PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 15 de fevereiro de 2020

CONQUISTA DO INÚTIL DE WERNER HERZOG É A NARRAÇÃO DE UMA AVENTURA INSANA


“um cenário que parece vindo diretamente de um romance naturalista”

Na leitura do livro de Werner Herzog, sobre a difícil, caótica e tensa filmagem de Fitzcarraldo, seu filme mais ousado, um risco enorme que terminou por ser bem sucedido, vemos o retrato de uma realidade própria, o cenário amazônico pelos rios e aldeias indígenas do Peru, algumas cenas em Manaus, e uma predominância descritiva de uma vida selvagem e áspera no meio da floresta.
Em breve as relações com a 20th Century Fox seriam rompidas, pois as ideias delirantes de Werner Herzog para o filme viraram um conflito entre a produção que desejava fazer uma filmagem de estúdio para a ideia louca de atravessar um barco na montanha, enquanto começava o périplo de Herzog e sua equipe pelos rios do Peru para encontrar o lugar ideal para fazer este ato na realidade, e não como simulação de estúdio, o que toma grande parte deste livro intitulado “Conquista do Inútil”.
Em Iquitos temos descrições de cenas pitorescas, uma vida própria ali se desenrolava, bichos, bar, comidas exóticas, meninas ainda com quinze anos e já com um ou dois filhos, uma cidade habitada por crianças e um bêbado caído no chão. Cenas de açougue e matança de bichos, as descrições do livro volta e meia fazem a pontuação sobre este cotidiano de um cenário que parece vindo diretamente de um romance naturalista, o rústico com o brutal, e a natureza em sua crueza agindo o tempo todo. E já no Rio Marañón, segue Herzog em suas descrições que se não fossem reais, teriam vindo diretamente da imaginação fértil de um romancista naturalista.
Viagens de barco pelos rios do Peru são constantes nas descrições do livro, e chacoalhões, inclinações e passagens por pongos violentos são rotina. A vida dos indígenas no Peru aqui no livro é ricamente documentada, e a imagem da natureza ganha contornos de um épico, a luta da filmagem também é um esforço de uma equipe e seu diretor contra todas as intempéries naturais possíveis. Era o sonho de Herzog que seria a sua conquista do inútil, a sua ideia de Fitzcarraldo, o fanático por ópera que tem megalomania. E aqui temos uma cena grotesca de naturalismo narrada por Herzog : “Quando fui cagar, um porco me seguiu até bem longe, dentro da floresta, e, farejando com avidez e absoluta falta de vergonha, esperou pela minha bosta. Mesmo com os pedaços de pau que joguei em sua direção, deu apenas alguns passos simbólicos para longe.”
Começam a busca por barris de gasolina, Huerequeque, um dono de bar local no Peru aparece como um dos membros da equipe e será um dos atores em cenas absolutamente realistas e espontâneas, pois Huerequeque bebia muito. Uma cabana cheia de mosquitos, mais crianças por todos os lados, um barco de madeira, Herzog tem sérias dúvidas se este irá conseguir atravessar as corredeiras do Pongo de Manseriche. Mais uma cena surreal narrada por Herzog : “Ao meu lado, um papagaio gargalhava e gritava e ria como se fosse gente. Sempre voltava a gritar em espanhol ‘Anda, Aureliano’ e não parava mais. Parecia a trilha sonora de um desenho do Pica-pau. “Birds are smart, but they cannot speak”; Fitzcarraldo devia ensinar seu papagaio a falar no filme.
