“A sua escritura passa pela demolição que é o século XX.”
Samuel Beckett foi
um dos maiores dramaturgos do século XX e também atuou como romancista, além de
ter feito peças radiofônicas, ensaios e produzido material para televisão.
Nascido na Irlanda, foi considerado pelo crítico Martin Esslin como um dos escritores
principais do que veio a ser batizado de “Teatro do Absurdo”.
Junto com James
Joyce, Beckett acabou por tomar o caminho da crítica à tradição irlandesa de
escrita, enfrentando o caráter retrógrado e obscurantista da literatura
irlandesa de inspiração nacional, o cosmopolitismo seria seu caminho natural,
chegando a escrever em francês. A crítica de Joyce, por sua vez, se dirigia,
sobretudo, ao Teatro Irlandês fundado por William Buttler Yeats, o que ele
considerava como “a propriedade da ralé da raça mais atrasada da Europa.”.
Segundo Joyce, este tipo de teatro renegara a vanguarda europeia, ruptura que
seria a vocação seminal de Beckett que abalaria o teatro a partir de Esperando
Godot.
Joyce continua sua
crítica ao nacionalismo irlandês, chegando a denunciar, num artigo em Trieste,
na Itália, com inconformismo, o clima de mediocridade geral na Irlanda, e seu
meio castrador do artista: “A alma do país está enfraquecida por séculos de
lutas inúteis e de tratados rompidos, a iniciativa individual paralisada pela
influência e as admonições da Igreja, enquanto o corpo é acorrentado por
policiais (...) Uma pessoa que se respeite não quer permanecer na Irlanda, mas
foge para longe, como de um país que foi visitado por um Jeová encolerizado.” E
nesta crítica, Beckett se junta a Joyce.
Uma das críticas de
Beckett, defensor da cultura e da liberdade intelectual, se dirige então, em
tom irônico, aos poetas irlandeses de sua época, em “Recent Irish Poetry”. Tal
texto coloca em perspectiva negativa os novos discípulos de Yeats, tendo uma
posição contra a “bardolatria”, como bem batizou Shaw toda a tradição nacional
nascida com Yeats, poeta este, à época, já setuagenário e considerado herói e
glória nacional, sendo até agraciado com o Prêmio Nobel.
A grande influência
de James Joyce sobre Samuel Beckett se deu mais no início da carreira deste,
pois isso apareceu numa produção de estilo barroco e repleta de erudição, como
é o caso, por exemplo, de More Pricks than Kicks, coletânea de 1934, só tendo a
ruptura com Joyce num trabalho, paradoxalmente, em homenagem ao mesmo, que é um
acróstico em uma dezena de versos, escrito em 1932, o poema “Home Olga”, por
ocasião do “Bloomsday” (16 de julho), como uma homenagem, também, ao romance
Ulisses de Joyce, em que proliferam a escatologia, marca de um novo Beckett
independente e irreverente.
Nos seus primeiros
tempos, em Paris, Beckett sente-se dividido entre a imitação de Joyce e uma
vontade, ainda exangue, de se libertar da forte marca joyciana. Essa
insatisfação, somada a problemas familiares, levam-no ao abuso do álcool, a
doenças e a fortes crises depressivas, das quais só sairia bem depois.
Tratava-se de um exilado, de um excluído. De formação protestante, aluno do
Trinity College, instituição de linha protestante, numa Irlanda católica,
intelectual no seio de uma família da burguesia mercantil, é repelido nos meios
artísticos e intelectuais de Dublin, que eram provincianos, estreitos e
nacionalistas, o que ele repudiava, saudoso da liberdade parisiense. Se encontrava,
então, perdido, à deriva, sem seguir a linha de Yeats, que recusava, e tentando
sair de Joyce, numa busca de inovação que ainda não tinha descoberto.
Os anos de
1934-1935, Beckett passa em Londres, tentando evadir-se do ambiente castrador
da Irlanda, aqui incluindo, mais uma vez, a família, principalmente a absorção
materna. Beckett, no entanto, não adere à estética inglesa, e nem se identifica
com Shaw, ainda que este fosse um anti-Yeats. Será só em Paris, então, que
Beckett passará a experimentar uma certa serenidade.
E, nisto, encontra o
início de seu caminho verdadeiro, com suas críticas sobre a pintura dos
holandeses van Velde. É neste contexto que Beckett encontra ou descobre a sua
escritura. Sendo os anos 1940 bem representativos de um período fundamental de
sua criação. E, na diferença que,
finalmente, Beckett consegue se autogerar, em relação à escrita joyciana, Joyce
era um magnífico manipulador de matéria, talvez o maior de todos, fazendo com
que as palavras rendessem o máximo, faz Beckett sinalizar para si: “Joyce tende
à onisciência e a onipotência enquanto artista, eu trabalho com impotência, com
ignorância.”
