PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quarta-feira, 24 de julho de 2024

REVIRAVOLTA NA POLÍTICA AMERICANA

“um movimento de cabeça envolveu o futuro das eleições americanas”


A política norte-americana, nos últimos dias, sofreu uma reviravolta impactante, começando pelo atentado ao ex-presidente e candidato republicano Donald Trump, que por um sutil movimento de cabeça ao ler um prompter escapou de levar um tiro de fuzil AR na testa, sendo que o projétil passou zunindo e fez sangrar a sua orelha direita, o que evitou uma tragédia. 

Ou seja, o destino da política americana se definiu entre a morte de Trump e o que acabou acontecendo, um atentado que falhou por muito pouco. Aqui, do reino do imponderável, se retira mais uma vez a sua eficácia, pois, um movimento de cabeça envolveu o futuro das eleições americanas e da História Americana e Mundial, uma vez que o fato quase foi outro.

Por sua vez, após este atentado do dia 13 de julho, no comício em Butler, na Pensilvânia, a diretora do Serviço Secreto dos Estados Unidos, Kimberly Cheatle, foi intensamente questionada e pressionada a renunciar de seu cargo. 

Ela participou de uma audiência do Comitê da Câmara nesta segunda-feira dia 22/07 e na terça agora dia 23/07 renunciou ao cargo do Serviço Secreto. As falhas de segurança no dia 13 de julho foram determinantes para a sua saída do cargo. Cheatle admitiu que o atentado na Pensilvânia foi o “fracasso operacional mais significativo” do Serviço Secreto em décadas.

Testemunhas afirmaram terem visto um homem com um rifle no telhado minutos antes do atentado. Cheatle foi questionada por esta falha e afirmou que estão sendo avaliadas responsabilidades e quem deveria fornecer vigilância. 

Após o atentado, chegou a informação de que a polícia tinha avistado o atirador com um telêmetro, mas o perdeu de vista. O atirador, por sua vez, ressurgiu num telhado próximo, atirando com seu rifle tipo AR. 

Antes de renunciar, Cheatle afirmou que um relatório completo sobre a investigação interna está em andamento e que será divulgado nos próximos 60 dias. Joe Biden, por sua vez, afirmou na rede social X que continuam as investigações sobre a tentativa de assassinato de Donald Trump, dizendo : “Estou ansioso para avaliar as suas conclusões. O que aconteceu naquele dia nunca mais poderá acontecer”. 

O atirador foi identificado pelo FBI como sendo Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, de Bethel Park, na Pensilvânia, e acabou sendo morto pelas forças de segurança no local, logo após realizar o tiroteio. Crooks também tinha material explosivo dentro de um carro e em casa.

E a reviravolta na política americana continuou, pois, depois de ser bastante questionado sobre suas faculdades mentais, sobretudo após os lapsos no debate contra Donald Trump, o atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, informou neste domingo dia 21/07 a sua desistência da candidatura à reeleição, em carta divulgada nas redes sociais, contudo, também afirmou que cumprirá o restante de seu mandato. 

Depois do anúncio, Joe Biden declarou o seu apoio a candidatura de Kamala Harris à Presidência dos Estados Unidos. Kamala Harris, por sua vez, conseguiu agregar rapidamente os democratas em torno de seu nome como candidata do partido e ligou o alerta no Partido Republicano. 

Outro fato importante foi que Kamala Harris conseguiu turbinar a sua campanha com mais de US$ 80 milhões em doações. Donald Trump reagiu atacando tanto Kamala como Biden nas redes sociais, demonstrando que o Partido Republicano sentiu o movimento e a pauta virando para os democratas depois do atentado ter colocado em destaque o nome de Trump. 

Uma reação atabalhoada também se deu através do presidente da Câmara, Mike Johnson, e alguns senadores republicanos, que defenderam a renúncia de Biden da presidência, alegando que se ele não tem condições de disputar a sua reeleição, também não teria capacidade de terminar o seu mandato atual. 

Houve até quem invocasse a 25ª Emenda à Constituição americana, que prevê a remoção do presidente do cargo, se for considerado incapacitado ou desonesto. Tal decisão, contudo, teria que ser liderada por Kamala Harris, vice-presidente e, por sua vez, presidente do Senado, o que demonstrou de novo a confusão republicana diante desta mudança de rota dos democratas. 

Por sua vez, Trump foi ungido na convenção de Milwaukee por seus simpatizantes cinco dias após o atentado na Pensilvânia. Contudo, o que seria um caminho para a sua revanche com Biden se deparou com a mudança democrata com a desistência de Biden e a aglutinação do Partido Democrata em torno de Kamala Harris, obrigando agora uma rearticulação da campanha republicana. 

