PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A LOUCA

A louca bebia água do chafariz,
era louca com um nariz vermelho
e uma rosa nas saias,
cantava nas ruas da zona pobre
que nenúfares sonham
e vitórias-régias deliram,

a louca bebia no cálice
de seus vinte maridos,
tinha setenta filhos,
com sua prole de bárbaros
ela descia armada
e pintava de lua
suas canções lunáticas,

a louca viajava para a estrela vésper
como uma borboleta amarela
que sorvia todo o encanto
dos meditativos édens
do clímax espiritual,

a louca era esfarrapada,
mas nas noites de sexo
bradava como uma bomba
seus orgasmos múltiplos,
num prazer eclético
que a louca
chamava
de céu 
e de paraíso.

09/11/2017 Gustavo Bastos 

O MAGO

Eu tiro as condecorações,
os efeitos alucinógenos
da flor,
eu retiro os postos e os privilégios,
eu pinto de verde o campo cinza,
eu que de meus miolos
tenho caro e claro
minha mágica,

eu tiro de um súbito uma iluminura,
tenho topázios e berilos
com cantos marcados
de cicatriz,

tenho os dias como presentes divinos
na sensaboria das zonas de guerra,
ouve-se o estampido à distância,
um exército fordista
produz a febre
destas máquinas
de poder,

eu tenho um tipo de surto astral
em meio ao lusco-fusco
das percepções,
foi quando desceu o mago
e teve este um encontro mercurial
com suas sete chaves que abriram
o sol em saturno.

09/11/2017 Gustavo Bastos

HISTÓRIA DE UM POETA

Atenazado o corpo foge de uma
alma desesperada,
consulto maria molambo
com um olho de astúcia
nos movimentos
das ondas,

passo ao fundo do ritual,
a pombajira me tem como
um abscôndito poeta
de livramentos,
um bissexto elegíaco
que morre de tísica
como um troglodita
das quedas das cascatas,

oh meu olho & meu absinto,
labirinto de odres cheios,
o karma & o corpo barrento,

bebo com um tonto de farda,
bebo com mais um de chapéu,
bebo o horizonte
dos mortos
como defumações
atávicas
de um totem
tribal,
ou ainda o corpo original
da horda,

atenazada a alma
se encontra
inteiriça,
rompe então
os grilhões
da loucura,
e qual borboleta
dá um salto
geométrico
de círculo
com gramatura
sólida
de um mensageiro
em monólitos
e granitos,

eu que sou este que vê,
eu que sou este que ouve,
tenho a sinestesia
própria aos loucos,
e danço na presença
da horda
o canto primal
dos trogloditas,

o corpo volta, no entanto,
e a alma inteira se
quer como estrela.

09/11/2017 Gustavo Bastos

ESTUDOS DO NOVO

E o fervilhar apoplético
me ensina na dura carne
sua lição de pedra,

eu babo e me lambuzo de mel,
eu que sou o átimo que pulula
com ventre e geofísica
das danças,

certo o ponto e o eixo,
o corpo se volta à altitude,
com um corpo todo arte,
com um corpo que é vinho,

é o eixo em que a força motriz
movimenta sua mecânica
de canto abissal,
é o poeta que azeita
as curvas da máquina
como um bufão,

eu bebo e me molho de mar,
uma saraivada de poetas
invade o balneário,
e eu ataco como um gavião
os seres pequenos de luz
que surgiam nesta noite
das fadas,

mando ao púlpito o que me livra
de mais uma lição de pedra,
esta que agora não rola
e se porta aziaga,
quero uma porta astral
para meus abismos,

sem pedra que fecha o templo,
sem lições pútridas
que já não fazem
sol.

09/11/2017 Gustavo Bastos

VIAGEM ORIENTAL

Derrubo um odre em Meca,
deambula o sono de haxixe
no canto de nênia
que exultava
bruxarias
no ermo
do deserto.

Fervia o beduíno com sua canção lilás,
eu tocava os sinos do átrio
como uma opereta bufa
de camelos endoidecidos
e sem água,

me voltei ao muro das lamentações,
uma nova jerusalém
pisava firme
como no velho templo
salomônico
em que as odes
eram sóis
de tramas
universais,

oh meu cabedal de letras mortas,
como um poeta nômade,
eu bebia junto aos errantes
de nínive um farol
no meio do calor.

09/11/2017 Gustavo Bastos

POLAROIDES LOUCAS

A manhã eu registro em polaroide
os ócios e a manha esportiva
dos antros criativos,
meio que moleque de dança,
eu, quando jovem doido,
bem avantajado
nas cordas vocais,
dando gritos
a esmo.

Perfilei os rostos diante do diafragma,
a distância curta me permitiu
distinguir todo o ambiente
e suas cores vivas,
como se eu tivesse
com um sexto sentido
automático,
e disparei.

Polaroides rotas, na carne o flash
é um tempo espiritual,
e ao fim da estória
temos estas visões
parasitárias
dos corpos
que são as
fotos.

09/11/2017 Gustavo Bastos

DEAMBULAÇÕES NO QUARTO

Que o quarto é uma batalha campal
isto não é novo,
tenho pilhas de cadernos idiotas,
monturos de papel aziago,
e livros que marcham
estupefatos para
a minha insciência.

Lota-se o quadro todo lusco-fusco,
e diante da luminária
um agudo luzidio e tenebroso
chamuscado de curto-circuito,
meu choque gutural
antes da densa
madrugada,

então tenho mesmo que antever
certas cascatas,
noites insones,
gases tóxicos,
manhãs ociosas.

Tenho que correr a mão na hora
do horror total
que são minhas
canções
dentro
da masmorra,
e o quarto é somente
silêncio à meia-noite.

09/11/2017 Gustavo Bastos

CASA DE TOLERÂNCIA

Não é aqui que acordo de um sonho,
poeta que navega sabe bem
que o delírio ruiu,
ele se sente bem,
conta seus prazeres
com a sua navalha.

Meio tonto, os coveiros brindam
meio a meio seus dividendos,
casas de tolerância anunciam
em neon a grande atração:
uma diaba loura,
toda enlutada.