E Beckett afirma sua
nova tese: “Não creio que a impotência tenha sido explorada no passado. Parece
que há uma espécie de axioma estético que diz que a expressão é uma realização
(êxito), deve ser um êxito. Para mim, o que me esforço por explorar é toda essa
gama do ser que foi sempre negligenciada pelos artistas como alguma coisa de
inutilizável ou por definição incompatível com a arte. Creio que hoje qualquer
pessoa que preste a mais leve atenção à sua própria experiência se dá conta de
que é a experiência de alguém que não sabe, de alguém que não pode.”
Embora, segundo
Beckett, ele esteja em um caminho novo e oposto em relação a Joyce, em que se
contrastam a onipotência e onisciência de Joyce com a depauperação progressiva
da arte de Beckett, numa prática da não-palavra ou da palavra oca e porosa,
enquanto James Joyce se caracterizava pela “apoteose das palavras”, ambos
estão, contudo, vinculados a um mesmo projeto de modernidade.
Samuel Beckett, por
sua vez, que possui uma vida longa, marcada por uma inquietude, era brilhante,
contestador, dando como resultado uma obra revolucionária, múltipla, complexa,
e que tem, como diz Evelyne Grossman, “o tecido progressivo da poesia, da prosa
e do teatro”, é, também, para Alain Badiou, “uma lição de medida, de exatidão e
de coragem”, e que é, ainda, para Pascale Casanova, um autor que inventou uma
nova forma literária fundada na “retirada progressiva do sentido das palavras”.
Tudo isso, este
depauperamento da expressão, não perde em nada, contudo, no reconhecimento de
uma escritura possuída de beleza, uma expressão plástica e sonoramente bela. No
conjunto da obra, podemos falar de dois Becketts, o primeiro, no início de
carreira, como um escritor que prima pela exuberância barroca, pela abundância
verbal e comicidade: More Pricks than Kicks, os romances Murphy e Watt, ambos
em inglês, e os três romances que constituem a famosa Trilogia, que são, na
ordem, Molloy, Malone Morre e O Inominável, em francês.
O segundo Beckett,
por sua vez, pode ser exemplificado nos textos-quadros, isto já no fim de sua
carreira literária e período de vida, e que se caracterizam pela escritura
apertada, de acentuado tom depressivo, obcecado com o minimalismo, já numa
depuração que explora os limites do nada. No todo, Beckett pode ser colocado
como um escritor e artista que passa do romance ao teatro, do texto à
encenação, da música e da pintura ao texto, cultivando romances, novelas, peças
de teatro, pantomimas, cinema (roteiro de um filme), peças radiofônicas e
televisivas, poesias, ensaios sobre pintura, textos em prosa, além de traduções
excelentes, e com uma vida nômade, que passa da Irlanda à Inglaterra, da
Irlanda à Itália e à Alemanha, fixando residência na França, em Paris, pouco
antes da Segunda Grande Guerra.
É justamente quando
Beckett adota o francês como a língua com a qual compõe várias obras, é que se
sobressai Esperando Godot, de 1948, peça nova que empreende uma ruptura
radical, colocando o público diante de situações dramáticas insólitas, numa
linguagem surpreendente. Pois, enquanto esperam Godot, que não vem, suas
personagens, tais palhaços, atuam com falas acompanhadas de números de circo e
de music hall, com gags como a do sapato e a do chapéu, e com o cenário
empobrecido falando da miséria humana, do absurdo da condição humana, de um
Homem moderno do pós-guerra que vive num mundo sem sentido, em que as
narrativas de dogmas desmoronaram. “Tragédia farsesca”, “Farsa metafísica”, é
Godot, portanto, um marco na história do teatro.
Peça inovadora em
todos os sentidos, Esperando Godot não poderia deixar de chocar críticos, além
do público parisiense, habituados a outro tipo de teatro. Paris ainda assistia
a boas peças tradicionais, várias delas compostas por autores de renome, tal
como Giradoux, Lenormand, Saalcrou, Anouilh, Cocteau, Camus e Sartre. Então,
Beckett ainda enfrentava um cenário artístico e teatral com uma psicologia algo
ultrapassada, em um realismo bastante convencional. Tudo seria objeto de uma
reação de vanguarda que começa na literatura, na pintura e na música, e que só
atingiria o teatro depois, já que os esforços de Jarry, Apollinaire, Roussel e
Vitrac, autores que buscaram sacudir o conformismo burguês, não havia sido
suficientes, tendo em Beckett um sopro novo para derrubar limitações da
tradição teatral.