Por fim, o comício de Kamala nesta segunda-feira dia 22/07, em Delaware, já mostrou as suas credenciais para a disputa contra Trump, afirmando a sua imagem como promotora de Justiça, contrastando com os escândalos jurídicos em torno de Donald Trump.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/colunas/reviravolta-na-politica-americana

quinta-feira, 18 de julho de 2024

ELEGIA DO POETA MALDITO

Descia os seus degraus, o pé direito enorme,

uma balaustrada rococó, mármores e basaltos

anacrônicos, servos enfileirados, e uma peste

que grassava nas hostes febris, as mortes

com os corpos azuis, com o frio que gelava

a alma, pois era todo este canto tétrico

de uma poesia gótica, e o enfermo,

cujo codinome já fora "poeta maldito",

navegava naquele ópio kármico,

os pulmões com água, o sopro

no coração baleado, um arfar

de velho que trota e cai,

e aquelas visões de paraísos

artificiais, no canto do cisne,

ao poeta que carregava 

um candelabro de velas

acesas, atravessando

o átrio, a grande sala,

e se jogando na correnteza

do rio, morrendo sua morte

suicida, como uma Safo

de seu penhasco.


18/07/2024 Gustavo Bastos - Monster

A MELODIA DOS SÓIS

O poema se arrumou, envolto 

na festa pagã, sob o giro 

do verso de vinho, inaugural 

de seu esplendor.


Na travessia, ao sopro das girândolas,

caminhando no bosque dos ventos,

a tirar da rosa o som, e o ritmo da 

borboleta esvoaçante.


E que nem um bardo faria, 

a poesia melodia cantava 

seu rouxinol, a mergulhar

como um albatroz no mar,

ao canto ferino do tigre,

na astúcia de uma raposa,

com as visões das fadas

de um mundo etéreo,

em transe profundo. 


18/07/2024 Gustavo Bastos - Vibe

O NOVO MUNDO

Aqui, no limiar da anarquia, só tenho visto a névoa,

eis a nuvem de cinzas, o cheiro de cigarro,

a fumaça de gasolina depois da barricada.


Uma marca de spray na parede com os 

dizeres : "Foda-se o sistema!'.

Este conluio, na verdade, sob a noite

em que se quebraram os vidros das

janelas, se arrombaram as portas

dos senhores, e as vitrines foram

saqueadas, anunciavam em neon

que era a Noite da Revolução.


Sei, havia uma meia dúzia

de déspotas assassinados,

um místico tendo visões,

e um novo demagogo,

que subiu em um púlpito

improvisado na praça.


Tal demagogo, um retórico,

estava a dizer sobre as novas 

regras da liberdade :

o poder de um novo

tirano, soberbo em 

sangue e glória,

embriagado de sua

persona, sendo 

um poeta do 

novo mundo.


18/07/2024 Gustavo Bastos - Monster

quarta-feira, 17 de julho de 2024

INTERNET E SISTEMAS COMPLEXOS - III

“o design da internet é um sistema complexo”

O rewilding se refere à restauração de ecossistemas saudáveis, no sentido da criação de biodiversidade, pois visa o ecossistema inteiro, com a abertura de espaço para redes alimentares complexas, pois aqui temos a perspectiva do todo ao invés das partes. 

Tal qual temos redes de computadores, no ecossistema existem interações multifacetadas e generativas. No caso aqui vamos falar do rewilding aplicado à internet, em que há uma mudança de pensamento linear para um pensamento sistêmico.

No rewilding temos a criação de espaços que promovem ecossistemas complexos e auto-organizados. No rewilding se pratica a gestão conhecida pelos bons gestores, isto é, se contratam os melhores e, por sua vez, se fornece os meios deles prosperarem, e por fim, os gestores saem do caminho deles, sendo aqui uma filosofia de trabalho oposta ao do comando e do controle.

Entender o rewilding aplicado à internet é conceber uma estrutura e um plano, e aqui se supera a ideia de controle, com novos meios de correção de problemas. Aqui se deve saber que acabar com os monopólios e duopólios da internet não se restringe a uma operação feita intelectualmente ou somente por meios racionais, mas sim sendo encarado também como uma questão emocional.

Será com o rewilding que se mudará a percepção de domínio das big techs para uma nova visão positiva referida a iniciativas independentes na internet, encarando com otimismo dinâmico este desafio de mudança deste cenário. O aspecto emocional aqui, portanto, se refere a esta mudança subjetiva e intersubjetiva de percepção e sensação.

A percepção de uma internet mais variada e aberta, em que usuários tinham blogs, visitavam mais sites no varejo, e podiam ainda programar computadores para a criação de jogos básicos, sendo superada por um controle de algumas mídias sociais e aplicativos de mensagens, dividiu gerações em que uma tem esta primeira memória e a outra nunca conheceu esta internet mais difusa e distribuída. 

Portanto, o rewilding, como esta mudança emocional de percepção, é um trabalho em andamento. Não se trata, contudo, da restauração literal de algo que existiu na primeira versão da internet para usuários civis, mas de retomada de uma resiliência do sistema, em seu todo.