Vai-te abra-te sésamo
das noites terríveis!
Compro um ingresso para ver
nosferatu e frankenstein,
tenho tremores
no fundo da tela,

eu, que tanto sonhei com vinhos
fosforescentes,
eu minto na casa de tolerância,
os anéis da cafetina
brilhavam contra meus olhos
zonzos de prazer,
e a sessão terrível
era bem pornográfica,
tocavam marchas fúnebres,

batia a manhã,
eu lia mary shelley
num espasmo,
a virgem de olhos doces
derretia nosferatu
de amores,

senti em noite de lupanar
eu também me tornar
monstro e vampiro,
numa fantasia atávica
de huno e troglodita,
com a face medonha
de um mongol.

09/11/2017 Gustavo Bastos

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

CIGARRO

“O tabagismo é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a principal causa de morte evitável no mundo”

O cigarro tem uma História longa, que começa na América, mais exatamente no uso medicinal e cerimonial do tabaco por indígenas da América Central, fazendo parte de rituais religiosos e mágicos. Uso que era feito já por volta do ano 1.000 a.C., com a planta do tabaco que tem origem nas Américas, e que recebe o nome científico de “Nicotiana tabacum”, tendo como um de seus principais componentes a nicotina.
Na mesma época em que Cristóvão Colombo chega à América no século XV, vendo o hábito de fumar o tabaco enrolado que os indígenas faziam, veio o navegador Rodrigo de Xerxes, que experimentou o hábito indígena e resolveu levar folhas de tabaco para a Europa, local em que a folha foi usada já no século XVI sob a forma de charutos, e restrito aos mais ricos. Os pobres, por sua vez, mais exatamente os mendigos de Sevilha, na Espanha, deram origem ao cigarro, pois tiveram a ideia de picar os restos dos charutos que encontravam nas ruas e enrolar num papel o tabaco picado para então fumar. Surgia, portanto, o cigarro.
O cigarro só foi se tornar popular, no entanto, somente quando no fim do século XIX, James Bonsack inventou a máquina de enrolar cigarros, o que popularizou o hábito de fumar cigarros, e hoje, depois de sua glamourização no cinema clássico pelo meio do século XX, temos agora a droga que mais mata no mundo, com seu agente viciante que é a nicotina, que libera dopamina e torna o cérebro da pessoa dependente, tendo irritabilidade na abstinência da droga, pois sua falta libera noradrenalina, sendo o hábito de fumar algo difícil de largar para algumas pessoas.
O tabagismo é considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a principal causa de morte evitável no mundo. E, além da nicotina, que causa a dependência, temos no cigarro a presença do alcatrão, agente cancerígeno, e do monóxido de carbono, que obstrui os vasos sanguíneos com a aterosclerose. Além do câncer, o cigarro causa envelhecimento precoce, pele seca, aparecimento de rugas e queda de cabelo. Sendo o tabagismo responsável por grande parte das mortes por câncer de boca, de pulmão, doenças cardíacas, podendo causar infarto, mortes por bronquite, enfisema pulmonar e por derrame cerebral, com o tabaco, para os homens, sendo o responsável por impotência sexual e infertilidade.
O ato de parar de fumar pode incluir adesivos ou chicletes de nicotina, auxílio psicológico, beber água, práticas esportivas, e remédios como a Bupropiona, que foi concebida como um medicamento para tratar a depressão, mas que se percebeu que também diminuía a vontade fumar, sendo atualmente receitado para quem quer parar de fumar e não consegue por outros meios, sendo que também temos a Vareniclina, medicamento este que foi concebido diretamente para o tratamento do tabagismo, que age no sistema nervoso central, pois diminui a síndrome de abstinência.  Temos também vias alternativas de tratamento da dependência do cigarro como são a acupuntura, e os remédios naturais, como os florais. Não é fácil, pois como disse uma vez Winston Churchill : “Parar de fumar é fácil. Já parei mais de vinte vezes.”.
Hoje temos o primeiro país que proibiu o consumo de cigarros no mundo, que foi o Butão, e políticas de cerceamento do consumo, sendo que aqui no Brasil já não temos mais veiculação de anúncios televisivos, rádio e jornais vendendo cigarros. E me lembro do Free, questão de bom senso, dos anúncios esportivos do Hollywood, e dos caubóis do Marlboro, mortos por doença pulmonar, e tínhamos também festivais musicais patrocinados ou com a marca de um cigarro, como eram o Free Jazz e o Hollywood Rock, que foram proibidos.
Temos também hoje as zonas proibidas do fumo, como locais comerciais fechados, aeroportos, aviões, sendo até um pouco bizarro quando me lembro da minha infância no fim dos anos 80, viajando de Transbrasil, cujas poltronas eram divididas entre fumantes e não-fumantes. As embalagens de cigarro no Brasil agora deixaram a mensagem simples “fumar faz mal à saúde” e partiram para fotografias no verso dos maços com imagens chocantes dos malefícios reais do cigarro, incluída aí a morte, imagens que também cobrem por todos os lados a publicidade que restou dos cigarros no Brasil. No entanto, se fuma muito ainda na Europa, em países como a França e a Itália, com índice alto na Grécia, também na Rússia, na América do Sul temos o Chile, e com taxas altas também na Indonésia, e com Kiribati batendo o teto do mundo.
Os cigarros de bali, por sua vez, representam um perigo maior do que o dos cigarros normais, e temos também fumantes de kretek, que são cigarros de cravo, com índice muito maior de casos de câncer, além dos cigarros de bali, tais como o gudang garam, vemos também por aí cigarros comuns com sabor, que vêm, por exemplo, com uma bolinha de menta como o Lucky Strike da embalagem preta, que é o chamado clickroll.
Na ala dos cigarros normais temos o chamado mata-ratos como o Derby vermelho e mata-ratos caros como o Camel, de filtros amarelo e bem fortes como o Marlboro vermelho, e cigarros mais light de filtro branco como o que eu fumava antes de parar que era o Hollywood azul.
Sendo que o viciado tenta parar com pastilhas, adesivos, negocia um varejinho na esquina com coca-cola como eu fazia, até que vi uns filmes do Bruce Lee e consegui largar o vício sem auxílio médico ou com adesivos e pastilhas, pois de nicorete já tinha gasto uma fortuna, com efeitos passageiros, para depois voltar ao mito de Sísifo de parar e voltar à estaca zero, sendo que agora estou há mais de duzentos dias limpo.
Mas, não estranhem, não virei o “chato do cigarro”, isto é, aquele que quando vê alguém, sente o desejo irresistível de fazer a pergunta clássica : “Fumando? Você sabia que isso faz mal?” ou ainda tentam lhe dar uma ordem : “Larga isso!”, não, não virei o chato do cigarro, pois fumei e conheço estes gênios da raça, só achei o assunto tabagismo interessante para uma crônica, e independentemente de chatices óbvias que os fumantes enfrentam, tanto os que não tentam largar o vício, como os que tentam, informação nunca é um luxo, e ter informação é fundamental, assim incluído os cuidados da saúde, pois o vício, fora os tratamentos todos, é uma daquelas coisas em que o sujeito tem que escapar sozinho, por si mesmo. E sem me esquecer :    Obrigado, Bruce Lee.

