“libertação é o nome de spirituals, este é o poema”
I – O FUNDO MITOLÓGICO
Os passarinhos do céu são longânimos:
Atitude ventral: o caboclo sete flechas retira-se da batalha
campal, a tosse espirra com bruma valente, o exú sete trevas rebomba a nau
mestra com galhardia. Veio meu sumário neste dia frouxo de meu poema: a lida é
seca e pura, eu via igrejas pasmadas como delírios na rota de saberes moucos,
surdos aviltados por barulhos, mudos gritando com as mãos, a saber navega em si
o poeta que não sabe de si, louco como um assunto estorvo, mutante que revigora
as pestes de que a antiguidade é farta, pois Seth revirava Bek, Osíris e a fada
Ísis, pelo canto sumério um deserto se abria em Tigre e no Eufrates, pois Baal,
como se via na gira, borbulha tal o elmo, pois Tamuz, Enlil, o grande Marduk
face a face com Tiamat, todo este séquito sabia todas as notas do sistema
sexagesimal, um outro castelo feito na rua astronômica em que dormia tal
estrela, vestes de vestais com Deméter, riso e troça com miasma de tal
defumação do rigor da luta, pastores e ribeirinhos falando tupi no meio do
defumador, eu que lia as cartas e Pai Antônio das Almas apenas fazia fumaça.
II – O FUNDO MUSICAL
As avezinhas do céu são libertárias:
Quando se ouvia Robert Johnson se tinha em seus dedos e
palheta ou sabe-se lá o que foi teu pacto, a ver nas fazendas de algodão um
martírio se ouvia os lamentos virarem arte, pois de outro modo seria apenas
sofrimento e não ladainha, e não saída voilá da parte d`alma que canta, ou se
tudo fosse de fato só duramente forjado, não haveria poesia, só roncos e
patifes, não haveria poesia, só murros em cada passo, não haveria música, só um
estrondo que rimaria desesperado. Pois, com as notas musicais se edifica o
espírito da verdade, e não se rima em demasia a produção dorida, mas se faz
templo de ritual com sete cortes na jugular, como um cancioneiro que ritualiza
não teu dorido lamento apenas, mas teu apaziguado sonho que floreia mais a
utopia geral do que o flagelo do mundo, pois, com todo o concerto, não temos
apenas a dor do coração, mas a felicidade que ruma ao paraíso depois de morta,
uma visão ou antevisão, um dom se assim se quer chamar, ou a violência pacífica
que tem norte e sul em cantorias vertidas do sangue ruim da vida, do líquido
sonhado e azul que não sangra mais, da nobreza escrava que dedilhava as mãos de
blueseiros depois de um drama nas unhas fincadas em algodão.
III – O FUNDO POÉTICO
Os cucos do céu são pontuais:
A poesia métrica ou espatifada são sonoras e musicais, são
discursivas e modais, são poemas com cavaletes, com vinhos, com romanceiros,
vertem fúrias, sobra o espírito vulcânico, corrompe o demônio interno, fulgura
como montanha e galardão. Nota a poesia com vinha retinta, bruma de banho e
sol, como fia sem porfia, como tanto se faz com doses de lida, e nem se faz
idiota, ou pouco inteligente, mas sim como um coro trágico desperta, e longa ou
curta se esmera. Vai-te poesia de sim e de tudo! Mas quanto melisma simbólico,
e frutos metafóricos! A vida se frutifica como mel e maná, otimiza sem lugar,
viraliza sem notar, sem cerimônia o poema eterniza, e rima qual longo sonho ou
delírio, mas, cônscia e reta, a poesia fulmina e gira, tal a sua geologia, tal
a arte geodésica, a rima gravita, o verso em crosta se firma, e à atmosfera
voa. A poesia é esta nau dos insensatos que nada mais faz além de cantar, pois
dádiva tu és, poesia como empresa, vinho como glória, alma como mérito, corpo
como guerra, vícios e virtudes como o que se é. Poesia, tua morada é de mitos,
sua tez é democrática, teu legado é todo o universo, pois uma vez lida, poesia,
tua fuga se encontra, e pasma o mundo sem ter te visto ou mirado quando tudo se
sucedia a olhos vistos, poesia, poesia. Ah, mas que rima pouco dada, que
vagabundo sem sorte! Mas não, poesia tem tudo em uma linha, tudo em dez linhas,
como o fio que não faz porfia, como Ariadne que mata o cão, linha de linha e
costura de armadura, poesia é linda como o verão, respeitável como o inverno,
faz verso na primavera, e depois se despede no outono, com folha seca da relva
vermelha, rubra seca folhagem do sangue, via de fogo fátuo que a natureza
assimila sem enfado, poesia é um grau de mestria por espada e flor, por guerra
e paz, poesia é contradição absolutizante, paradoxo que borbulha champanhe,
vinho tinto seco que lambe a garganta dos sonhos que não são vãos, poesia farta
o homem como um banquete, e quem não a entende passa fome, e o faminto morre
por nada mais, sem poesia. Farta a tua seiva, a tua sebe, a tua colheita, farta
do mundo cão teu verso potente como som, farta do mundo vão dos que passam fome
sem saber. Poesia é comida, é refeição
sagrada da alma, poesia é esta alma canora que dá de comer ao mundo, mesmo que
o mundo prefira a fome.