Esta retomada poderá gerar complexidade através da restauração da autonomia de iniciativas dentro deste sistema, permitindo que a partir da multiplicação de players na internet, esta mudança ganhe escala e a internet tenha novamente abertura e uma estrutura resiliente.

Esta retomada, como não é um retorno, não se refere às interfaces antigas da internet, como o FTP e o Gopher, por exemplo, e nem mesmo de servidores de e-mails corporativos ou de organizações, pois a ideia não é combater soluções prontas e práticas como o G-Suite, mas entender quais recursos da internet podem estar disponíveis sem a mediação e controle das big techs. 

Alguns recursos dinâmicos que persistiram podem ser aproveitados, tal como temos o ressurgimento de feeds RSS, que servem como boletins informativos por e-mail e blogs, o que evita o risco de se expor a falhas ao depender de um único aplicativo para hospedagem de conversas. Por sua vez, temos novos sistemas que se expandem como o Fediverse e também o Bluesky, este que possui possibilidade de escolha algorítmica e moderação combinável.

A internet se tornou possível como um sistema geral ligado em rede, para o acesso de todas as pessoas, e isso possibilitou o seu crescimento inicial. Por sua vez, este gerenciamento centralizado pelas big techs pegou esta estrutura pronta e a modificou para seus interesses. 

Contudo, o design da internet é um sistema complexo, com interações abertas, e sua simplificação em setores fechados diminui a resiliência do sistema e a sua inovação. Por fim, as big techs entregam o seu serviço a seus usuários, por um lado, ao passo que lhes retiram a autonomia, por outro.

(continua)

Obs : 

1 - O protocolo FTP surgiu no MIT (Massachusetts Institute of Technology) no início dos anos 1970, tendo como desenvolvedor Abhay Bhushan. Ele funciona como um protocolo de rede para a transmissão de arquivos entre computadores, é uma aplicação para download e upload de arquivos em conexões do tipo cliente/servidor. O FTP é um dos protocolos mais simples e antigos para uso de transferência de dados.

2 - O Gopher Protocol é um protocolo de rede desenvolvido nos anos 1990 como uma alternativa ao WWW (World Wide Web), criado por uma equipe da Universidade de Minnesota, sendo muito utilizado antes do surgimento do HTTP e do HTML. 

O Gopher Protocol tem uma forma simples de navegação com menus hierárquicos para acesso de documentos de texto. Portanto, este protocolo armazena apenas textos simples, sem suporte para recursos multimídia, como imagens, áudios e vídeos, sem interatividade avançada como formulários e scripts. 

O Gopher Protocol foi amplamente utilizado nos anos 1990 para compartilhamento de informações na internet, também sendo utilizado em universidades, instituições acadêmicas, com vastas coleções de documentos e recursos educacionais. 

3 - Fediverse (este será tematizado em texto futuro aqui na coluna).

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/colunas/internet-e-sistemas-complexos-iii

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Internet e sistemas complexos - II

“a concentração da internet atual é desafiadora”

Na internet atual as infraestruturas confinadas criaram uma monocultura tecnológica que prejudica projetos diversos, distorcendo algo que foi criado em uma arquitetura que se dividia em camadas de protocolos, de software e hardware, operando através de diferentes provedores de serviços, em que funções eram mantidas separadas para garantir a resiliência e o espaço para inovação do sistema. 

A internet foi criada inicialmente para fins militares nos Estados Unidos, concebida por acadêmicos para ser um sistema usado em tempos de guerra. Por sua vez, a internet evoluiu, sobretudo a partir dos anos 1990, para um ambiente acessível a todos e que podia ser operada em qualquer lugar.

Esta internet livre começou como uma coleção de sites e links independentes, guiada por estas camadas dinâmicas e que hoje se engessaram em grandes placas de domínios e controles que estão ditando os rumos da internet, não mais como inovações de coletivos criativos e de código aberto, mas por orientações de mercado pelas big techs.

A consolidação das big techs como guias do destino da internet gera esta dificuldade atual de desalojar espaços ocupados por estas empresas globais, pois tal problema de monopólios e duopólios sistemáticos que governam todo o sistema atingem diretamente um princípio fundamental do que guiava a primeira versão civil da internet, aquela que existiu nos anos 1990 e meados dos anos 2000, que era de um espaço colaborativo, sem favoritismos.

Este crescimento do poder das big techs desmonta o cenário em que a descentralização e o espaço aberto para inovação e iniciativas diversas, isto é, a inexistência dos chamados “favoritos permanentes”, provocando o fim tanto da concorrência como da convivência e da cooperação que é esta ideia de “coletivos organizados” que a internet evoca quando se pensa na superação desta fase fechada que vivemos na internet atualmente.

