“vemos, por fim, um conjunto de críticos apologistas e
impressionistas”
PERSPECTIVA CRÍTICA -
PARTE II
Dos críticos apologistas temos exemplos como Antônio Torres,
que produziu seu artigo sobre Augusto dos Anjos logo depois da morte deste
poeta. Nela vemos levantadas algumas das influências do poeta como as de
Haeckel e de Spencer, cientistas da época do poeta, e que lhe incutiram as
ideias monistas e materialistas. Mas logo a crítica é uma apologia, não uma
crítica estética ou reflexiva, e que vem com questões sobre a personalidade do
poeta mais do que o significado de seus poemas enquanto tais. Mais um exemplo da profusão da crítica
impressionista sobre o poeta, a qual grassou na primeira geração de críticos de
sua obra.
É bom frisar que Antônio Torres leu apenas a edição dos
poemas do Eu, ou seja, a primeira edição de 1912, e não a segunda edição de
1920, a qual incluiu as Outras Poesias, esta edição que então recebe o prefácio
de Órris Soares, com o livro que agora recebia o título Eu e Outras Poesias. Órris
Soares tem este mérito de ter publicado os poemas inéditos de Augusto dos
Anjos, pois o material que foi publicado como Outras Poesias certamente era
para um segundo livro do poeta, cujo andamento tinha sido cessado com a sua
morte.
E o prefácio de Órris Soares tem muita importância, pois
seguiu nas diversas edições do livro do poeta e virou uma referência, mesmo que
fosse mais um exemplo de apologia e não de crítica literária como tal. Este
crítico, mesmo tendo o mérito do prefácio que se torna histórico e uma das
referências principais sobre a obra de Augusto dos Anjos, é mais um crítico
impressionista e apologista que se funda em aspectos exteriores à obra em si do
poeta, na sua heroicização, numa visão romantizada e idealizada de uma suposta
singularidade especial capaz de decifrar a natureza essencial da realidade, e
mais uma vez nos deparamos com uma crítica que mistura vida e obra.
Na crítica de João Ribeiro, então, vemos um dos extremos a
que se chega tal crítica impressionista, numa mistificação da doença do poeta,
como definidora da obra, uma visão ingênua que se funda mais no contexto do que
na obra em si. E temos também com João Ribeiro uma das críticas mais
superficiais feitas sobre a obra de Augusto dos Anjos.
E temos uma melhor crítica, finalmente, com Agripino Grieco,
este que é o destaque positivo desta primeira geração de críticos da obra de
Augusto dos Anjos. Um grupo ainda caracterizado pelo impressionismo, com este
crítico já mais atento ao léxico da obra do poeta, mesmo que ainda com um
caráter apologista em certos momentos.
José Oiticica, por sua vez, como amigo do poeta que foi, destaca
sua crise financeira, esta como determinante de sua obra, o que mais uma vez
representa uma visão rasa, que ilustra, mas que não ganha caráter teórico ou
propriamente crítico. Aqui vemos, por fim, um conjunto de críticos apologistas
e impressionistas que se ligam ao entorno do poeta e não à sua obra, uma
crítica ainda rasa e ingênua.
POEMAS :
O LUPANAR : O poema abre com a trama do homem
lascivo, que se expande em uma grande sede, no que temos : “Ah! Por que
monstruosíssimo motivo/Prenderam para sempre, nesta rede,/Dentro do ângulo
diedro da parede,/A alma do homem polígamo e lascivo?!/Este lugar, moços do
mundo, vede :/É o grande bebedouro coletivo,/Onde os bandalhos, como um gado
vivo,/Todas as noites, vêm matar a sede!”. E o poeta logo convida a todos para
este grande banquete em que a promiscuidade é a lei e em que se mata a força
geradora das coisas, o último óvulo do ventre, no que temos : “Em que é mister
que o gênero humano entre,/Quando a promiscuidade aterradora/Matar a última força
geradora/E comer o último óvulo do ventre!”. A poesia de Augusto dos Anjos aqui
tem a força natural descritiva bem potente e com bom conhecimento científico,
como vemos em grande parte de sua obra, que é riquíssima em referências
biológicas.
IDEALISMO : O poema tem este caráter rarefeito
da presença do amor na poesia de Augusto dos Anjos, no que temos : “Falas de
amor, e eu ouço tudo e calo!/O amor na Humanidade é uma mentira./É. E é por
isto que na minha lira/De amores fúteis poucas vezes falo.” (...) “Pois é
mister que, para o amor sagrado,/O mundo fique imaterializado” (...) “E haja só
amizade verdadeira/Duma caveira para outra caveira,/Do meu sepulcro para o teu
sepulcro ?!”. Logo a morte e suas referências, como a caveira e o sepulcro
detonam qualquer possível veia romântica que porventura o poeta poderia
revelar, doce ilusão.