Na década de 1950,
por sua vez, Beckett continua seu empenho no sentido de inovar na literatura e
no teatro. Compõe, então, os Textos para Nada, marcando seu valor nulo, com
não-textos, pela ausência de fabulação, e, contudo, aparece também uma peça
ambiciosa chamada Fim de Jogo, repleta de alusões, sobretudo, bíblicas e
literárias, e ainda as hoje conhecidas pantomimas, parábolas da vida, Ato sem
Palavras I e II, compõe, também, em inglês, a melancólica A Última Gravação, e
já no rádio, aparece a peça Tudo o que Cai, para a BBC de Londres, e que é um
êxito.
E será no rádio que
Beckett aprofundará suas experiências com a linguagem sonora, numa nova arte de
palavras, sons e ruídos. Admirador da pintura, e também da música, é excelente
pianista, tem ouvido sensível, e então adere ao rádio com prazer, compondo
Brasas ou Cinzas, e produzindo já na década seguinte, a mais rica das criações
beckettianas, as peças radiofônicas Palavras e Música, e Cascando. E em francês
ele redige seus Fragmentos de Teatro I e II, seus Esboços Radiofônicos, e o
enigmático romance Como É, além dos breves e curtos Imaginação Morta Imagine,
Bing, Sem, e Bastante, além do estranho O Despovoador, num tom neutro
desafiador.
E no teatro continua seu percurso com Dias
Felizes e as peças Comédia e Vaivém. Aqui temos o retrato de um Beckett
múltiplo, que compõe textos em inglês e francês, criando teatro, ao mesmo tempo
no rádio, e em seguida também na televisão, transgredindo a inviolabilidade das
fronteiras, linguística ou artística, juntando música e palavras, ou suprimindo
ambas para uma linguagem puramente visual.
No teatro, avança
mais, também, nas últimas décadas de vida, compondo as peças Solo, as curtas
Cadeira de Balanço e Improviso de Ohio, brilhando, nesta etapa final de sua
vida, na televisão, com a obra Quad, obra visual e sem palavras, e a belíssima
Nacht und Träume, além de Que Onde, obra teatral que acabou na televisão,
reduzindo cada vez mais as suas criações, com a intenção de alcançar cada vez
mais a concisão e a precisão, num trabalho de redução radical para o
aniquilamento e a exaustão.
Na sua longa
carreira, num esforço hercúleo de se renovar, inovar, tanto nos gêneros
artísticos como nas técnicas, temos certas constâncias temáticas, entretanto,
que vão caracterizar seu trabalho como um todo, que são a solidão, o
sofrimento, o fracasso, a angústia, e culminando no absurdo da condição humana
e no tema da morte.
O grande tema de
Beckett é o homem só, com dificuldade de comunicação, sofredor, num universo
hostil, inóspito, incapacitado de achar um sentido para a vida, rendido ao
absurdo da existência. No teatro, este absurdo aparecerá não mais em
personagens extraordinários, como temos nas peças de Sartre ou Anouilh, mas em
pessoas incógnitas, deixando de transmiti-lo somente no diálogo, como nestes
autores citados, e investindo numa materialização cênica de lugares desérticos,
frugais, cortados do mundo exterior, cenários que se colocarão em relevo pela
luz, uso de cenários paupérrimos e jogo de luz que irá ser método não só de Beckett,
como de todos os criadores do Teatro do Absurdo.
Sem família, sem
vínculos com a sociedade, os seres de Beckett procuram vencer o isolamento em
que vivem apegando-se à palavra, estes falam o tempo todo, para preencherem o
vazio da existência, são inesgotáveis, como os vagabundos de Esperando Godot,
com uma conversa que se choca com a falta de comunicação, fazendo ressaltar a
alteridade inalienável de todo ser, já que cada um está acorrentado a seu
próprio ideal, a suas ideias, a idiossincrasias estanques.