A implosão das possibilidades colaborativas na internet atual, em que feudos e proprietários capitalistas tomam conta do pedaço, deixando a internet de código aberto como coadjuvante de todo o sistema, como ilhas utópicas de usuários avant-garde, em suas especificidades e nichos especializados, faz com que a inovação futura esteja comprometida com estes senhores do destino da internet atual, que são os interesses das big techs.

As big techs operam este governo, por sua vez, através dos algoritmos e de um enorme big data para ditar comportamentos, impulsos, desejos, consolidando este governo dos espíritos sobretudo com a formação de bolhas em que a percepção é obnubilada por espelhos que replicam o que o usuário se acostumou a pensar e a consumir. 

A consolidação das big techs implode por dentro a colaboração de provedores de serviços, apagando a cooperação e a operação por coletivos independentes, que ficam nichados e quase ocultos para a maioria, dando lugar a um ambiente predatório, de expansão de controles e domínios por umas poucas empresas globais bilionárias e trilionárias. Consequentemente, as iniciativas diversas feitas por organizações de desenvolvimento de padrões fracassaram diante do cipoal em que este controle e domínio são exercidos por estas empresas gigantes.

Os engenheiros da internet se viram imersos em minúcias técnicas, o que os impediu de se desvencilhar de seus empregadores e dos valores profissionais de simplificação e controle, criando um problema de percepção em que não se podia enxergar a floresta entre as árvores, isto é, a complexidade do sistema é tal que somente grandes estruturas administrativas são capazes de ter controle e domínio sobre este sistema e, por conseguinte, manipulá-lo via algoritmos e a criação de um acervo de big data cada vez mais sofisticado e eficiente para seus fins de expansão de poderes econômicos e sobre o comportamento humano.

O que ocorre é que esta percepção prática diante da complexidade do sistema é apenas uma primeira abordagem do problema e de possíveis soluções. Esta primeira impressão da internet atual como uma barreira intransponível para mudanças mais profundas pode ser contestada, no entanto. Pois a dificuldade de visualização de saídas e espaços de respiração na internet atual não pode ser uma justificativa para que empreendedores independentes fiquem paralisados, mas que operem, ainda assim, uma mudança de paradigma. 

Com efeito, a concentração da internet atual é desafiadora para quem quer atuar através de códigos abertos e de coletivos independentes e, ao mesmo tempo, sair da posição praticamente oculta de nichos e de coadjuvantes do sistema e voltar a protagonizar a inovação na internet e sendo até mesmo e novamente o seu futuro e o seu novo destino, saindo da fatalidade imposta pelo poder econômico e espiritual das big techs. 

Vemos que o tal destino selado pelas big techs tanto pode como deve ser superado, e a dificuldade de desvendar as fronteiras do sistema, dada a sua complexidade, não pode acovardar iniciativas inteligentes para operar difusamente e através das porosidades destes domínios e controles uma mudança progressiva de paradigma para uma nova internet livre e colaborativa.

É esta retomada da colaboração como ideia original da infraestrutura da internet, claro que em novo contexto, é que se fará a cooperação entre seus usuários e a realização de uma prática guiada por uma ideia de comunidade que supere a realidade das bolhas fechadas e alienadas, que é esta versão em que existe uma espécie de estresse e neurotização em que se vê a internet atual dominada pelas big techs e suas esferas de ódio e intolerância, uma distorção em que uma rede de informação e conhecimento se tornou um desfile de bizarrices e debates rasos e binários.

(continua)

Obs : no próximo texto entro com o conceito de rewilding, dando continuidade a esta série.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/internet-e-sistemas-complexos-ii 




segunda-feira, 8 de julho de 2024

WISLAWA SZYMBORSKA E A POESIA REAL

 “ distanciamento do sublime, do elevado”


Como se disse no texto anterior sobre a poeta Szymborska, um dos modos de situar sua poesia, muitas vezes, é uma característica de seus versos terem descrições de cenários que podem remeter a historietas, pequenas narrações rápidas, em que a coda leva a uma reflexão filosófica sobre o que foi contado nos versos como um todo. Em poemas como “Acontecimento”, por exemplo, Szymborska coloca indagações a respeito da natureza dos acontecimentos sobre os quais não se tem nenhum controle e que determinam a vida ou a morte.

Por sua vez, no poema “Medo do palco”, esse caráter narrativo de seus versos leva à poeta Szymborska a tecer uma ironia a respeito dos poetas como prosadores, tentando tirar uma certa aura da poesia que poderia levar a mistificações sobre esta atividade literária como algo “elevado”, “superior” etc. 

A tendência do senso comum em situar a poesia na dimensão do sublime contrasta com a colocação da prosa no terreno do mundano em relação a este mesmo entendimento comum. Szymborska, com sua poesia, torna estes limites tênues e até os subverte, pois tal noção é falsa, como se houvesse uma hierarquia na literatura, em que existe o sublime que é tomado por superior ao mundano e quetais.