ÚLTIMO CREDO : A morte é um tipo de última prova de
fé, o cemitério, que tem aqui a via para o transcendente, um mistério que, no
entanto, por ser exercício de fé e de espírito, busca convergência ou ainda a
essência das coisas, no que temos : “Como ama o homem adúltero o adultério/E o
ébrio a garrafa tóxica de rum,/Amo o coveiro – este ladrão comum/Que arrasta a
gente para o cemitério!/É o transcendentalíssimo mistério!/É o nous, é o
pneuma, é o ego sum qui sum,/É a morte, é esse danado número Um/Que matou
Cristo e que matou Tibério!”. E Augusto dos Anjos então antevê a si mesmo como
o homem universal do mundo vindouro, uma espécie de teor visionário que
deixaria a sua carcaça de homem individual para trás, no que temos : “Creio,
perante a evolução imensa,/Que o homem universal de amanhã vença/O homem
particular que eu ontem fui!”.
SOLILÓQUIOS DE UM
VISIONÁRIO : O
mistério se junta aqui ao fenômeno da decomposição, que é bem descrito na
metáfora da antropofagia, na fome dos vermes que moram nas terra e no
cemitério, no que temos : “Para desvirginar o labirinto/Do velho e metafísico
Mistério,/Comi meus olhos crus no cemitério,/Numa antropofagia de faminto!”
(...) “Vestido de hidrogênio incandescente,/Vaguei um século, improficuamente,/Pelas
monotonias siderais .../Subi talvez às máximas alturas,/Mas, se hoje volto
assim, com a alma às escuras,/É necessário que inda eu suba mais!”. A alma vai
às alturas siderais, cai e deseja subir mais uma vez, e a imagem da
decomposição, da fome e da morte, junta-se a um esgar de um espírito imortal,
sidéreo e que vai às máximas alturas.
OS DOENTES : Temos aqui uma das mais ricas
descrições da tísica feita por um poeta, este poema brilha e nos dá uma
sucessão brutal do que é esta doença em forma de poesia, um poeta que faz seus
versos definirem com precisão cirúrgica este tipo de inferno de tosse que é a
tísica, no que temos : “Dormia embaixo, com a promíscua véstia/No embotamento
crasso dos sentidos,/A comunhão dos homens reunidos/Pela camaradagem da
moléstia./Feriam-me o nervo óptico e a retina/Aponevroses e tendões de Aquiles,/Restos
repugnantíssimos de bílis,/Vômitos impregnados de ptialina./Da degenerescência
étnica do Ária/Se escapava, entre estrépitos e estouros,/Reboando pelos séculos
vindouros,/O ruído de uma tosse hereditária/Oh! desespero das pessoas tísicas,”.
E o teor evolutivo também vira tema, e a boca vem com catarro e sangue, no que
temos : “Descender dos macacos catarríneos,/Cair doente e passar a vida inteira/Com
a boca junto de uma escarradeira,/Pintando o chão de coágulos sanguíneos!”
(...) “Falar somente uma linguagem rouca,/Um português cansado e
incompreensível,/Vomitar o pulmão na noite horrível/Em que se deita sangue pela
boca!”. A morte, então, encerra o discurso poético, com uma coda fatal,
cortante, o imposto que toda vida orgânica paga ao fim é a morte, a tal da
impermanência das coisas, e a doença é um dos agentes especiais da indesejada
morte, que o poeta bem vê ao fim de seu poema, no que temos : “E o ar fugindo e
a Morte a arca da tumba/A erguer, como um cronômetro gigante,/Marcando a
transição emocionante/Do lar materno para a catacumba!” (...) “Porque a morte,
resfriando-vos o rosto,/Consoante a minha concepção vesânica,/É a alfândega,
onde toda a vida orgânica/Há de pagar um dia o último imposto!”.
VOZES DE UM TÚMULO : A morte do poeta está aqui bem
consciente, ele a descreve, com intuito narrativo, num jogo de moléstias e com
a presença tétrica do cemitério, no que temos : “Morri! E a Terra – a mãe comum
– o brilho/Destes meus olhos apagou! ... Assim/Tântalo, aos reais convivas, num
festim,/Serviu as carnes do seu próprio filho!/Por que para este cemitério
vim?!/Por quê?! Antes da vida o angusto trilho/Palmilhasse, do que este que
palmilho/E que me assombra, porque não tem fim!” (...) “Hoje que apenas sou
matéria e entulho/Tenho consciência de que nada sou!”. Por mais alta que seja a
sua poesia, o poeta diante da morte sabe que não é nada.