Link recomendado : Ratos de Porão – Direito de Fumar : https://www.youtube.com/watch?v=U8jcZ6Sq-jA

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.






O ALEPH DE JORGE LUIS BORGES, LIVRO DE CONTOS

“Borges duvida, até que vê através do Aleph um mundo inteiro de fatos e cenas”

O BORGES CONTISTA

O Aleph é um conjunto de 17 contos escrito pelo autor argentino Jorge Luis Borges que foi publicado em 1949 e que é um dos pontos mais altos que atingiu a literatura borgiana, que nunca concebeu um romance, mas que foi feita por contos, ensaios, crítica literária e poesia, e o poder sintético e de erudição dos contos borgianos, por sua vez, tinham uma densidade suficiente para abarcar um universo completo que mesmo muitos romancistas não alcançaram.
O conto em Borges adquire uma dinâmica própria de referências reais e inventadas, dando um lugar próprio do conto na literatura universal, Borges representa uma voz universal e abrangente de uma complexidade poliédrica que exige do leitor preparo enciclopédico na proporção original de suas maquinações nos contos, que juntando a erudição real e inventada, cria uma imaginação fantástica, mas que ganha certo ar de verossimilhança, dado o caráter convincente do que Borges narra em seus contos, como um prestidigitador com habilidade especial para nos conduzir num mundo vasto e labiríntico.

O IMORTAL

No conto “o imortal” já temos um Borges como um inventor que une literatura e filosofia, em que a Ilíada funciona na sua referência como uma homenagem alegórica e bem própria de Borges ao mestre grego Homero. A narrativa borgiana então se coloca na perspectiva erudita de um relato que evoca uma lembrança de uma parte da Ilíada, num jardim de Tebas, ou talvez no Egito, se buscava o rio “que purifica os homens da morte”. O conto é um relato da questão da imortalidade e de como seriam seus efeitos, no que temos uma visão pessimista de Borges, que povoa a tal Cidade dos Imortais de rudimentares trogloditas, que nem sabem se expressar, e o tédio poderia ser um destes efeitos de uma vida imortal, sem as demandas de um mundo real, de um mundo que respira ou que dói.
A viagem é bem descrita, Borges nos enumera um mundo mítico vasto, a dita Cidade dos Imortais não tem nada de fascinante, no entanto. A parte que cabe de intento filosófico é fazer uma descrição devastadora do que seria esta condição sobrenatural dos imortais, uma vez que na mitologia esta imortalidade era privilégio dos deuses, e aqui com Borges ela é objeto de um escárnio composto por seres ignorantes, o rio que leva este conto conduz ao nada, ao mundo sem movimento, que é o mundo em que a morte foi abolida, e o desejo da imortalidade pode ser que seja este nada de que o mortal padece.
O paradoxo que Borges levanta é desconstruir o que a imortalidade poderia ter de sedutora, colocando os trogloditas como estes habitantes de um mundo empacado numa plenitude que é vento, vácuo e vazio. E a imagem cara do labirinto borgiano só vem para reforçar o desamparo e desorientação que reina na Cidade dos Imortais, e a insensibilidade deste mundo é que se pode ser todas as coisas, numa espécie de eterno retorno, mas em que não se é nada, um homem cai de um penhasco e nenhum dos imortais faz nada, a piedade sumiu neste mundo imortal.

OS CONTOS ARGENTINOS

No conto “o morto”, por sua vez, temos um relato de valentia de um homem do subúrbio de Buenos Aires, Benjamin Otálora, uma das incursões de Borges na Argentina com uma alegoria vestida de História, assim como se dá nos contos “Biografia de Tadeo Isidoro Cruz” (este tendo origem na obsessão borgiana chamada Martin Fierro), e na “História do guerreiro e da cativa”, Otálora que vai ao Uruguai, viver como um gaúcho, com toda a demanda de perigo, e armada na imagem de Azevedo Bandeira, o cheiro de cavalo, a vida no meio do gado, a planície selvagem que ignora a cidade, vidas embrutecidas de álcool reinam no cenário briguento deste conto bem argentino, à moda Borges.