Por outro lado, nos remetendo às temáticas que a poeta Szymborska gosta de elencar em seus versos e, mais uma vez, fazendo este distanciamento do sublime, do elevado, temos a ciência como um dos interesses desta poeta, em que podemos citar a astronomia, a matemática e a biologia. 

A matemática aparece no divertido poema “Número Pi”. Na biologia, a questão da evolução das espécies aparece em vários poemas, incluindo “Thomas Mann”, em que o nome do escritor apenas dá o título ao poema, e em seus versos aparecem reflexões sobre a fantasia, de um lado, e a questão da evolução, refletindo sobre os fatos da natureza, de outro lado. A fantasia, por sua vez, ligada ao prodígio, escapando às leis naturais, é a mão que escreve, isto é, a literatura de Thomas Mann.

Por sua vez, o antropocentrismo passa longe das reflexões de Szymborska em seus poemas, no que temos versos que tematizam sobre entes que desarticulam tal discurso, colocando em destaque indagações sobre uma pedra, um grão de areia, uma planta e até microrganismos, colocando esta perspectiva como afirmativa da complexidade do mundo e a limitação da consciência humana em relação a este mundo.

A poeta Szymborska, a propósito, declarou : “Dou voltas incessantemente ao redor deste mundo que não é apenas nosso, mas também de muitas outras formas de vida, e procuro entender como elas nos recebem.” 

Por exemplo, no poema “O silêncio das plantas”, a poeta Szymborska situa o eu lírico no esforço de um diálogo impossível entre o ser humano e o mundo vegetal. No poema “Visto do alto”, por sua vez, o encontro de um besouro morto num caminho campestre levanta a comparação do sentido desta morte com a morte dos homens. E no poema “Microcosmo” é dado destaque aos microrganismos.

O questionamento da tradição, nos versos da poeta Szymborska, tem um papel importante, pois quando a poeta tematiza personagens bíblicos, mitológicos, sobretudo da mitologia greco-romana, além de interpretações poéticas da literatura e da História, por fim, colocam verdades da tradição em suspenso, esvaziando esta, e destacam a dimensão humana em tais temas.

No poema “Noite”, por exemplo, o eu lírico se rebela diante do sacrifício de Isaac por Abraão a partir de uma ordem divina. No poema “Monólogo de Cassandra” a profetisa deplora sobre o seu afastamento da vida e das pessoas. No poema “O resto”, Ofélia, personagem de Shakespeare na peça “Hamlet”, não cai na loucura por causa da rejeição amorosa, mas vira uma atriz preocupada com a vida prática, a sua roupa e seu cabelo, por exemplo.




LIVRO III - MUITO DIVERTIDO


CENSO : O poema subverte a herança histórica e a situa em um novo paradigma a partir de novas descobertas arqueológicas, no que temos : “Na colina onde ficava Troia/foram escavadas sete cidades./Sete cidades. Seis a mais/para uma única epopeia./Que fazer com elas? Que fazer?/Arrebentam os hexâmetros,/um tijolo efabular espia pelas brechas,/no silêncio do filme mudo, muros derrubados,/vigas queimadas, correntes rompidas,/cântaros esvaziados até a última gota,”. O poema segue com as sensações da poeta sobre tal derrubada de paradigma histórico e suas consequências, e as imagina, sendo que um dos fatos principais seria a implosão da epopeia, e a substituição desta por uma nova versão caótica para historiadores e literatos, e a descrição de Szymborska aqui é rica e inteligente, no que segue : “Nossa dose de antiguidade vai crescendo,/fica apinhada de gente,/inquilinos brutais se empurram na história,/hordas de carne para a espada,/extras de Heitor iguais a ele em bravura,”. A multiplicação das cenas, as dobras que as novas descobertas provocam, e todos os seus desdobramentos continuam a inspirar os versos de Szymborska, no que temos : “Era tão fácil não saber nada sobre isso,/tão comovedor, tão amplo.” (...) “Que fazer com eles? O que lhes dar?/Algum século pouco povoado até agora?/Um pouco de apreço pela arte da ourivesaria?/Pois é muito tarde para o juízo final.”. A poeta descreve também a crise épica, a implosão do que era narrado pela epopeia até então conhecida, e descreve a estranheza deste novo mundo, no que segue : “Nós, três bilhões de juízes,/temos nossos problemas,/nossas turbas inarticuladas,/estações, arquibancadas, procissões,/incontáveis números de estranhas ruas, andares, paredes./Desencontramo-nos para sempre nas grandes lojas/comprando um jarro novo./Homero trabalha num instituto de estatística./Ninguém sabe o que ele faz em casa.” E tal estranheza é tomada, por fim, literalmente, na coda do poema, em que Homero é diluído, por fim, numa atividade comum, incógnito.