GEMIDOS DE ARTE : O poema vem num clima geral de
desilusão, o que deixa o poeta acabrunhado, limitado, dentro de um redemoinho
que lhe estrangula com a angústia que vira uma tortura insuportável, os versos
fluem numa dorida descrição de sua pena de mágoas : “Esta desilusão que me
acabrunha/É mais traidora do que o foi Pilatos! ...” (...) “Em giro e em
redemoinho em mim caminham/Ríspidas mágoas estranguladoras,”. E o poeta deseja
que um raio de Jeová lhe fulminasse, destruindo até o seu raciocínio, no que
temos : “Ah! Por que desgraçada contingência/À híspida aresta sáxea áspera e
abrupta/Da rocha brava, numa ininterrupta/Adesão, não prendi minha existência?!/Por
que Jeová, maior do que Laplace,/Não fez cair o túmulo de Plínio/Por sobre todo
o meu raciocínio/Para que eu nunca mais raciocinasse?!”. E o poema segue em seu
desejo de estar em outro lugar, queria o poeta então : “Quisera antes, mordendo
glabros talos,/Nabucodonosor ser no Pau d`Arco,/Beber a acre e estagnada água
do charco,/Dormir na manjedoura com os cavalos!/Mas a carne é que é humana! A
alma é divina.”. E o divino e transcendente lhe é um desejo caríssimo, é seu
anelo maior neste poema, no que temos : “Soberano desejo! Soberana/Ambição de
construir para o homem uma/Região, onde não cuspa língua alguma/O óleo rançoso
da saliva humana!/Uma região sem nódoas e sem lixos,/Subtraída à hediondez de
ínfimo casco,”. Enfim, desejo de estar em outro lugar, este desejo comum do
sofrimento e da angústia, no que segue : “Outras constelações e outros espaços/Em
que, no agudo grau da última crise,/O braço do ladrão se paralise/E a mão da
meretriz caia aos pedaços!”.
DEPOIS DA ORGIA : O poema é promíscuo, e que vem como a
descrição da orgia, no que temos :“O prazer que na orgia a hetaíra goza/Produz
no meu sensorium de bacante/O efeito de uma túnica brilhante” (...) “Troveja! E
anelo ter, sôfrega e ansiosa,/O sistema nervoso de um gigante/Para sofrer na
minha carne estuante/A dor da força cósmica furiosa./Apraz-me, enfim, despindo
a última alfaia/Que ao comércio dos homens me traz presa,/Livre deste cadeado
de peçonha,/Semelhante a um cachorro de atalaia/Às decomposições da Natureza/Ficar
latindo minha dor medonha!”. E a presença da morte da imagem da decomposição é
o cenário em que a Natureza age, e o poeta late como um cão a sua dor que ele
define como medonha.
VENCIDO : O poeta descreve aqui o vencido, que
começa lendo tudo, desde o mito mais primitivo, no que temos : “No auge de
atordoadora e ávida sanha/Leu tudo, desde o mais prístino mito,” (...) “Acometido
de uma febre estranha/Sem o escândalo fônico de um grito,/Mergulhou a cabeça no
Infinito,/Arrancou os cabelos na montanha!/Desceu depois à gleba mais bastarda,”.
Diante do infinito no qual mergulha, o vencido então esbarra na doença, na sua
maldição em que nasceu, em que o poema se encerra, assim : “E ao vir-lhe o
cuspo diário à boca fria/O vencido pensava que cuspia/Na célula infeliz de onde
nasceu.”.