IV – O FUNDO LITERÁRIO
As andorinhas do céu são veraneios:
A Literatura espiritual que conquista o coração das coisas, o
literário que emana tua estrela pátria, e se expande tal o cosmos que brilha,
tem no livro um maná inesgotável da aventura, pois a escrita se faz em ode e
elegia, alegria e mutação, dor parida e fonte de feliz canção, o poema astúcia
deste concerto é a coroa da vida, a literatura se serve de tudo o que existe na
imaginação, e o mundo real é um espelho que joga com este delírio. Vamos! Toda
a sorte do mundo e todo o amor do mundo neste universo literato, que nos leva
além, que nos dá a luz que vem de um estalo de sol, que nos dá a noite profunda
da reflexão, que nos traz estórias loucas que o mundo surpreende, tais são as
aventuras letradas que sorriem para o dia auroral que nos dá tudo, e que nos
livra de todo o mal. Literatura é um pássaro que vai e voa para mais longe do
que o olhar ao horizonte, que nos vinga de frios eternos da morte, que nos leva
ao cerne de todo o existir, pois que da sombra faz treva espiritual se demudar
em luz própria, e nos dá salvamento para o Orfeu que toca o coração da música,
a literatura vem de poesia e aedos rapsodos e começa a se inserir em ficção,
duas frentes libertárias que é poesia e estória, música e imaginação. Vem me
dar o dia à tarde a carta escrita no outono da vida, no mar que bem se quer com
a flor benquista que bebe vinho, com a dor vertida que nos leva à filosofia
mais bruta do mundo, para mais que tudo o sonho reverter-se do pó e virar céu
azul ao infindo voo, e eis que o torpor não é mais o desejo da pena, mas a
lucidez extrema que povoa o mundo real, a vida mais autêntica que conquista
todo o universo com loas de suprema letícia. As minhas canções saem na rua que
grita estamos aqui, rua da cidade que pula e ri, o circo que passa no vento da
careta que faz a criança, o lúdico que se embrenha em meio ao caos, a cidade
mais alta torre se despe pelo calor e se cobre no frio, todas as canções
atingem o coração das coisas, e a literatura, deste modo, canta de si mesma o
seu terreno imaginoso, de que a terra é repleta, a plenitude é o clímax que o
poema, enfim, ventila, por saber-se tão preso ao chão, mas com o espírito livre
que bebe e come cheio de esperança! Sim! A terra é da literatura e de seu
espírito livre, uns dizem alma de poeta, outros dizem inspiração de artista, e
os que fazem dizem esperança. Literatura é vida reafirmada em sol e gerações
delirantes.
V – O FUNDO FILOSÓFICO
Os anjos do céu são eternos:
A filosofia espiritual emana como a esfinge fundamental que
do karma mais bruto nutre os passos de paquiderme à leveza da angelitude,
passos firmes que sonham alto, passos delicados que trabalham com cuidado,
esmero na arte e força no coração, leão de todas as horas é filosofia e seu
corte na coisa toda, espírito aqui é analítico e sintético, espiritual é o
idealismo totalizante de uma figura final, mas não tem fim, e o estro do
espírito tenta ser sistema, depois tenta ser crítica, antes ainda essência,
depois ainda nada disso, uma das perspectivas, a liberdade, e se está sempre diante
da esfinge que é o universo, o pensamento tem força, mas a existência tem uma
força descomunal diante do pobre pensador que tenta se organizar, toda a poesia
que bebe em filosofia, certa se embriaga, mas continua só cantando, pois do
total que se dá a todo o tempo, os pré-socráticos diziam ser algo, os
contemporâneos ainda o sentem em certas cosmologias, mas tudo que brilha no
olhar destes todos que vivem é a encarnação da dúvida e da origem do mal,
sonhamos muito na paz, e somos sempre bélicos na estrada, se tudo fosse
perfeito ruiria, pois nem poeta e nem filósofo, na sua melhor hora, será pleno
ou perfeito, ondas de humor povoam a terra e seus dramas, o mal do mal gerado
inverte e bem vem como utopia, o canto espiritual ainda ecoa como um pequeno oásis,
já se perdeu, toda esta estória de plenitude já se perdeu, em algo ainda
moramos na esperança, como uma entidade benfazeja nos dizendo que há luz no
mundo, e que nem tudo é grave ou pecado, e que nem tudo a filosofia dá conta, e
que nem tudo a poesia e a literatura resolvem, e que nem no mundo mais brando
do coração não há conflito, a batalha espiritual busca a sabedoria, esta sim
entidade dificílima, repleta das nossas contradições e repetições, a plenitude
dos erros que nos dá tudo que temos, a poesia e toda a literatura, juntando-se
à filosofia e ao mito, como forma de esperanças que tentam dar conta do mundo e
melhorá-lo, e que do erro tenha vez este todo acerto da imperfeição total,
spirituals vem de canto dorido para cantar a esperança que já está em todo
coração que sonha e faz, libertação é o nome de spirituals, este é o poema.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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