MONÓLOGO PARA CASSANDRA : O isolamento de Cassandra, refugiada em seu monólogo, nos dá uma sensação do mundo na perspectiva angustiante de um distanciamento, no que temos : “Sou eu, Cassandra./E esta é minha cidade sob as cinzas./E estes são meu bastão e fitas de profeta./E esta é minha cabeça cheia de dúvidas.”. A profetisa ainda tenta enaltecer o que ainda possui, mas logo seu mundo é desvelado em seu próprio monólogo, como um tom hipnótico e repetitivo de uma monotonia conquistada em sua solidão perpétua, no que vem : “Triunfo, é verdade./Minha razão em chamas até lambeu o céu./Só os profetas desacreditados/têm essa vista./Só aqueles que tiveram um mau começo,/e tudo podia concretizar-se tão rápido,/como se eles nunca tivessem existido.”. Do alto de uma torre de marfim, em que seu privilégio de ver o futuro é o que ela entende por dom, paga o preço de ignorar o mundo real, palpável, das pessoas reais e dos fatos cotidianos, e seu isolamento traz esta iluminação espiritual triste, uma ascese sobre o futuro, uma visão dormente, no entanto : “Recordo claramente agora/como as pessoas, ao me ver, emudeciam./Morria-lhes o riso./Desentrelaçavam as mãos./As crianças corriam para as mães.” (...) “Eu os amava./Mas amava do alto./Acima da vida./Do futuro. Onde sempre é vazio/e nada é mais fácil do que ver a morte.” O vazio e a morte são as sensações com que flerta Cassandra, agora, neste seu distanciamento, num mundo supralunar sem contato com a vida que pulsa nas coisas dadas, vividas terrenamente, no que segue : “Lamento que minha voz fosse dura./Olhem para si mesmos das estrelas - bradava -” (...) “Viviam na vida./Varridos por um grande vento./Já condenados./Presos desde nascidos em corpos de despedida.” (...) “Foi como eu falei./Só que disso não resulta nada./E estas são minhas vestes chamuscadas./E estes são meus trastes de profeta./E esta é minha face contorcida./Uma face que não sabia que podia ser bela.”. Sua constatação, mais uma vez, é de uma coda vazia, em que a poesia aqui se conforma a uma fatalidade fria e dura.


DECAPITAÇÃO : A poeta conta com ironia a História da Inglaterra, num poema romanceado em que se dá o contraste entre duas rainhas, uma condenada e uma vitoriosa, e as cores de suas vestes, no que temos : “Decote vem de decollo,/decollo significa corto o pescoço./A rainha da Escócia Maria Stuart/chegou ao patíbulo numa veste apropriada,/a veste era decotada/e vermelha como uma hemorragia.” (...) “No mesmo momento/num quarto apartado/Elizabeth Tudor, rainha da Inglaterra,/estava à janela num vestido branco./O vestido vitoriosamente abotoado até o queixo/terminando num rufo engomado.” (...) “A diferença no traje - sim, dessa tenhamos certeza./O detalhe/é inabalável.” A coda conclui esta ironia rascante, em que toda a descrição parece confluir para um chiste, uma constatação de mofa sobre o conflito histórico entre os Stuart e os Tudor na História inglesa. 


THOMAS MANN : O poema que tem o nome de um escritor, desfaz a fantasia tanto literária como das fábulas e dos mitos e logo coloca a natureza tal qual ela é como contraste à falta de parâmetros de animais fantásticos e as concepções imaginosas deste mundo fictício e fabular, no que temos : “Caras sereias, assim tinha que ser,/amados faunos, ilustríssimos anjos,/a evolução definitivamente os renegou./Não lhe falta imaginação, mas vocês e suas/barbatanas do devoniano e peitos do holoceno,/suas palmas digitiformes e cascos nos pés,/seus braços não em vez de, mas além de asas,/esses seus esqueletos, deus nos guarde, difiléticos,/com caudas fora de hora, chifres por despeito,/bicos surrupiados de pássaros, essas misturas, aglutinações,/esses mistifórios finórios, esses dísticos,/rimando gente com garça com tal mestria/que voa, é imortal e tudo sabe/-vocês devem admitir que seria uma piada/eternos excessos e chateações/que a natureza não quer ter e não tem.” O chamado mistifório do mundo das fábulas é renegado pelo mundo natural e real da evolução das espécies, pois todo o excesso imaginoso aqui é submetido à eficiência dos seres na natureza e a evolução aparece como o governo que faz esta seleção entre os seres que desempenham melhor, o que no mundo imaginário e fantástico da fábula não existe, pois lá a prioridade é o excesso e a fantasia livre e ilimitada, no entanto, Szymborska delimita este mundo natural tal qual ele é, e suas breves concessões funcionam aqui como uma ironia em relação à fantasia e à fábula, no que vem : “Já é bom ela permitir a certo peixe voar/com desafiadora perícia. Cada voo desse/é um consolo na norma, uma anistia/da necessidade universal, um dom maior/que o necessário para que o mundo seja mundo.” (...) “Já é bom ela permitir cenas tão faustosas/como um ornitorrinco amamentando os filhotes./Poderia se opor - e quem de nós descobriria/que foi roubado?” (...) “Mas o melhor é que/lhe escapou o instante em que surgiu um mamífero/com a mão prodigiosamente emplumada com uma Waterman.”