NOITE DE UM VISIONÁRIO
: O poeta descreve
aqui uma saga da luta entre o conhecimento e a união monística com o todo
contra a sua dissolução numa carne liquefeita, ou ainda a parte corrupta de seu
ser orgânico, que é tão potente, que a ideia de alma aqui se torna inútil e até
ridícula, no que temos, num panteísmo que é em vão, o poeta e suas alusões
desesperadas, no que segue : “Número cento e três. Rua Direita./Eu tinha a
sensação de quem se esfola/E inopinadamente o corpo atola/Numa poça de carne
liquefeita!” (...) “É a potencialidade que me eleva/Ao grande Deus, e absorve
em cada viagem/Minh`alma – este sombrio personagem/Do drama panteístico da
treva!/Depois de dezesseis anos de estudo/Generalizações grandes e ousadas/Traziam
minhas forças concentradas/Na compreensão monística de tudo./Mas a aguadilha
pútrida o ombro inerme/Me aspergia, banhava minhas tíbias,”. A ação natural
aqui é como um ente destrutivo, que lhe esfola a alma, lhe retira as partes,
lhe quebra e lhe leva ao hospício, no que temos : “Arimânico gênio destrutivo/Desconjuntava
minha autônoma alma” (...) “E eu saí a tremer com a língua grossa/E a volição
no cúmulo do exício,/Como quem é levado para o hospício/Aos trambolhões, num
canto de carroça!”. E vem então a sucessão dos vermes, os agentes principais da
decomposição, soldados da finitude e comedores da morte, no que temos : “Bulia
nos obscuros labirintos/Da fértil terra gorda, úmida e fresca,/A ínfima fauna
abscôndita e grotesca/Da família bastarda dos helmintos.”. E o poema ganha em
grandiosidade na descrição alarmante dos seres corruptíveis, e aqui com seus
agentes da morte, que é nada mais que a sucessão dos seres repugnantes, os
vermes, e o poema então dá a sua carga dramática quando nos diz diante da
finitude orgânica que o motor teleológico da vida para, e a matéria finita
então se dissolve, num poema verminoso e mortal, no que temos : “E no estrume
fresquíssimo da gleba/Formigavam, com a símplice sarcode,/O vibrião, o
ancilóstomo, o colpode/E outros irmãos legítimos da ameba!/E todas essas formas
que Deus lança/No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,/Um pedaço de língua
disponível/Para a filogenética vingança!/A cidade exalava um podre bafio:/Os
anúncios das casas de comércio,/Mais tristes que as elegias de Propércio,/Pareciam
talvez meu epitáfio./O motor teleológico da Vida/Parara! Agora, em diástoles de
guerra,/Vinha do coração quente da terra/Um rumor de matéria dissolvida.”. O
poema então aqui condensa tal ação destruidora da natureza como um destino
universal, e no qual o poeta é puxado como que para um abismo : “Dedos
denunciadores escreviam/Na lúgubre extensão da rua preta/Todo o destino negro
do planeta,/Onde minhas moléculas sofriam./Um necrófilo mau forçava as lousas/E
eu – coetâneo do horrendo cataclismo –/Era puxado para aquele abismo/No
redemoinho universal das cousas!”.
POEMAS :
O LUPANAR
Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!
Este lugar, moços do mundo, vede :
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!
É o afrodisíaco leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,
Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!
IDEALISMO
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo?!
Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro –
E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro ?!
ÚLTIMO CREDO
Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!
É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!
Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui ...
Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!
SOLILÓQUIO DE UM
VISIONÁRIO
Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!
A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!
Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais ...
Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!
OS DOENTES
(obs : aqui temos apenas um trecho do poema que achei
interessante)
III
Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.
Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,
Vômitos impregnados de ptialina.
Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e estouros,
Reboando pelos séculos vindouros,
O ruído de uma tosse hereditária.
Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!
Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem!
Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos!
Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!
Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!
Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!
Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!
Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!
E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!
Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.
Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta omnívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!
Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!
VOZES DE UM TÚMULO
Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho
Destes meus olhos apagou! ... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!
Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta ...
Hoje, porém, que se desmoronou
A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!
GEMIDOS DE ARTE
I
Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos! ...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.
Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!
Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladoras,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também giram e redemoinham.
Os pães – filhos legítimos dos trigos –
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra ...
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!
Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!
Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!
Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!
Quisera antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d`Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!
Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!
Ser homem! escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!
E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!
Barulho de mandíbulas e abdomens!
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!
Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!
Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!
Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!
DEPOIS DA ORGIA
O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium
de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!
Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.
Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,
Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza
Ficar latindo minha dor medonha!
VENCIDO
No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo : o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.
Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!
Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
À vontade do vômito plebeu ...
E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.
NOITE DE UM VISIONÁRIO
Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!
- “Que esta alucinação tátil não cresça!”
- Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.
É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh`alma – este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!
Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.
Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias,
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.
Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.
E eu saí a tremer com a língua grossa
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!
Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.
A essa hora, nas telúricas reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das ervas.
E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!
Bulia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.
As vegetalidades subalternas
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.
E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!
E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a filogenética vingança!
A cidade exalava um podre bafio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elegias de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.
O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.
A química feroz do cemitério
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser
deletério.
Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.
Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu – coetâneo do horrendo cataclismo –
Era puxado para aquele abismo
No redemoinho universal das cousas!
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36436/17/augusto-dos-anjos-perspectiva-critica