele pela cidade). Parecia que o mau agouro de quem se amuou ao ser preterido não tinha funcionado, e La Vendetta, que era ex-namorada de Dayton, ainda encontrava a figura, mesmo sabendo que ele tinha virado desafeto de MX-G, pois agora os dois se odiavam mutuamente, era um caminho sem volta. E MX-G vivia fazendo troça do tal hub, que era para Dayton aparecer, pois não era artista, “não sabia fazer porra nenhuma”, segundo MX-G. Dayton então, com suas empresas burocráticas, pela visão de MX-G, deixaram o empresário na vontade, e pior, quem aparecia era MX-G, com o Dismaland e a Frame. 

O que rolava não era um tino empresarial de MX-G, mas a natureza de seus empreendimentos, que atraía muita gente, e a revista Frame, por sua vez, que vendia bem sem nunca ter precisado sucumbir à mediocridade, era uma revista de arte conceituada e que ganhava prêmios. Dismaland, por sua vez, com um conceito ousado, até contra-intuitivo, pois poderia espantar pessoas mais suscetíveis, ficava cada vez mais concorrido e funcionava de terça a domingo, só fechando na segunda para manutenção e faxina. MX-G não era um contador, nem um administrador formado, fazia o que queria fazer, e dava certo. La Vendetta, por sua vez, percebia cada vez mais o ranço de Dayton e conclui que a tese de MX-G era verdade, que Dayton tinha tentado aparecer e não conseguiu, e que devia agora lamentar o fato de ser somente empresário, sem dons artísticos. MX-G ouve a conversa de La Vendetta e ironiza que ela “tinha descoberto a pólvora e que agora podia acender uma pira ou fabricar uma espingarda”. La Vendetta acaba se afastando gradualmente de Dayton, até que o contato esfria e cada um vai para seu lado. 

Foram feitas então as inaugurações do setor B e do setor C do Dismaland. O setor B que virou o “Vale dos Fantasmas” e o setor C que ficou com o nome “Os animais fantásticos”. O tal setor D foi um projeto que chegou a ser desenhado em prancheta, fizeram várias versões, mas esta parte do terreno ficaria para um parque aquático que foi arrendado pelo The Movement para um consórcio especialista no tema, de nome AcquaPlay, e ali puderam faturar para outros projetos de arte, sem relação com o Dismaland. O The Movement, depois de expandir a tiragem da Frame, também decide, de súbito, vender a revista, que acaba sendo repassada para uma editora de nome Vecchi, que transforma a Frame, em pouco tempo, num tabloide pop xexelento, enquanto MX-G embolsa grande parte do dinheiro da venda, sem reinvestir no The Movement. Tal venda da Frame nunca foi explicada ou justificada, somente com o argumento de que o “Dismaland teria franquias, os projetos de arte estão se multiplicando etc, mas nada relacionado à venda em si, que foi a morte da revista”.

O fato era que MX-G estava com diversos bens, entre casas, apartamentos, sítios, casa de praia, iate, lancha, residências no estrangeiro, com uma vida de nababo que ele explicava ser da “prosperidade do The Movement e de seus trabalhos de estêncil”, mas a proporção de aquisições de bens e de patrimônio era tanta, que alguns começavam a se questionar. La Vendetta não reclamava, pois também parecia estar se dando bem, e Chalk Boom, que ficava por fora, resolve contratar um escritório de advocacia para fazer uma sindicância das contas dentro do The Movement. 

A sindicância conclui que na contabilidade havia desvio no faturamento e na distribuição de dividendos, gastos do Dismaland que valiam uma fortuna que, em dois anos, não caberia nem em cinco parques daquele. Muito do dinheiro eram de notas ocultadas, como recibos diversos, além de contratos em que os valores estavam acima do valor real. Chalk Boom rompe a sociedade e entra na justiça pela indenização de todos os acionários do The Movement, e a treta vira notícia em Mega. Dayton fica sabendo de tudo e manda um recado por telegrama para MX-G, dizendo : “eu disse que você ia se foder”. MX-G fica irado, pega uma motocicleta e vai até o prédio em que Dayton morava com a atual esposa e uma filha pequena e invoca Dayton para descer para ver “quem ia se foder”. Dayton liga para a polícia e grava o recado agressivo de MX-G, repassa como ameaça física, e MX-G é detido, levado para a delegacia e sai depois de pagar fiança.

Depois de uma disputa na justiça entre advogados de MX-G e de La Vendetta, de um lado, e os acionistas lesados junto a Chalk Boom, de outro lado, o processo entra em trânsito em julgado pela condenação de MX-G e La Vendetta por apropriação indébita, desvio de dinheiro no The Movement, falsificação e fraude de recibos, além de serem obrigados a ressarcir os acionistas lesados com uma indenização milionária que, por sua vez, obriga MX-G e La Vendetta a negociar o Dismaland, que depois de um auge que durou cinco anos, sobretudo depois das inaugurações dos setores B e C, desde que começaram as disputas judiciais, tinha entrado em decadência, e agora o que era um projeto criativo de horror cósmico, parecia de fato uma peça de terror decadente, prestes a fechar e ser interditado. A sua venda não dá em nada e o parque vai a leilão tendo um deságio monumental de 70%. O Dismaland é comprado por Dayton, que manda colocar o parque abaixo. No dia em que foi feito todo o desmanche do parque, lá estavam Fred e Royce, de frente ao parque, e de Fred cai uma lágrima furtiva, e de Royce surge um sorriso triste e uma lágrima que sai na hora em que implodem o setor de “A viagem do mago”.


Conto pronto em 08/10/2024 


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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