OS TEÓLOGOS RIVAIS

No conto “os teólogos” temos uma competição entre Aureliano e João de Panônia, envolvendo a ideia de um tempo cíclico, circular, herdado de um trecho que sobrevive de Platão, na verdade a Civitas Dei agostiniana relatando um episódio que narra o que Platão ensinou em Atenas, depois de uma invasão dos hunos numa biblioteca monástica, em seu ódio contra as letras, possuídos de um deus deles que era uma cimitarra de ferro.
E da seita dos monótonos, Aureliano sabe de uma doutrina que pregava exatamente esta ideia complexa da Roda, a história como um círculo alijando a outra ideia da Cruz. Aureliano tenta se adiantar no seu estudo, lê Plutarco, e ali, numa zombaria contra os estoicos, se recusa a heresia em questão, e Aureliano trata também logo de refutá-la. Seu movimento era no sentido de se antecipar a seu rival João de Panônia. Num elenco vasto em forma de escárnio, o trabalho de Aureliano, também brandindo o texto de Plutarco contra os monótonos, se depara logo com um trabalho “irrisoriamente breve” de João de Panônia, este que começava glosando os capítulos finais do capítulo IX da Epístola aos Hebreus, e com João temos a defesa da Cruz e da eternidade contra o tempo circular, e Aureliano sentiu uma humilhação “quase física”.
E eis que surge uma outra heresia, um cisma que vai despontar no oriente como Macedônia e Cartago, também na Bretanha, em que os crucifixos tinham sido invertidos, e Cesárea que presencia a suplantação da imagem do Senhor por um espelho. Começa então um ascetismo que herda dos Livros Herméticos e do Zohar a ideia de que o que está embaixo é igual ao que está em cima, e com o espelho isso transforma todo o mundo material num simulacro, era a doutrina enlouquecida dos que foram denominados histriões, que fizeram nada mais que uma versão pervertida da ideia original dos herméticos, confusão com a qual João de Panônia pagará com a morte, através da intriga de Aureliano, e a indiferença do céu ao fim coloca os dois teólogos rivais como a mesma pessoa, num sentido de que a morte e ascensão da alma igualam os homens, não importa quem é o herege ou o ortodoxo.

OS LABIRINTOS DE BORGES

E temos também no livro de contos O Aleph, um conjunto de três contos labirínticos ou sobre labirintos, o “a casa de astérion” é um que se encerra evocando Ariadne e o Minotauro, e que é um conto em que se descreve a repetição incessante de cenários e objetos, uma multiplicidade também circular, como na heresia do conto dos teólogos, e a repetição dá aqui sentido de opulência, e um astérion isolado no seu refúgio, não precisa da arte da escrita nem do pensamento dos filósofos, se basta, e inventa para si um duplo, que também participa da profusão de repetições que é o cenário do conto circular, labirinto de Creta em sua versão num conto sintético e enxuto.
O outro conto labiríntico é “aben hakam, o bokari, morto em seu labirinto”, e este encerra tanto as agruras de um rei de Babel paranoico, como de uma confusão da memória na narrativa, desta que também participam como seus emissários, Dunraven e Unwin, a morte de Aben Hakam é um paradoxo em que o teste é feito dele com seu primo Said, com as mortes de alguns de seu povo, Aben Hakam as carregou para o seu labirinto, onde seus fantasmas lhe assediaram, o bokari, e este que no fim troca ou se inverte, ou melhor, é Said que usa o seu nome, a morte e o labirinto podem ser um tipo alegórico de confissão de culpa, Aben Hakam é um rei atormentado. E no conto breve “os dois reis e os dois labirintos”, por sua vez, a imagem do labirinto é condensada num sopro, na verdade o labirinto luxuoso do rei da Babilônia, e o outro labirinto, o deserto árabe, no qual o rei dos árabes faz o rei da Babilônia morrer de fome e de sede.

A BUSCA DE AVERRÓIS

No conto “a busca de averróis” temos a trama que envolve Averróis no seu trabalho monumental de comentário à obra de Aristóteles, enquanto não dá mais tanta prioridade a seu trabalho do tahafut, temos neste conto o confronto da palavra do Corão como a verdade divina, uma manifestação do próprio Deus, mais do que um simples conjunto de palavras narradas, uma faculdade materializada assim como o é a piedade divina, este Deus que é repetido na memória dos seus fiéis.
O Corão é substância e um dos atributos de Deus, irrevogável e eterno, no que Averróis compara tal faculdade absoluta com a Mãe do Livro para ele que vinha a partir de seu estudo feito da República, o modelo platônico, teologia inacessível para homens árabes tradicionais como era Abulcassim, assim enfim lembrando que a Mãe do Livro neste contexto é o Corão, verbo divino anterior à Criação. E um dos pontos ou eixos do conto é a luta do pesquisador Averróis com a tradução das palavras comédia e tragédia na Poética de Aristóteles, uma vez que no Islã se ignorava completamente o que era o teatro.

O CONTO O ALEPH

No conto que encerra o livro e que lhe dá título, O Aleph, temos um começo breve com a descrição pelo personagem Borges de sua paixão Beatriz Viterbo, e logo em 1929 ela morre, segue-se então o conhecimento que Borges nos dá do poeta medíocre e pedante Carlos Argentino Daneri, Borges que lhe dá assunto e este poeta enfadonho lhe dá o caráter de sua poesia, um arremedo que junta Odisseia com Os Trabalhos e os Dias, segue-se o produto disforme de uma métrica desengonçada e frouxa, como um poeta ao qual lhe afeta uma febre de estro insignificante, com Borges ficando enfadado com a possibilidade de lhe prefaciar o livro, o qual considerava um vasto empreendimento tedioso, sem nada que fosse memorável.
Borges balança entre os delírios de grandeza de Carlos Argentino Daneri, e ao fim o julga um louco quando este poeta lhe diz que há um Aleph que está no porão da sala de jantar, e que o Aleph era o ponto de convergência do mundo, era ali que tudo era contido, os objetos e seres, visto que sua simultaneidade não era a do tempo, mas a do espaço, e Borges duvida, até que vê através do Aleph um mundo inteiro de fatos e cenas, tudo ao mesmo tempo, como um rico poliedro com todas as formas possíveis.
Então tem o lançamento do livro de Carlos Argentino Daneri, livro com o qual este poeta granjeia o Segundo Prêmio Nacional de Literatura, com Borges ao fim nos lembrando que o Aleph é a primeira letra do alfabeto sagrado, com origens na cabala, que é nesta versão En Soph, a ilimitada e pura divindade, que também tem a forma de um homem que aponta para o céu e para a terra, como no conto dos teólogos, no que temos novamente a presença desta ideia clássica e conhecida dos Livros Herméticos. O  Aleph nos aparece aqui como uma mônada universal, convergência dos espaços do mundo, em que a visão humana fica fascinada, como a de Borges ficou, no que fez então seu relato insólito.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/36467/17/contos-reunidos-em-o-aleph-revelam-um-dos-pontos-mais-altos-da-literatura-borgiana










segunda-feira, 6 de novembro de 2017

AUGUSTO DOS ANJOS – EU E OUTRAS POESIAS – PARTE II

“vemos, por fim, um conjunto de críticos apologistas e impressionistas”

