“a força dos Angels é o grupo, e neste ponto eles são
imbatíveis”
“Hell`s Angels” foi
o primeiro livro publicado pelo jornalista gonzo Hunter S. Thompson, e
diferente de algumas obras subsequentes, este relato não é romanceado, se trata
de um documento de jornalismo investigativo e de reportagem 100% real, o que
culminou com este lançamento de 1967, no mesmo ano do Verão do Amor, resultado
de seu convívio temporário com o grupo de motociclistas Hell`s Angels, sendo o
livro um clássico norte-americano, um retrato in loco da vida de foras da lei que inaugura o jornalismo gonzo.
Califórnia, fim de
semana do Dia do Trabalho. Bem cedo, motoqueiros fora da lei usando correntes,
viseiras e calças Levi`s ensebadas saem em número cada vez maior vindos de São
Francisco, Hollywood, Berdoo e East Oakland, seguindo rumo à península de
Monterey, ao norte do Big Sur. Os Hell`s Angels correm e fazem barulho na
estrada de manhã cedo “loucos para entrar em ação, cabelos compridos ao vento,
barbas e bandanas balançando, brincos, sovacos, chicotes de corrente, suásticas
e Harley-Davidsons depenadas refletindo o brilho cromado enquanto o trânsito da
101 dá passagem, nervoso, à formação de motos que lembra o estrondo de um
trovão indecente ...” (Hunter S.Thompson)
Os Hell`s Angels
eram a elite barra pesada e fora da lei dos motociclistas da Califórnia, em
breve se multiplicariam pelos Estados Unidos pelo alarde sensacionalista da
imprensa. No caminho para Monterey, vinham de São Francisco, numa formação separada,
os Gypsy Jokers, que era o clube fora da lei número dois da Califórnia, loucos
por publicidade. E, com apenas uma divisão, os Jokers conseguiam ser superiores
a grupos como os Presidents, Road Rats, Nightriders, e Question Maria, também
da Bay Area, Gomorra, e o caos insano de Los Angeles, que era dos Satan`s
Slaves, número três na hierarquia dos motociclistas.
Os Satan`s podiam
abusar da impunidade com outros clubes do sul: os Coffin Cheaters, Iron
Horsemen, Galloping Gooses, Comancheros, Stray Satans e uma laia de sem-teto
que nem os fora da lei aceitavam. “A Jornada do Dia do Trabalho é o evento mais
importante do calendário dos Hell`s Angels. É o encontro anual de todo o clã
dos fora da lei, um porre pesado de três dias que quase sempre acaba em orgias
e em mais uma incomodação para os caretas.” (Hunter S. Thompson)
O emblema dos Hell`s
Angels, por sua vez, é denominado ‘estandarte’, e consiste em remendos bordados
na forma de um crânio alado com um capacete de motociclista. Logo abaixo das
asas do emblema estão as letras “MC”. Acima há uma faixa com as palavras
“Hell`s Angels”. Abaixo do emblema, há um outro remendo com o nome da divisão
local, que geralmente é a abreviatura da cidade ou localidade.
Os Hell`s Angels
parecem ter preferência por motocicletas americanas grandes e resistentes.
(Harley-Davidsons). Em qualquer encontro dos Hell`s Angels quem manda é Ralph
“Sonny” Barger, o Líder Supremo, de East Oakland. Os Angels de Oakland tinham
que aparecer com tudo na Jornada do Dia do Trabalho. Qualquer coisa menor que
isso iria devolver a liderança espiritual para o sul da Califórnia, para a
divisão de San Bernardino (ou Berdoo), que foram os fundadores, os que começaram
tudo em 1950, e deram as cartas durante quinze anos. Mas a crescente pressão da
polícia do sul estava fazendo com que muitos Angels procurassem refúgio na Bay
Area.
Em 1965, Oakland estava prestes a se tornar a
capital do mundo dos Hell`s Angels. Por conta de um suposto estupro, “ao seguir
para Monterey naquela manhã, essa gangue de criminosos fantasiados estava
prestes a estourar, como diz o pessoal do showbiz, e seu sucesso seria o
resultado da curiosa obsessão por estupros que o jornalismo norte-americano
traz sobre o ombro” (Hunter S. Thompson). “Quando eles se reuniram naquele
sábado no Nick`s ninguém sabia que os Angels estavam prestes a se tornar, por
meio do estupro, um fenômeno publicitário na mesma escala dos Beatles ou de Bob
Dylan.” (Idem)
Dizem por aí que os
Hell`s Angels têm ideias nada convencionais sobre diversão e relaxamento, com
formas animalescas de entretenimento. Diante dos rumores de estupro pela
imprensa, “o procurador-geral Thomas C. Lynch, então novo no cargo, agiu
rapidamente e levantou uma investigação medíocre ... o relatório era
fantasioso, interessante, altamente tendencioso e constantemente alarmista.