LIVRO IV - TODO O CASO


AS CARTAS DOS MORTOS : A poeta aqui descreve o desnível entre o mundo dos mortos e as expectativas testamentárias, prospectivas, e demais esforços de planejamentos, e o mundo dos vivos, dos que ficam, no que temos : “Lemos as cartas dos mortos como deuses impotentes,/mas deuses assim mesmo, porque conhecemos as datas posteriores./Sabemos quais dívidas não foram pagas./Com quem as viúvas rapidamente se casaram./Pobres mortos, mortos cegos,/enganados, falíveis, canhestramente previdentes./Vemos as caretas e os sinais feitos pelas costas./Capturamos o som de testamentos sendo rasgados.” Este descompasso entre o esperado e o que acontece é a ironia do poema e da poeta Szymborska entre os anelos daqueles que se foram e o que aconteceu depois, no que vem : “Seu mau gosto, Napoleão, vapor e eletricidade,/seus remédios mortíferos para doenças curáveis, seu tolo apocalipse segundo são João,/o falso paraíso na terra segundo Jean-Jacques …/Observamos em silêncio seus peões no tabuleiro,/só que movidos três casas à frente./Tudo que previam aconteceu de modo totalmente diverso,/ou um pouco diverso, que é o mesmo que totalmente diverso./Os mais fervorosos nos fitam nos olhos com confiança/porque, segundo suas contas, verão neles a perfeição.” As contas feitas, por sua vez, todas revelam a ignorância essencial, e que está inserida neste mundo dos acontecimentos. A ironia, como coda, faz troça desta pretensa perfeição.  


AUTONOMIA : A cisão da existência parte de uma narração mitológica, no que a poeta Szymborska contrasta um lado auspicioso com outro lado de revezes, no que temos : “Em perigo, a holotúria se divide em duas :/com uma metade se entrega à voracidade do mundo,/com a outra foge.” (...) “Desintegra-se violentamente em ruína e salvação,/em multa e prêmio, no que foi e no que será.” (...) “No meio do corpo da holotúria se abre um abismo/com duas margens subitamente estranhas.” (...) “Em uma margem a morte, na outra a vida./Aqui o desespero, lá o alento.” (...) “Se existe uma balança, os pratos não oscilam./Se existe justiça, é esta.” A justa medida é também tematizada nesta divisão perfeita, contudo, quando a aplicamos à dimensão humana, esta fronteira se borra e toda uma amálgama de fatos e sensações se dá em toda a sua complexidade, o que ocorre também nesta divisão final entre vida e morte, no que vem : “Morrer só o necessário, sem exceder a medida./Regenerar quanto for preciso da parte que restou.” (...) “Também nós, é verdade, sabemos nos dividir./Mas somente em corpo e sussurro interrompido./Em corpo e poesia.” (...) “De um lado a garganta, do outro o riso,/leve, logo sufocado.” (...) “Aqui o coração pesado, lá non omnis moriar,/três palavrinhas apenas como três penas em voo.” (...) “O abismo não nos divide./O abismo nos circunda.” (In memoriam Halina Poswiatowska). A verdade é que o humano está permeado por tudo e inserido em tudo, e seu ser não delimita qualquer fronteira de fato, apenas em sua razão, pois o humano está, na verdade, circundado por uma mescla de coisas, um mistifório em que os limites, fronteiras, etc, estão diluídos em uma complexidade que ultrapassa a consciência e a compreensão. 