PERSPECTIVA CRÍTICA - PARTE II

Dos críticos apologistas temos exemplos como Antônio Torres, que produziu seu artigo sobre Augusto dos Anjos logo depois da morte deste poeta. Nela vemos levantadas algumas das influências do poeta como as de Haeckel e de Spencer, cientistas da época do poeta, e que lhe incutiram as ideias monistas e materialistas. Mas logo a crítica é uma apologia, não uma crítica estética ou reflexiva, e que vem com questões sobre a personalidade do poeta mais do que o significado de seus poemas enquanto tais.  Mais um exemplo da profusão da crítica impressionista sobre o poeta, a qual grassou na primeira geração de críticos de sua obra.
É bom frisar que Antônio Torres leu apenas a edição dos poemas do Eu, ou seja, a primeira edição de 1912, e não a segunda edição de 1920, a qual incluiu as Outras Poesias, esta edição que então recebe o prefácio de Órris Soares, com o livro que agora recebia o título Eu e Outras Poesias. Órris Soares tem este mérito de ter publicado os poemas inéditos de Augusto dos Anjos, pois o material que foi publicado como Outras Poesias certamente era para um segundo livro do poeta, cujo andamento tinha sido cessado com a sua morte.
E o prefácio de Órris Soares tem muita importância, pois seguiu nas diversas edições do livro do poeta e virou uma referência, mesmo que fosse mais um exemplo de apologia e não de crítica literária como tal. Este crítico, mesmo tendo o mérito do prefácio que se torna histórico e uma das referências principais sobre a obra de Augusto dos Anjos, é mais um crítico impressionista e apologista que se funda em aspectos exteriores à obra em si do poeta, na sua heroicização, numa visão romantizada e idealizada de uma suposta singularidade especial capaz de decifrar a natureza essencial da realidade, e mais uma vez nos deparamos com uma crítica que mistura vida e obra.
Na crítica de João Ribeiro, então, vemos um dos extremos a que se chega tal crítica impressionista, numa mistificação da doença do poeta, como definidora da obra, uma visão ingênua que se funda mais no contexto do que na obra em si. E temos também com João Ribeiro uma das críticas mais superficiais feitas sobre a obra de Augusto dos Anjos. 
E temos uma melhor crítica, finalmente, com Agripino Grieco, este que é o destaque positivo desta primeira geração de críticos da obra de Augusto dos Anjos. Um grupo ainda caracterizado pelo impressionismo, com este crítico já mais atento ao léxico da obra do poeta, mesmo que ainda com um caráter apologista em certos momentos.
José Oiticica, por sua vez, como amigo do poeta que foi, destaca sua crise financeira, esta como determinante de sua obra, o que mais uma vez representa uma visão rasa, que ilustra, mas que não ganha caráter teórico ou propriamente crítico. Aqui vemos, por fim, um conjunto de críticos apologistas e impressionistas que se ligam ao entorno do poeta e não à sua obra, uma crítica ainda rasa e ingênua.

POEMAS :

O LUPANAR : O poema abre com a trama do homem lascivo, que se expande em uma grande sede, no que temos : “Ah! Por que monstruosíssimo motivo/Prenderam para sempre, nesta rede,/Dentro do ângulo diedro da parede,/A alma do homem polígamo e lascivo?!/Este lugar, moços do mundo, vede :/É o grande bebedouro coletivo,/Onde os bandalhos, como um gado vivo,/Todas as noites, vêm matar a sede!”. E o poeta logo convida a todos para este grande banquete em que a promiscuidade é a lei e em que se mata a força geradora das coisas, o último óvulo do ventre, no que temos : “Em que é mister que o gênero humano entre,/Quando a promiscuidade aterradora/Matar a última força geradora/E comer o último óvulo do ventre!”. A poesia de Augusto dos Anjos aqui tem a força natural descritiva bem potente e com bom conhecimento científico, como vemos em grande parte de sua obra, que é riquíssima em referências biológicas.

IDEALISMO : O poema tem este caráter rarefeito da presença do amor na poesia de Augusto dos Anjos, no que temos : “Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!/O amor na Humanidade é uma mentira./É. E é por isto que na minha lira/De amores fúteis poucas vezes falo.” (...) “Pois é mister que, para o amor sagrado,/O mundo fique imaterializado” (...) “E haja só amizade verdadeira/Duma caveira para outra caveira,/Do meu sepulcro para o teu sepulcro ?!”. Logo a morte e suas referências, como a caveira e o sepulcro detonam qualquer possível veia romântica que porventura o poeta poderia revelar, doce ilusão.

ÚLTIMO CREDO : A morte é um tipo de última prova de fé, o cemitério, que tem aqui a via para o transcendente, um mistério que, no entanto, por ser exercício de fé e de espírito, busca convergência ou ainda a essência das coisas, no que temos : “Como ama o homem adúltero o adultério/E o ébrio a garrafa tóxica de rum,/Amo o coveiro – este ladrão comum/Que arrasta a gente para o cemitério!/É o transcendentalíssimo mistério!/É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,/É a morte, é esse danado número Um/Que matou Cristo e que matou Tibério!”. E Augusto dos Anjos então antevê a si mesmo como o homem universal do mundo vindouro, uma espécie de teor visionário que deixaria a sua carcaça de homem individual para trás, no que temos : “Creio, perante a evolução imensa,/Que o homem universal de amanhã vença/O homem particular que eu ontem fui!”.

SOLILÓQUIOS DE UM VISIONÁRIO : O mistério se junta aqui ao fenômeno da decomposição, que é bem descrito na metáfora da antropofagia, na fome dos vermes que moram nas terra e no cemitério, no que temos : “Para desvirginar o labirinto/Do velho e metafísico Mistério,/Comi meus olhos crus no cemitério,/Numa antropofagia de faminto!” (...) “Vestido de hidrogênio incandescente,/Vaguei um século, improficuamente,/Pelas monotonias siderais .../Subi talvez às máximas alturas,/Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,/É necessário que inda eu suba mais!”. A alma vai às alturas siderais, cai e deseja subir mais uma vez, e a imagem da decomposição, da fome e da morte, junta-se a um esgar de um espírito imortal, sidéreo e que vai às máximas alturas.