Exatamente o tipo de material que rende uma boa matéria sensacionalista para a
imprensa.” (Hunter S. Thompson) “A maioria dos editores da Califórnia deu à
história papel de destaque por um dia ou pouco mais, depois esqueceu o assunto
... Os Angels pareciam destinados à obscuridade mais uma vez, mas a maré virou
graças a um correspondente do New York
Times em Los Angeles, que produziu um comentário extenso e tempestuoso
sobre o relatório Lynch ... A revista Time
veio em seguida com um gancho de esquerda intitulado ‘Os Mais Selvagens’. A Newsweek deu um cruzado de direita,
intitulado ‘Os Selvagens’. Ou seja, a mídia nacional tinha um chamariz
garantido nas mãos. Era sexo, violência, crime, loucura e depravação, tudo num
único pacote.” (Idem)
O artigo da Time, por exemplo, prosseguia num
lamento exaltado e confuso. “Não havia espaço para esse tipo de coisa na Grande
Sociedade, e a Time foi enfática ao
dizer que isso estava prestes a chegar ao fim. Os subalternos das autoridades
estabelecidas, de prontidão, iam dar uma lição nesses trogloditas.” (Hunter S.
Thompson) E esses tais relatórios policiais tendem a dramatizar os Angels de
forma exagerada. Havia muita disparidade na ênfase e no contexto, não era
autêntico o fator manchete, em geral, na sua relação com os Angels. “Se a ‘Saga
dos Hell`s Angels’ podia comprovar alguma coisa, era o poder impressionante da
imprensa dominante de Nova York. Os Hell`s Angels como existem hoje foram
praticamente criados pela Time, pela Newsweek e pelo New York Times.” (Idem) Tudo produto de um jornalismo negligente e
emocionalmente tendencioso, uma orgia de publicidade.
“Antes do estupro de
Monterey, eles eram desordeiros medíocres conhecidos apenas pela polícia da
Califórnia e por alguns milhares de fanáticos por motos ... Depois, como
resultado do incidente de Monterey, eles estavam na primeira página de qualquer
publicação diária da Califórnia” (Hunter S. Thompson). “Num dia eles eram uma
gangue de vagabundos, batalhando por um dólar suado ... e 24 horas depois eles
estavam lidando com repórteres, fotógrafos, escritores free-lance e todo tipo
de oportunista do showbiz interessado em dinheiro. Na metade de 1965, eles
estavam firmemente estabelecidos como os maiores bichos-papões dos Estados
Unidos.” (Idem) Os Hell`s Angels chegaram, além da imprensa, a serem procurados
por místicos e poetas, apoiados por estudantes rebeldes e convidados para
festas dadas por liberais e intelectuais. A coisa toda era estranha e teve como
efeito em alguns Angels, que ainda usavam o estandarte, um complexo de
prima-dona, exigindo contribuições em dinheiro em troca de fotos e entrevistas.
“Eles eram autênticas celebridades, não restava nenhum mundo a ser conquistado.
Sua única queixa era que não estavam enriquecendo” (Ibidem). “Esses filhos da
puta estão usando a gente e fazendo cena” (disse Barger ao repórter do Saturday Evening Post).
“Nem todos os fora da lei estavam felizes
por serem celebridades. Os Angels de São Francisco tinham ficado seriamente
marcados depois da série do Chronicle
e viam os repórteres como indicadores certos de desastres” (Hunter S.
Thomspon). E a publicidade também tinha
um efeito negativo na situação dos Angels em relação a empregos. “No final de
1964, talvez dois terços dos fora da lei estavam trabalhando, mas um ano depois
esse número tinha caído para cerca de um terço” (Idem). Os Angels são
estivadores, auxiliares de armazém, motoristas de caminhão, mecânicos,
balconistas e operários eventuais em qualquer emprego que pague rápido e não
exija nenhuma fidelidade. Talvez um entre dez tenha um emprego fixo ou uma
renda decente. A maioria dos Angels trabalha de forma esporádica no tipo de
emprego que logo será dominado pelas máquinas. A maioria deles não tem
experiência nem instrução, nenhuma referência social ou econômica além de uma
extensa ficha na polícia e um excelente conhecimento sobre motocicletas.
Falando das origens dos Hell`s Angels, um
acontecimento é significativo, já com a gangue existente nos anos 50, que é o
filme com Marlon Brando intitulado “O selvagem” de 1954. Os Angels da época se
enxergaram no filme, todos eles eram o Marlon Brando. “Muitos dos Angels são
diplomados em outros clubes de desordeiros ... alguns dos quais, como o Booze
Fighters, eram tão numerosos e temíveis na sua época quanto os Angels são hoje.