UM AMOR FELIZ : A poeta questiona a consistência e até a existência de um amor feliz neste poema repleto de ironia, no que temos : “Um amor feliz. Isso é normal,/isso é sério, isso é útil?/O que o mundo ganha com dois seres/que não veem o mundo?”. Diante de um mundo hostil e acidentado, este amor feliz é descrito no poema como uma provocação, no que segue : “Enaltecidos um para o outro sem nenhum mérito,/os primeiros quaisquer de milhões, mas convencidos/que assim devia ser - como prêmio de quê? De nada;/a luz cai de lugar nenhum -/por que justo nesses e não noutros?/Isso ofende a justiça? Sim.”. Não seria um fato da justiça, nem algo espiritualmente justo, este amor feliz atua no poema como uma subversão de uma ordem natural de aridez, de ambientes inóspitos à plenitude dos sentimentos e de sua boa sucessão, no que temos : “Observem estes felizardos :/se ao menos disfarçassem um pouco,/fingissem depressão, confortando assim os amigos!/Escutem como riem - é um insulto./Em que língua falam - só entendi na aparência./E esses seus rituais, cerimônias,/elaborados deveres recíprocos -/parece um complô contra a humanidade!”. Esta provocação é descrita pela poeta em fina ironia, e ainda se questiona mesmo a necessidade deste tipo de acontecimento no mundo, no que segue : “É difícil até imaginar onde se iria parar,/se seu exemplo fosse imitado./Com que poderiam contar a religião, a poesia,/o que seria lembrado, o que, abandonado,/quem quereria ficar dentro do círculo?” (...) “Um amor feliz. Isso é necessário?/O tato e a razão nos mandam silenciar sobre ele/como sobre um escândalo das altas esferas da Vida./Crianças perfeitas nascem sem sua ajuda./Nunca conseguiria povoar a terra,/pois raramente acontece.” (...) “Os que não conhecem o amor feliz que afirmem/não existir em lugar nenhum um amor feliz.” (...) “Com essa crença lhes será mais leve viver e morrer.”. A descrença dos infelizes sobre esta realidade os confortaria, enfim, pois a hostilidade de um mundo com tão poucas oportunidades à uma maioria, ver algo de tão pleno neste meio seria uma ofensa à própria existência como esta normalmente se dá, nesta ordem do mundo fundada em limitações e desditas.


LIVRO V - UM GRANDE NÚMERO


SALMO : A visão de um mundo unívoco, sem divisões, aqui aparece à poeta como a tematização da natureza, em como esta se funda indiferente às fronteiras humanas, e assim segue : “Oh, como são permeáveis as fronteiras dos países!/Quantas nuvens flutuam impunemente sobre elas,/quanta areia do deserto passa de um país a outro,/quantas pedras da montanha rolam para terras alheias/com saltos desafiadores.” (...) “Devo mencionar um a um cada pássaro que voa/ou que pousa na barreira abaixada da fronteira?” (...) “Oh, abranger com um único olhar essa confusão/sobre todos os continentes!/Pois não é a alfena da outra margem que/contrabandeia pelo rio sua centésima-milésima folha?/E quem senão o polvo de longos braços impertinentes,/viola os limites sagrados das águas territoriais?” (...) “E como se pode falar de uma ordem qualquer,/se nem dá para separar as estrelas/para saber qual brilha para quem?”. A poeta enumera diversos exemplos de como a natureza, não possuindo limitações e fronteiras, atua livremente, e o mundo cósmico, também como natureza, é tal qual, sem as marcações da dimensão humana, em que se vê o nativo e o estrangeiro, e o governo das diferenças se impõe, e isto ocorre cercado de um mundo natural em que a mescla, uma grande amálgama, não se importa com linhas demarcatórias e as diferenças entre regiões, seres, etc. No que temos : “E esse condenável dispersar da neblina!/E o pó que pousa sobre toda a estepe,/como se ela não estivesse dividida ao meio!/E o ressoar das vozes nas complacentes ondas do ar:/pipilos apelativos e gorgolejos sedutores!” (...) “Só o que é humano pode ser verdadeiramente estrangeiro./O resto é bosque misto, trabalho de toupeira e vento.”


NÚMERO PI : A matemática é um governo de grandezas e infinitesimais, vai ao macro e ao micro, e possui ao mesmo tempo perfeições bem acabadas e aporias inextricáveis, e a poeta exemplifica aqui o número Pi como uma destas desproporções num mundo que o senso comum entende como razão e proporção, e a desproporção e grandeza imensurável se dão aqui numa sequência que em Matemática se chama número irracional, sem dízima periódica, Pi como um grande caos numérico que se estende indefinidamente, desafiando a busca de uma constante, sob pena do pesquisador ficar louco, no que temos : “O admirável número Pi/três vírgula um quatro um./Todos os seus algarismos sucessivos também são iniciais,/cinco nove dois porque não acaba nunca./Não se deixe abranger seis cinco três cinco pelo olhar/oito nove pelo cálculo/sete nove pela imaginação,/e nem três dois três oito numa piada, ou seja, na comparação/quatro seis com qualquer coisa/dois seis quatro três no mundo./A cobra mais comprida da terra acaba depois de alguns metros./O mesmo, embora um pouco depois, fazem as cobras das fábulas./O desfile de algarismos que compõem o número Pi/não para na margem da página,/consegue estender-se pela mesa, pelo ar,/pelo muro, folha, ninho de pássaro, nuvens, direto para o céu,/por toda a extensão e profundeza do céu.” A ironia da poeta se dá entre a citação da sequência numérica e suas colocações de mofa e chiste, no que vem : “e mais pede-se manter a calma,/e também o céu e a terra passarão,/mas não o número Pi, esse não, nada disso,/ele ainda está aí com seu passável cinco,/um nada mau oito,/um não último sete,/incitando, ah, incitando a indolente eternidade/a durar.”. Aqui se abre uma fresta da eternidade, de um caos indefinido, interminável e incompreensível.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


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