OS DOENTES : Temos aqui uma das mais ricas descrições da tísica feita por um poeta, este poema brilha e nos dá uma sucessão brutal do que é esta doença em forma de poesia, um poeta que faz seus versos definirem com precisão cirúrgica este tipo de inferno de tosse que é a tísica, no que temos : “Dormia embaixo, com a promíscua véstia/No embotamento crasso dos sentidos,/A comunhão dos homens reunidos/Pela camaradagem da moléstia./Feriam-me o nervo óptico e a retina/Aponevroses e tendões de Aquiles,/Restos repugnantíssimos de bílis,/Vômitos impregnados de ptialina./Da degenerescência étnica do Ária/Se escapava, entre estrépitos e estouros,/Reboando pelos séculos vindouros,/O ruído de uma tosse hereditária/Oh! desespero das pessoas tísicas,”. E o teor evolutivo também vira tema, e a boca vem com catarro e sangue, no que temos : “Descender dos macacos catarríneos,/Cair doente e passar a vida inteira/Com a boca junto de uma escarradeira,/Pintando o chão de coágulos sanguíneos!” (...) “Falar somente uma linguagem rouca,/Um português cansado e incompreensível,/Vomitar o pulmão na noite horrível/Em que se deita sangue pela boca!”. A morte, então, encerra o discurso poético, com uma coda fatal, cortante, o imposto que toda vida orgânica paga ao fim é a morte, a tal da impermanência das coisas, e a doença é um dos agentes especiais da indesejada morte, que o poeta bem vê ao fim de seu poema, no que temos : “E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba/A erguer, como um cronômetro gigante,/Marcando a transição emocionante/Do lar materno para a catacumba!” (...) “Porque a morte, resfriando-vos o rosto,/Consoante a minha concepção vesânica,/É a alfândega, onde toda a vida orgânica/Há de pagar um dia o último imposto!”.

VOZES DE UM TÚMULO : A morte do poeta está aqui bem consciente, ele a descreve, com intuito narrativo, num jogo de moléstias e com a presença tétrica do cemitério, no que temos : “Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho/Destes meus olhos apagou! ... Assim/Tântalo, aos reais convivas, num festim,/Serviu as carnes do seu próprio filho!/Por que para este cemitério vim?!/Por quê?! Antes da vida o angusto trilho/Palmilhasse, do que este que palmilho/E que me assombra, porque não tem fim!” (...) “Hoje que apenas sou matéria e entulho/Tenho consciência de que nada sou!”. Por mais alta que seja a sua poesia, o poeta diante da morte sabe que não é nada.

GEMIDOS DE ARTE : O poema vem num clima geral de desilusão, o que deixa o poeta acabrunhado, limitado, dentro de um redemoinho que lhe estrangula com a angústia que vira uma tortura insuportável, os versos fluem numa dorida descrição de sua pena de mágoas : “Esta desilusão que me acabrunha/É mais traidora do que o foi Pilatos! ...” (...) “Em giro e em redemoinho em mim caminham/Ríspidas mágoas estranguladoras,”. E o poeta deseja que um raio de Jeová lhe fulminasse, destruindo até o seu raciocínio, no que temos : “Ah! Por que desgraçada contingência/À híspida aresta sáxea áspera e abrupta/Da rocha brava, numa ininterrupta/Adesão, não prendi minha existência?!/Por que Jeová, maior do que Laplace,/Não fez cair o túmulo de Plínio/Por sobre todo o meu raciocínio/Para que eu nunca mais raciocinasse?!”. E o poema segue em seu desejo de estar em outro lugar, queria o poeta então : “Quisera antes, mordendo glabros talos,/Nabucodonosor ser no Pau d`Arco,/Beber a acre e estagnada água do charco,/Dormir na manjedoura com os cavalos!/Mas a carne é que é humana! A alma é divina.”. E o divino e transcendente lhe é um desejo caríssimo, é seu anelo maior neste poema, no que temos : “Soberano desejo! Soberana/Ambição de construir para o homem uma/Região, onde não cuspa língua alguma/O óleo rançoso da saliva humana!/Uma região sem nódoas e sem lixos,/Subtraída à hediondez de ínfimo casco,”. Enfim, desejo de estar em outro lugar, este desejo comum do sofrimento e da angústia, no que segue : “Outras constelações e outros espaços/Em que, no agudo grau da última crise,/O braço do ladrão se paralise/E a mão da meretriz caia aos pedaços!”.

DEPOIS DA ORGIA : O poema é promíscuo, e que vem como a descrição da orgia, no que temos :“O prazer que na orgia a hetaíra goza/Produz no meu sensorium de bacante/O efeito de uma túnica brilhante” (...) “Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,/O sistema nervoso de um gigante/Para sofrer na minha carne estuante/A dor da força cósmica furiosa./Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia/Que ao comércio dos homens me traz presa,/Livre deste cadeado de peçonha,/Semelhante a um cachorro de atalaia/Às decomposições da Natureza/Ficar latindo minha dor medonha!”. E a presença da morte da imagem da decomposição é o cenário em que a Natureza age, e o poeta late como um cão a sua dor que ele define como medonha.

VENCIDO : O poeta descreve aqui o vencido, que começa lendo tudo, desde o mito mais primitivo, no que temos : “No auge de atordoadora e ávida sanha/Leu tudo, desde o mais prístino mito,” (...) “Acometido de uma febre estranha/Sem o escândalo fônico de um grito,/Mergulhou a cabeça no Infinito,/Arrancou os cabelos na montanha!/Desceu depois à gleba mais bastarda,”. Diante do infinito no qual mergulha, o vencido então esbarra na doença, na sua maldição em que nasceu, em que o poema se encerra, assim : “E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria/O vencido pensava que cuspia/Na célula infeliz de onde nasceu.”.

