“a concentração da internet atual é desafiadora”
Na internet atual as infraestruturas confinadas criaram uma monocultura tecnológica que prejudica projetos diversos, distorcendo algo que foi criado em uma arquitetura que se dividia em camadas de protocolos, de software e hardware, operando através de diferentes provedores de serviços, em que funções eram mantidas separadas para garantir a resiliência e o espaço para inovação do sistema.
A internet foi criada inicialmente para fins militares nos Estados Unidos, concebida por acadêmicos para ser um sistema usado em tempos de guerra. Por sua vez, a internet evoluiu, sobretudo a partir dos anos 1990, para um ambiente acessível a todos e que podia ser operada em qualquer lugar.
Esta internet livre começou como uma coleção de sites e links independentes, guiada por estas camadas dinâmicas e que hoje se engessaram em grandes placas de domínios e controles que estão ditando os rumos da internet, não mais como inovações de coletivos criativos e de código aberto, mas por orientações de mercado pelas big techs.
A consolidação das big techs como guias do destino da internet gera esta dificuldade atual de desalojar espaços ocupados por estas empresas globais, pois tal problema de monopólios e duopólios sistemáticos que governam todo o sistema atingem diretamente um princípio fundamental do que guiava a primeira versão civil da internet, aquela que existiu nos anos 1990 e meados dos anos 2000, que era de um espaço colaborativo, sem favoritismos.
Este crescimento do poder das big techs desmonta o cenário em que a descentralização e o espaço aberto para inovação e iniciativas diversas, isto é, a inexistência dos chamados “favoritos permanentes”, provocando o fim tanto da concorrência como da convivência e da cooperação que é esta ideia de “coletivos organizados” que a internet evoca quando se pensa na superação desta fase fechada que vivemos na internet atualmente.
A implosão das possibilidades colaborativas na internet atual, em que feudos e proprietários capitalistas tomam conta do pedaço, deixando a internet de código aberto como coadjuvante de todo o sistema, como ilhas utópicas de usuários avant-garde, em suas especificidades e nichos especializados, faz com que a inovação futura esteja comprometida com estes senhores do destino da internet atual, que são os interesses das big techs.
As big techs operam este governo, por sua vez, através dos algoritmos e de um enorme big data para ditar comportamentos, impulsos, desejos, consolidando este governo dos espíritos sobretudo com a formação de bolhas em que a percepção é obnubilada por espelhos que replicam o que o usuário se acostumou a pensar e a consumir.
A consolidação das big techs implode por dentro a colaboração de provedores de serviços, apagando a cooperação e a operação por coletivos independentes, que ficam nichados e quase ocultos para a maioria, dando lugar a um ambiente predatório, de expansão de controles e domínios por umas poucas empresas globais bilionárias e trilionárias. Consequentemente, as iniciativas diversas feitas por organizações de desenvolvimento de padrões fracassaram diante do cipoal em que este controle e domínio são exercidos por estas empresas gigantes.
Os engenheiros da internet se viram imersos em minúcias técnicas, o que os impediu de se desvencilhar de seus empregadores e dos valores profissionais de simplificação e controle, criando um problema de percepção em que não se podia enxergar a floresta entre as árvores, isto é, a complexidade do sistema é tal que somente grandes estruturas administrativas são capazes de ter controle e domínio sobre este sistema e, por conseguinte, manipulá-lo via algoritmos e a criação de um acervo de big data cada vez mais sofisticado e eficiente para seus fins de expansão de poderes econômicos e sobre o comportamento humano.
O que ocorre é que esta percepção prática diante da complexidade do sistema é apenas uma primeira abordagem do problema e de possíveis soluções. Esta primeira impressão da internet atual como uma barreira intransponível para mudanças mais profundas pode ser contestada, no entanto. Pois a dificuldade de visualização de saídas e espaços de respiração na internet atual não pode ser uma justificativa para que empreendedores independentes fiquem paralisados, mas que operem, ainda assim, uma mudança de paradigma.
Com efeito, a concentração da internet atual é desafiadora para quem quer atuar através de códigos abertos e de coletivos independentes e, ao mesmo tempo, sair da posição praticamente oculta de nichos e de coadjuvantes do sistema e voltar a protagonizar a inovação na internet e sendo até mesmo e novamente o seu futuro e o seu novo destino, saindo da fatalidade imposta pelo poder econômico e espiritual das big techs.
Vemos que o tal destino selado pelas big techs tanto pode como deve ser superado, e a dificuldade de desvendar as fronteiras do sistema, dada a sua complexidade, não pode acovardar iniciativas inteligentes para operar difusamente e através das porosidades destes domínios e controles uma mudança progressiva de paradigma para uma nova internet livre e colaborativa.
É esta retomada da colaboração como ideia original da infraestrutura da internet, claro que em novo contexto, é que se fará a cooperação entre seus usuários e a realização de uma prática guiada por uma ideia de comunidade que supere a realidade das bolhas fechadas e alienadas, que é esta versão em que existe uma espécie de estresse e neurotização em que se vê a internet atual dominada pelas big techs e suas esferas de ódio e intolerância, uma distorção em que uma rede de informação e conhecimento se tornou um desfile de bizarrices e debates rasos e binários.
(continua)
Obs : no próximo texto entro com o conceito de rewilding, dando continuidade a esta série.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/colunas/internet-e-sistemas-complexos-ii
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