No rio Santiago, um cadáver boiando no rio passa pela vista de Herzog e sua equipe, e então eles chegam à Santa María de Nieva. Eles seguem Marañón acima e chegam à Orellana, corre o boato no lugar que Herzog e sua equipe planejavam cavar um canal do Rio Cenepa ao rio Marañón. Na fronteira próxima ao Equador, o Exército está em todo lugar, E Herzog conta mais uma história surreal : “Há alguns meses, um tenente do Exército em um posto avançado às margens do rio Santiago enlouqueceu, declarou guerra ao Equador e atacou por conta própria, com 24 soldados. Penetrou mais de trinta quilômetros no curso superior do rio em território inimigo, e, claro, deu muito trabalho tirá-lo de lá.”
Em Wawaim (nome indígena e agora oficial do que era Orellana), foi escolhido um membro do conselho dos índios de uma região bem mais rio abaixo, ele aparece com um discurso distorcido e queria parecer um protetor da comunidade local, queria impedir o canal, pois o local viraria uma ilha, a reunião em que Herzog e sua equipe iriam explicar suas intenções foi um desastre inicial, gritaria, e um homem que foi em direção a Herzog agitando uma lança, mas acabou recuando. Mas, ao fim da reunião, vários participantes se interessaram em fazer parte do projeto. Já em Saramiriza, Herzog e sua equipe enfrentam uma provável tempestade que encheu o rio Santiago no ponto de confluência com Marañón.
Ondas batem no barco que rodopia, Herzog bate o nariz e sangra pela boca, em Borja, na ponta baixa do pongo, quem estava lá não acreditava no que via, pois ninguém nunca sobrevivera a tal passagem a um nível cinco metros acima do normal, e Herzog e sua equipe tinham acabado de passar por uma cheia de cinco metros e meio. Em Lima, o navio Huallaga ganha forma, soldadores trabalham ininterruptamente, ajudados por marceneiros. Este seria o barco de Fitzcarraldo.
A burocracia do governo avança sobre o projeto em Wawaim, um plano de ações esquemático que parecia um livro didático ruim. E Herzog decide orientar a todos para se afastarem destes burocratas, pois senão o projeto poderia ficar inviável. Acontece uma tragédia na preparação para filmagem, no caminho desta, Larisa Sheptiko morre em um acidente, sua van com seis pessoas bate num caminhão que carregava enormes blocos de concreto, os blocos caíram em cima da van esmagando e matando todos da van.
Em Cenepa conspiram para atacar o campo da equipe de filmagem, um ato político feito por jornalistas, que os índios aguarunas avisam a equipe para chamar atenção. Os moradores de Wawaim não aderem aos agitadores. Herzog conclui então que da ideia de encontrar o menor trecho entre dois rios com uma montanha no meio para atravessar um barco agora também envolvia encontrar um lugar que não tivesse questões de agitação política, intervenção de militares, e ainda tinha o problema de ter uma guerra com o Equador bem no meio dos trabalhos de filmagem.
Herzog não tem patrocinadores e enfrenta problemas financeiros, a situação em Iquitos vira um drama, o cenário em que os navios continuavam a ser construídos, mesmo com a falta de dinheiro, era necessário manter o acampamento de Marañón. No rio Cenepa, a situação está controlada, mas Herzog ainda se preocupa com a dimensão política na região. Depois de mais algum trabalho, o Huallaga se encontra a caminho do pongo de Manseriche. Herzog enfrenta problemas com a autorização da filmagem, se exige dinheiro de todos os lados, e o mais alto general do exército disse que teria que emitir a sua opinião sobre o projeto, Herzog se revoltou e foi pessoalmente falar com o tal general e avançou verbalmente sobre o mesmo, este recuou, meio que sabendo que aquela aventura era uma loucura.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.







quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

GURUS E CURANDEIROS – PARTE XVIII

“Timothy Leary foi o mais intenso guru do LSD na contracultura”

Timothy Leary ganhou fama como uma espécie de guru do LSD, psicólogo dos EUA, atravessou a era hippie e foi um dos ideólogos do uso de psicotrópicos na psicologia e nos meios de alcançar uma nova realidade. Leary, ao se tornar um militante do uso de psilocibina, e depois de LSD, no campo terapêutico e experimental da psicologia, passou a ser um dos mentores principais da contracultura dos anos 1960.
Depois da publicação de seu livro “The Interpersonal Diagnosis of Personality”, em 1957, tal publicação lhe fez conseguir um cargo de professor em Harvard. Uma das ideias mais avançadas do livro era uma abordagem não-hierárquica na relação psicólogo-paciente, numa base que buscava uma nova realidade para o paciente e sua consequente libertação de padrões mentais neuróticos. Tal abordagem não-hierárquica e uma visão transformadora da personalidade só encontra paralelo na anti-psiquiatria de R.D.Laing.
A pesquisa de Leary em Harvard começou com a psilocibina, depois de uma experiência arrebatadora sua com cogumelos mágicos no México, foi quando ele descobriu que esta era uma chave para a transformação da realidade, ou seja, os estados alterados da mente. A partir desta experiência, Leary estabelece a sua base de pesquisas com experimentações de psicodélicos e a defesa do benefício de tais experiências com a consciência alterada e expandida.
Logo, Leary ganha o apoio do poeta beat Allen Ginsberg, quando os dois apresentam a psilocibina, a mescalina e depois o LSD para intelectuais e artistas nos EUA e na Europa. E no núcleo de pesquisa de Timothy Leary também contava com Richard Alpert, de Harvard, que logo se tornaria o guru e filósofo Ram Dass. E quando Leary descobre o LSD, este logo toma a dianteira em suas pesquisas. E, devido à ampla divulgação destas pesquisas, seu grupo passa a ser perseguido por defensores dos métodos tradicionais de terapia.
Seguindo suas ideias de não-hierarquia e de ampliação do estado mental e seu benefícios terapêuticos e de transformação positiva da personalidade, livre de amarras da neurose, Leary formula a sua Política do Êxtase, exposta em seu livro de 1968, “The Politics of Ecstasy”. Tal política era a do direito à liberdade interna, de exploração livre das faculdades mentais. Tal política ganha contornos libertários e hedonistas, constituindo uma espécie de filosofia ou doutrina de não-sofrimento e de expansão da consciência.
Em 1969, Timothy Leary prepara a sua candidatura ao governo do Estado da Califórnia, mas as leis antidrogas de Richard Nixon, presidente dos EUA na ocasião, tornaram inviável este plano, que seria o de implementar algumas de suas ideias contidas em sua Política do Êxtase.  Tal candidatura teve o apoio, por exemplo, de John Lennon e de Yoko Ono, e a canção “Come Together” começou a ser composta como jingle da campanha, mas acabou no álbum Abbey Road dos The Beatles.
Timothy Leary ficou mesmo marcado por sua relação militante e se pode dizer até um pouco messiânica com o LSD e sua divulgação e disseminação, uma substância descoberta acidentalmente nos anos 1940 pelo cientista suíço Dr. Albert Hoffman, e que Leary entendeu como o caminho principal de liberação e expansão da mente. Ele se junta ao professor Richard Alpert, e este mais tarde viraria o guru Baba Ram Dass, professor de disciplinas orientais, e dá sequência às pesquisas, deixando muitos professores de Harvard preocupados com a administração de drogas para os jovens da universidade.
E quando muitos destes jovens passaram a tomar as drogas por conta própria, fora do grupo de pesquisas psicodélicas de Timothy Leary, isto chamou a atenção do Departamento de Narcóticos e a CIA passou a ficar atenta, também provocando uma reação da Igreja, que considerava tais experiências como um distanciamento do Deus único da Bíblia, o que provocaria uma espécie de realidade múltipla e politeísta, o que acabou por fazer com que Timothy Leary e Richard Alpert fossem convidados a deixar seus cargos em Harvard.
Em 1962, Leary e Alpert continuaram as suas pesquisas com seus próprios meios, e foram empreender tais pesquisas com drogas psicodélicas em uma mansão-fazenda em Milbrook, e foi lá que começou a reunião de diversos artistas, poetas, intelectuais e amigos dos pesquisadores, além de pessoas curiosas que iam para lá experimentar uma nova consciência livre. O uso das drogas psicodélicas em Milbrook era feito em qualquer lugar da fazenda, desde que todos que tomassem as drogas fizessem um relatório da experiência que tiveram, detalhando o que viram e sentiram.
Com a popularidade do LSD, que virou o carro-chefe da contracultura e do movimento hippie, Leary continuou divulgando os benefícios do uso da droga, e Leary passou a produzir manuais de utilização segura do LSD, evitando bad trips e produzindo uma experiência positiva com o uso do LSD. Foi quando Leary criou alguns lemas ou expressões célebres de sua militância e pesquisa como “Turn On, Tune In, Drop Out, ou Se ligue (ative seu sistema neural e genético), Se entregue (interaja harmoniosamente com o mundo ao redor de você), Caia fora (sugerindo um processo ativo, seletivo de separação de compromissos involuntários ou inconscientes).
Timothy Leary foi o mais intenso guru do LSD na contracultura, era entusiasta como pesquisador e militante, expressão de uma época em que a expansão da mente através do uso de drogas psicodélicas era um ato político e de revolução, diferente do que veio depois, como fonte de loucura, morte e ilusão.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.