O teatro de Beckett
expressa a palavra gasta, ultrapassada, incapaz de quebrar mundos subjetivos
incomunicáveis, a falta de eficiência da palavra é uma das teses caras a
Beckett, seu empobrecimento contínuo de expressão é exatamente para confirmar a
ideia de que toda linguagem tende ao nada. Beckett, no seu ensaio juvenil sobre
Proust, já insistia nessa questão da incomunicabilidade humana, dizendo: “a
tentação de comunicar-se, quando nenhuma comunicação é possível, não representa
senão uma simiesca vulgaridade, uma farsa horrível, semelhante à doce loucura
que os faz conversar com os móveis.”
O homem que arrasta
a vida, sem apoio de Deus, torturado pela solidão moral, além da física, pela
angústia, corroído pelo tempo implacável que o leva, sem descanso, caminhando
para a morte, o homem para quem resta apenas uma existência desprovida de
sentido e de esperança. Ausência de valores nos quais se fiar, ausência de
Absoluto. Resultado: o pessimismo, que é o reflexo mais persistente deste homem
que foi o do século XX beckettiano, aniquilado pelos anos de guerra e pela
ciência nova que destruíram a fé em sistemas racionais, filosóficos ou
políticos.
Ausência de fé e de
esperança. É, também, o fim da época dos Malraux, Sartres e Camus, confiantes
na ação, o fim de seus anos 1940, com termos como autenticidade e engajamento
exangues no pós-guerra, com os anos 1950, de Beckett também, anunciando
solidão, sofrimento e o absurdo da condição humana neste desmoronamento do que
um dia foi ideologia ou verdade. Absurdo que em Beckett se torna metafísico,
não só de ideias, mas da camada profunda do homem que o vincula (ou
desvincula?) a sua situação no universo, mais do que numa simples especulação
sobre a natureza humana.
A impotência ou a
impossibilidade de representação da realidade é uma característica beckettiana,
culminando num ato artístico que mostra a tarefa impossível de “dizer o real”.
Beckett representa ou mostra a falta de uma verdadeira representação do real,
toda linguagem fracassa nesta tentativa, talvez seja até uma anti-filosofia o
que propõe Beckett, pois não há maior enfado, dependendo do ponto de vista, do
que um sistema racional abarcante de todo o fenômeno humano e natural que a
Filosofia desde milênios tentou realizar, o que não a denigre de todo, pois não
estaríamos aqui sem estes pensadores, mas o que Beckett denuncia ou mostra é o
limite mais que demasiadamente humano destes sonhos.
Portanto, se Beckett
persegue o fracasso, não é por um temperamento negativista, mas por uma busca
de tensão da qual resulta um ato expressivo, tanto na literatura, como na
pintura de seus amigos van Velde, e isto no teatro ganha ambiente propício, é
no teatro que Beckett faz a sua grande realização, e que é, contudo, um ato de
demolição para expressar a falta ou ausência de tudo que é existência. A sua
escritura passa pela demolição que é o século XX.
A consciência do
fracasso da representação desvia o interesse dirigido ao sentido das coisas e o
coloca na linguagem, com estruturas, jogos formais, musicalidade dos vocábulos,
e até ritmo das frases. E o romance vai significar para Beckett, então, a
grande inovação de fazer com que os meios literários, linguísticos, sintáticos,
metafóricos se tornem o motor e, também, o fim da escritura.
Segundo críticos e
estudiosos, o verdadeiro Beckett surge quando este desiste de querer decifrar o
mundo, de penetrar seu mistério, de atribuir-lhe um sentido, o que acontecia
com os protagonistas de suas primeiras criações, como em Watt. Ao escritor cabe
representar o mundo caótico. Beckett substitui a ordem pela desordem, a sua
desarticulação da linguagem passa pelo fim de substituir a tentação usual da
linguagem que atuava como a condição do dizer e a condição de toda ordem
inteligível.
E, no romance, ele
realiza um verdadeiro ataque para desfazer a crença na literatura, e desmontar
a aceitação ingênua do leitor. Beckett faz literatura com a demolição dos
fundamentos clássicos da mesma. Beckett, em certos trabalhos, vai
progressivamente abolindo quase totalmente a pontuação, o cenário, a
temporalidade da narrativa e a própria narrativa, e no fim elimina até a
presença dos personagens. Em Como É, por exemplo, tudo se trata de uma
constatação neutra e objetiva, sem emoções, sem tomada de posição em face do
que é descrito, tal como ocorre nos textos curtos da década de 1960, não há
defesas nem acusações quanto às vítimas e carrascos. Nenhum valor é invocado
para julgamento, nenhuma consideração moral ou afetiva. O narrador passa alheio
ao narrado. O cenário da narrativa se torna a linguagem, e não mais a descrição
ambiente, situacional ou psicológica, o que não o destitui de conteúdo, mas o
sofistica.
