“um cenário que parece vindo diretamente de um romance
naturalista”
Na leitura do livro de Werner Herzog, sobre a difícil,
caótica e tensa filmagem de Fitzcarraldo, seu filme mais ousado, um risco
enorme que terminou por ser bem sucedido, vemos o retrato de uma realidade
própria, o cenário amazônico pelos rios e aldeias indígenas do Peru, algumas
cenas em Manaus, e uma predominância descritiva de uma vida selvagem e áspera
no meio da floresta.
Em breve as relações com a 20th Century Fox seriam rompidas,
pois as ideias delirantes de Werner Herzog para o filme viraram um conflito
entre a produção que desejava fazer uma filmagem de estúdio para a ideia louca
de atravessar um barco na montanha, enquanto começava o périplo de Herzog e sua
equipe pelos rios do Peru para encontrar o lugar ideal para fazer este ato na
realidade, e não como simulação de estúdio, o que toma grande parte deste livro
intitulado “Conquista do Inútil”.
Em Iquitos temos descrições de cenas pitorescas, uma vida
própria ali se desenrolava, bichos, bar, comidas exóticas, meninas ainda com
quinze anos e já com um ou dois filhos, uma cidade habitada por crianças e um
bêbado caído no chão. Cenas de açougue e matança de bichos, as descrições do
livro volta e meia fazem a pontuação sobre este cotidiano de um cenário que
parece vindo diretamente de um romance naturalista, o rústico com o brutal, e a
natureza em sua crueza agindo o tempo todo. E já no Rio Marañón, segue Herzog
em suas descrições que se não fossem reais, teriam vindo diretamente da
imaginação fértil de um romancista naturalista.
Viagens de barco pelos rios do Peru são constantes nas
descrições do livro, e chacoalhões, inclinações e passagens por pongos
violentos são rotina. A vida dos indígenas no Peru aqui no livro é ricamente
documentada, e a imagem da natureza ganha contornos de um épico, a luta da
filmagem também é um esforço de uma equipe e seu diretor contra todas as
intempéries naturais possíveis. Era o sonho de Herzog que seria a sua conquista
do inútil, a sua ideia de Fitzcarraldo, o fanático por ópera que tem
megalomania. E aqui temos uma cena grotesca de naturalismo narrada por Herzog :
“Quando fui cagar, um porco me seguiu até bem longe, dentro da floresta, e,
farejando com avidez e absoluta falta de vergonha, esperou pela minha bosta.
Mesmo com os pedaços de pau que joguei em sua direção, deu apenas alguns passos
simbólicos para longe.”
Começam a busca por barris de gasolina, Huerequeque, um dono
de bar local no Peru aparece como um dos membros da equipe e será um dos atores
em cenas absolutamente realistas e espontâneas, pois Huerequeque bebia muito.
Uma cabana cheia de mosquitos, mais crianças por todos os lados, um barco de
madeira, Herzog tem sérias dúvidas se este irá conseguir atravessar as
corredeiras do Pongo de Manseriche. Mais uma cena surreal narrada por Herzog :
“Ao meu lado, um papagaio gargalhava e gritava e ria como se fosse gente.
Sempre voltava a gritar em espanhol ‘Anda, Aureliano’ e não parava mais.
Parecia a trilha sonora de um desenho do Pica-pau. “Birds are smart, but they
cannot speak”; Fitzcarraldo devia ensinar seu papagaio a falar no filme.
No rio Santiago, um cadáver boiando no rio passa pela vista
de Herzog e sua equipe, e então eles chegam à Santa María de Nieva. Eles seguem
Marañón acima e chegam à Orellana, corre o boato no lugar que Herzog e sua
equipe planejavam cavar um canal do Rio Cenepa ao rio Marañón. Na fronteira
próxima ao Equador, o Exército está em todo lugar, E Herzog conta mais uma
história surreal : “Há alguns meses, um tenente do Exército em um posto
avançado às margens do rio Santiago enlouqueceu, declarou guerra ao Equador e
atacou por conta própria, com 24 soldados. Penetrou mais de trinta quilômetros
no curso superior do rio em território inimigo, e, claro, deu muito trabalho
tirá-lo de lá.”
Em Wawaim (nome indígena e agora oficial do que era
Orellana), foi escolhido um membro do conselho dos índios de uma região bem
mais rio abaixo, ele aparece com um discurso distorcido e queria parecer um
protetor da comunidade local, queria impedir o canal, pois o local viraria uma
ilha, a reunião em que Herzog e sua equipe iriam explicar suas intenções foi um
desastre inicial, gritaria, e um homem que foi em direção a Herzog agitando uma
lança, mas acabou recuando. Mas, ao fim da reunião, vários participantes se
interessaram em fazer parte do projeto. Já em Saramiriza, Herzog e sua equipe
enfrentam uma provável tempestade que encheu o rio Santiago no ponto de
confluência com Marañón.
Ondas batem no barco que rodopia, Herzog bate o nariz e
sangra pela boca, em Borja, na ponta baixa do pongo, quem estava lá não
acreditava no que via, pois ninguém nunca sobrevivera a tal passagem a um nível
cinco metros acima do normal, e Herzog e sua equipe tinham acabado de passar
por uma cheia de cinco metros e meio. Em Lima, o navio Huallaga ganha forma,
soldadores trabalham ininterruptamente, ajudados por marceneiros. Este seria o
barco de Fitzcarraldo.
A burocracia do governo avança sobre o projeto em Wawaim, um
plano de ações esquemático que parecia um livro didático ruim. E Herzog decide
orientar a todos para se afastarem destes burocratas, pois senão o projeto
poderia ficar inviável. Acontece uma tragédia na preparação para filmagem, no
caminho desta, Larisa Sheptiko morre em um acidente, sua van com seis pessoas
bate num caminhão que carregava enormes blocos de concreto, os blocos caíram em
cima da van esmagando e matando todos da van.
Em Cenepa conspiram para atacar o campo da equipe de
filmagem, um ato político feito por jornalistas, que os índios aguarunas avisam
a equipe para chamar atenção. Os moradores de Wawaim não aderem aos agitadores.
Herzog conclui então que da ideia de encontrar o menor trecho entre dois rios
com uma montanha no meio para atravessar um barco agora também envolvia
encontrar um lugar que não tivesse questões de agitação política, intervenção
de militares, e ainda tinha o problema de ter uma guerra com o Equador bem no
meio dos trabalhos de filmagem.
Herzog não tem patrocinadores e enfrenta problemas
financeiros, a situação em Iquitos vira um drama, o cenário em que os navios
continuavam a ser construídos, mesmo com a falta de dinheiro, era necessário
manter o acampamento de Marañón. No rio Cenepa, a situação está controlada, mas
Herzog ainda se preocupa com a dimensão política na região. Depois de mais
algum trabalho, o Huallaga se encontra a caminho do pongo de Manseriche. Herzog
enfrenta problemas com a autorização da filmagem, se exige dinheiro de todos os
lados, e o mais alto general do exército disse que teria que emitir a sua
opinião sobre o projeto, Herzog se revoltou e foi pessoalmente falar com o tal
general e avançou verbalmente sobre o mesmo, este recuou, meio que sabendo que
aquela aventura era uma loucura.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/conquista-do-inutil-de-werner-herzog-e-a-narracao-de-uma-aventura-insana