NOITE DE UM VISIONÁRIO : O poeta descreve aqui uma saga da luta entre o conhecimento e a união monística com o todo contra a sua dissolução numa carne liquefeita, ou ainda a parte corrupta de seu ser orgânico, que é tão potente, que a ideia de alma aqui se torna inútil e até ridícula, no que temos, num panteísmo que é em vão, o poeta e suas alusões desesperadas, no que segue : “Número cento e três. Rua Direita./Eu tinha a sensação de quem se esfola/E inopinadamente o corpo atola/Numa poça de carne liquefeita!” (...) “É a potencialidade que me eleva/Ao grande Deus, e absorve em cada viagem/Minh`alma – este sombrio personagem/Do drama panteístico da treva!/Depois de dezesseis anos de estudo/Generalizações grandes e ousadas/Traziam minhas forças concentradas/Na compreensão monística de tudo./Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme/Me aspergia, banhava minhas tíbias,”. A ação natural aqui é como um ente destrutivo, que lhe esfola a alma, lhe retira as partes, lhe quebra e lhe leva ao hospício, no que temos : “Arimânico gênio destrutivo/Desconjuntava minha autônoma alma” (...) “E eu saí a tremer com a língua grossa/E a volição no cúmulo do exício,/Como quem é levado para o hospício/Aos trambolhões, num canto de carroça!”. E vem então a sucessão dos vermes, os agentes principais da decomposição, soldados da finitude e comedores da morte, no que temos : “Bulia nos obscuros labirintos/Da fértil terra gorda, úmida e fresca,/A ínfima fauna abscôndita e grotesca/Da família bastarda dos helmintos.”. E o poema ganha em grandiosidade na descrição alarmante dos seres corruptíveis, e aqui com seus agentes da morte, que é nada mais que a sucessão dos seres repugnantes, os vermes, e o poema então dá a sua carga dramática quando nos diz diante da finitude orgânica que o motor teleológico da vida para, e a matéria finita então se dissolve, num poema verminoso e mortal, no que temos : “E no estrume fresquíssimo da gleba/Formigavam, com a símplice sarcode,/O vibrião, o ancilóstomo, o colpode/E outros irmãos legítimos da ameba!/E todas essas formas que Deus lança/No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,/Um pedaço de língua disponível/Para a filogenética vingança!/A cidade exalava um podre bafio:/Os anúncios das casas de comércio,/Mais tristes que as elegias de Propércio,/Pareciam talvez meu epitáfio./O motor teleológico da Vida/Parara! Agora, em diástoles de guerra,/Vinha do coração quente da terra/Um rumor de matéria dissolvida.”. O poema então aqui condensa tal ação destruidora da natureza como um destino universal, e no qual o poeta é puxado como que para um abismo : “Dedos denunciadores escreviam/Na lúgubre extensão da rua preta/Todo o destino negro do planeta,/Onde minhas moléculas sofriam./Um necrófilo mau forçava as lousas/E eu – coetâneo do horrendo cataclismo –/Era puxado para aquele abismo/No redemoinho universal das cousas!”.

POEMAS :

O LUPANAR

Ah! Por que monstruosíssimo motivo
Prenderam para sempre, nesta rede,
Dentro do ângulo diedro da parede,
A alma do homem polígamo e lascivo?!

Este lugar, moços do mundo, vede :
É o grande bebedouro coletivo,
Onde os bandalhos, como um gado vivo,
Todas as noites, vêm matar a sede!

É o afrodisíaco leito do hetairismo,
A antecâmara lúbrica do abismo,
Em que é mister que o gênero humano entre,

Quando a promiscuidade aterradora
Matar a última força geradora
E comer o último óvulo do ventre!

IDEALISMO

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor na Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo?!

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
- Alavanca desviada do seu fulcro –

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro ?!

ÚLTIMO CREDO

Como ama o homem adúltero o adultério
E o ébrio a garrafa tóxica de rum,
Amo o coveiro – este ladrão comum
Que arrasta a gente para o cemitério!

É o transcendentalíssimo mistério!
É o nous, é o pneuma, é o ego sum qui sum,
É a morte, é esse danado número Um
Que matou Cristo e que matou Tibério!

Creio, como o filósofo mais crente,
Na generalidade decrescente
Com que a substância cósmica evolui ...

Creio, perante a evolução imensa,
Que o homem universal de amanhã vença
O homem particular que eu ontem fui!

SOLILÓQUIO DE UM VISIONÁRIO

Para desvirginar o labirinto
Do velho e metafísico Mistério,
Comi meus olhos crus no cemitério,
Numa antropofagia de faminto!

A digestão desse manjar funéreo
Tornado sangue transformou-me o instinto
De humanas impressões visuais que eu sinto,
Nas divinas visões do íncola etéreo!

Vestido de hidrogênio incandescente,
Vaguei um século, improficuamente,
Pelas monotonias siderais ...

Subi talvez às máximas alturas,
Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,
É necessário que inda eu suba mais!

OS DOENTES

(obs : aqui temos apenas um trecho do poema que achei interessante)

III
Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.

Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,
Vômitos impregnados de ptialina.

Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e estouros,
Reboando pelos séculos vindouros,
O ruído de uma tosse hereditária.

Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!

Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem!

Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chão de coágulos sanguíneos!

Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!

Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!

Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!

Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!

Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito,
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.

Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta omnívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!

VOZES DE UM TÚMULO

Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho
Destes meus olhos apagou! ... Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!
Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!

No ardor do sonho que o fronema exalta
Construí de orgulho ênea pirâmide alta ...
Hoje, porém, que se desmoronou

A pirâmide real do meu orgulho,
Hoje que apenas sou matéria e entulho
Tenho consciência de que nada sou!

GEMIDOS DE ARTE

I
Esta desilusão que me acabrunha
É mais traidora do que o foi Pilatos! ...
Por causa disto, eu vivo pelos matos,
Magro, roendo a substância córnea da unha.

Tenho estremecimentos indecisos
E sinto, haurindo o tépido ar sereno,
O mesmo assombro que sentiu Parfeno
Quando arrancou os olhos de Dionisos!