Numa longa
trajetória, com textos variados, os romances, novelas, textos curtos e médios,
de início cômicos e depois sérios, depois até sombrios, com narradores de
diversos tipos, com técnicas diversas, com os textos barrocos e exuberantes do
início, e depois se despojando sistematicamente, na adoção da estética do
pouco, e numa linguagem da expressão fracassada, tartamudeante, com textos, de
início, que tinham personagens excêntricas, que viviam na periferia do vasto
mundo, ainda com nomes e vínculos sociais, e depois, com personagens solitários,
que se entregam à contemplação, à descrição de suas visões, perdendo a
identidade, e sem vínculos de qualquer tipo, estando estes agora, excluídos do
mundo, caminhando para a imobilidade, ou quase isto. É a mestria de Beckett a
serviço de uma organização cada vez mais neutra e matemática, tendo agora seus
textos como equações estilísticas, vinculando a arte à matemática, e
desenvolvendo “a arte combinatória”, que culmina com o extraordinário texto
Rumo ao Pior, hermético para não-iniciados ou apressados, no qual chega a
teorizar e praticar o pouco, o pior, clímax da estética do fracasso.
A atitude
revolucionária dos dramaturgos da década de 1950 não foi de todo pioneira. Já
temos ecos disso em Valéry, que, dentre outros, assinalou a impossibilidade da
palavra no que diz respeito à captação da realidade, como também seu aspecto
despótico, isto é, a linguagem, por ser algo que herdamos dos outros, impõe-nos
seu pensamento.
Valéry e muitos outros contribuíram, sem que
houvessem previsto, para uma nova filosofia da linguagem, sendo que Antonin
Artaud, verdadeiro metafísico do teatro, é o primeiro a dirigir críticas à
linguagem, ao pensar em termos de teatro, arte da representação e não da
palavra, e que passa a pregar a supremacia do espetáculo. Ficava então a
palavra relegada a um plano secundário, uma vez que o gesto e o signo podiam e
deviam expressar melhor a linguagem teatral. E é assim que dramaturgos como
Ionesco ou Beckett começam a inventar elementos
que pudessem exprimir ideias, não dizendo com palavras, mas fazendo sentir tais
ideias, ou, como afirma Ionesco, nos caminhos de Artaud: “Tudo é linguagem no
teatro: as palavras, os gestos, os objetos, a própria ação, porque tudo serve
para exprimir, para significar.”
A preocupação
beckettiana pelos sons, pelos seus matizes, o leva a ensaios exaustivos e
detalhistas nas suas peças, indicando sutilezas vocais até tudo ficar em
equilíbrio. Tal preciosismo nos ensaios resultará numa peça que, embora tenha o
texto despojado, com extrema economia de meios, tenha, contudo, uma acentuada
riqueza semântica, na qual até o silêncio pode falar tanto ou mais que as
palavras associadas aos gestos, e tal métrica do som poderia até mesmo soar ou
alcançar a musicalidade de um alexandrino raciniano. Beckett, em seus ensaios,
sempre teve uma preocupação quanto à dicção, ao tom, ao ritmo, tudo o que dizia
respeito à parte sonora de suas peças.
Beckett passa do
romance ao teatro, em meio a textos em prosa e abrindo-se a novos meios de
comunicação artística, como o rádio e a televisão, lugares em que cria obras
originalíssimas, sob todos os aspectos. No palco compõe peças memoráveis, que
marcam época, e na tela apresenta belíssimos poemas puramente visuais e outros
mistos, com a feliz associação imagem-música. O Beckett dramaturgo que se vale
da pintura e da música, e que, com bastante economia, já na sua segunda fase,
mantém uma expressão elegante, refinada.
Beckett é um esteta
que se esforça brutalmente desde seus primeiros passos na arte cênica, para
renovar-se e inovar. Lança mão de técnicas circenses em Esperando Godot,
inovando depois com uma equilibrada associação visual-verbal, já também
presente em Godot, e pela introdução de novos elementos que rompem cada vez
mais com a tradição. Aparecem cenários cada vez mais despojados e reduzidos,
iluminação, cada vez mais elaborada, personagens se tornando cada vez mais
estranhos, à medida que há redução ou desmembramento dos mesmos, falas e
discursos tendendo ao monocórdio, e os sons que são profundamente estudados
pelo dramaturgo. Tudo é dosado, medido e calculado por uma cabeça de rigor
matemático, não perdendo em nada da sensibilidade, mas numa expressão sutil e
ricamente semântica.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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