Em giro e em redemoinho em mim caminham
Ríspidas mágoas estranguladoras,
Tais quais, nos fortes fulcros, as tesouras
Brônzeas, também giram e redemoinham.

Os pães – filhos legítimos dos trigos –
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra ...
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!

Ah! Por que desgraçada contingência
À híspida aresta sáxea áspera e abrupta
Da rocha brava, numa ininterrupta
Adesão, não prendi minha existência?!

Por que Jeová, maior do que Laplace,
Não fez cair o túmulo de Plínio
Por sobre todo o meu raciocínio
Para que eu nunca mais raciocinasse?!

Pois minha Mãe tão cheia assim daqueles
Carinhos, com que guarda meus sapatos,
Por que me deu consciência dos meus atos
Para eu me arrepender de todos eles?!

Quisera antes, mordendo glabros talos,
Nabucodonosor ser no Pau d`Arco,
Beber a acre e estagnada água do charco,
Dormir na manjedoura com os cavalos!

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser aborto!
Sair de um ventre inchado que se anoja,
Comprar vestidos pretos numa loja
E andar de luto pelo pai que é morto!

E por trezentos e sessenta dias
Trabalhar e comer! Martírios juntos!
Alimentar-se dos irmãos defuntos,
Chupar os ossos das alimarias!

Barulho de mandíbulas e abdomens!
E vem-me com um desprezo por tudo isto
Uma vontade absurda de ser Cristo
Para sacrificar-me pelos homens!

Soberano desejo! Soberana
Ambição de construir para o homem uma
Região, onde não cuspa língua alguma
O óleo rançoso da saliva humana!

Uma região sem nódoas e sem lixos,
Subtraída à hediondez de ínfimo casco,
Onde a forca feroz coma o carrasco
E o olho do estuprador se encha de bichos!

Outras constelações e outros espaços
Em que, no agudo grau da última crise,
O braço do ladrão se paralise
E a mão da meretriz caia aos pedaços!

DEPOIS DA ORGIA

O prazer que na orgia a hetaíra goza
Produz no meu sensorium de bacante
O efeito de uma túnica brilhante
Cobrindo ampla apostema escrofulosa!

Troveja! E anelo ter, sôfrega e ansiosa,
O sistema nervoso de um gigante
Para sofrer na minha carne estuante
A dor da força cósmica furiosa.

Apraz-me, enfim, despindo a última alfaia
Que ao comércio dos homens me traz presa,
Livre deste cadeado de peçonha,

Semelhante a um cachorro de atalaia
Às decomposições da Natureza
Ficar latindo minha dor medonha!

VENCIDO

No auge de atordoadora e ávida sanha
Leu tudo, desde o mais prístino mito,
Por exemplo : o do boi Ápis do Egito
Ao velho Niebelungen da Alemanha.

Acometido de uma febre estranha
Sem o escândalo fônico de um grito,
Mergulhou a cabeça no Infinito,
Arrancou os cabelos na montanha!

Desceu depois à gleba mais bastarda,
Pondo a áurea insígnia heráldica da farda
À vontade do vômito plebeu ...

E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria
O vencido pensava que cuspia
Na célula infeliz de onde nasceu.

NOITE DE UM VISIONÁRIO

Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita!

- “Que esta alucinação tátil não cresça!”
- Dizia; e erguia, oh! céu, alto, por ver-vos
Com a rebeldia acérrima dos nervos
Minha atormentadíssima cabeça.

É a potencialidade que me eleva
Ao grande Deus, e absorve em cada viagem
Minh`alma – este sombrio personagem
Do drama panteístico da treva!

Depois de dezesseis anos de estudo
Generalizações grandes e ousadas
Traziam minhas forças concentradas
Na compreensão monística de tudo.

Mas a aguadilha pútrida o ombro inerme
Me aspergia, banhava minhas tíbias,
E a ela se aliava o ardor das sirtes líbias,
Cortando o melanismo da epiderme.

Arimânico gênio destrutivo
Desconjuntava minha autônoma alma
Esbandalhando essa unidade calma,
Que forma a coerência do ser vivo.

E eu saí a tremer com a língua grossa
E a volição no cúmulo do exício,
Como quem é levado para o hospício
Aos trambolhões, num canto de carroça!

Perante o inexorável céu aceso
Agregações abióticas espúrias,
Como uma cara, recebendo injúrias,
Recebiam os cuspos do desprezo.

A essa hora, nas telúricas reservas,
O reino mineral americano
Dormia, sob os pés do orgulho humano,
E a cimalha minúscula das ervas.

E não haver quem, íntegra, lhe entregue,
Com os ligamentos glóticos precisos,
A liberdade de vingar em risos
A angústia milenária que o persegue!

Bulia nos obscuros labirintos
Da fértil terra gorda, úmida e fresca,
A ínfima fauna abscôndita e grotesca
Da família bastarda dos helmintos.

As vegetalidades subalternas
Que os serenos noturnos orvalhavam,
Pela alta frieza intrínseca, lembravam
Toalhas molhadas sobre as minhas pernas.

E no estrume fresquíssimo da gleba
Formigavam, com a símplice sarcode,
O vibrião, o ancilóstomo, o colpode
E outros irmãos legítimos da ameba!

E todas essas formas que Deus lança
No Cosmos, me pediam, com o ar horrível,
Um pedaço de língua disponível
Para a filogenética vingança!

A cidade exalava um podre bafio:
Os anúncios das casas de comércio,
Mais tristes que as elegias de Propércio,
Pareciam talvez meu epitáfio.

O motor teleológico da Vida
Parara! Agora, em diástoles de guerra,
Vinha do coração quente da terra
Um rumor de matéria dissolvida.

A química feroz do cemitério
Transformava porções de átomos juntos
No óleo malsão que escorre dos defuntos,
Com a abundância de um geyser deletério.

Dedos denunciadores escreviam
Na lúgubre extensão da rua preta
Todo o destino negro do planeta,
Onde minhas moléculas sofriam.

Um necrófilo mau forçava as lousas
E eu – coetâneo do horrendo cataclismo –
Era puxado para aquele abismo
No redemoinho universal das cousas!

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/36436/17/augusto-dos-anjos-perspectiva-critica