Foram os Booze Fighters, e não os Hell`s Angels, que começaram o tumulto de
Hollister, que inspirou o roteiro de ‘O selvagem’. Isso foi em 1947” (Hunter S.
Thompson). Este incidente de Hollister que, dentre outras coisas, incluiu
garrafas de cerveja vazias e quebradas e um racha na rua principal, resultou em
manchetes suficientes para chamar a atenção de um produtor desconhecido chamado
Stanley Kramer e de um jovem ator chamado Brando. “A verdade é que ‘O selvagem’,
apesar do tratamento reconhecidamente ficcional, era uma obra inspirada de
jornalismo cinematográfico” (Idem). Este filme forneceu aos fora da lei uma
imagem duradoura e romântica deles mesmos. E o conceito de “motoqueiro fora da
lei” era tão norte-americano quanto o Jazz. E nos anos 60, os Hell`s Angels
estavam assumindo um caráter mítico, como heróis populares, figuras de comportamento
que a maioria dos jovens poderia fantasiar.
Por seu lado, estes fora da lei seguem à
risca a Pena de Talião, o olho por olho, pois a regra prática era simples: em
qualquer discussão, um Angel está sempre certo. Discordar de um Hell`s Angel é
estar errado, e persistir no erro é uma provocação explícita. Nesse meio, o
espírito esportivo é coisa de velhos liberais ou jovens idiotas. Um dos Angels
explicou a lógica da gangue: “O nosso lema, cara, é ‘Todos pra Cima de Um e Um
pra Cima de Todos’. Se você se meter com um Angel, você vai ter 25 deles no seu
pescoço. Quer dizer, eles vão te quebrar, baby, e pra valer.” Os fora da lei
levam o conceito de ‘Todos pra Cima de Um’ tão a sério que ele está registrado
no estatuto como Regimento Interno Número 10: “Quando um Angel dá um soco em um
não Angel, todos os outros Angels têm que participar.” “A hierarquia dos fora
da lei é sempre instável, mas o espírito não é nada diferente do que era nos
anos 50, quando foi formada a primeira divisão dos Hell`s Angels, à sombra
imponente dos Booze Fighters. A definição original permanece a mesma : um
bandido perigoso numa moto grande e veloz. E a Califórnia os vem produzindo há
anos. Muitos são independentes, impossíveis de se distinguir de um Hell`s
Angels a não ser pela inscrição nas costas – ‘Sem Clube’ ou ‘Lobo Solitário’,
ou, às vezes, apenas ‘Foda-se’” (Hunter S. Thompson).
De acordo com a indústria de motocicletas,
havia cerca de 1.500.000 motocicletas registradas nos Estados Unidos em 1965.
De acordo com a revista Cycle World e
com o Los Angeles Times, “o
crescimento acelerado do mercado de motocicletas está concentrado no setor de
peso leve, que representa 90% do total.” O que a indústria chama de peso leve é
uma coisa muito diferente de uma Harley-Davidson, ou Harley 74, e a maioria das
motos pequenas, segundo a Cycle World,
é usada para o lazer, no transporte escolar e por esportistas nas trilhas e nos
passeios no deserto. E a Harley-Davidson, apesar do conceito de administração e
tecnologia da Idade da Pedra, ainda é a única fabricante de motocicletas
norte-americana.
“A história da Harley-Davidson e do mercado
doméstico de motocicletas é um dos capítulos mais tristes da história da livre
iniciativa norte-americana. ... Durante os anos 50, enquanto a H-D estava
consolidando seu monopólio, a venda de motos dobrou e depois triplicou. A
Harley tinha uma mina de ouro nas mãos até 1962-1963, quando começou o ataque
das importações. Em 1964, os registros haviam saltado para quase um milhão, e
as Hondas leves vendiam na mesma velocidade com que os japoneses as traziam do
outro lado do oceano. Os executivos da H-D ainda estavam refletindo sobre a
concorrência oriental quando foram atingidos do outro lado pela Birmingham
Small Arms Ltda., da Inglaterra. A BSA (que também fabrica Triumphs) decidiu
desafiar a Harley no seu próprio quintal e na sua própria classe, apesar da
desvantagem do aumento dos preços provocado por uma barreira protecionista
gigantesca. Em 1965, quando os números já haviam aumentado 50% em relação ao
ano anterior, o monopólio da H-D foi atacado de forma violenta em duas frentes.
Os únicos compradores com os quais podiam contar eram policiais e foras da lei,
enquanto os japoneses tomavam conta do filão dos preços baixos e a BSA
infernizava sua vida nas pistas de corrida. Em 1966, com a continuação do
crescimento do mercado das motos, a Harley tinha visto sua participação cair
para menos de 10% do mercado doméstico e estava lutando até para manter isso” (Hunter S. Thompson).
Contudo, embora as motos pequenas fossem
divertidas e práticas, os fora da lei prefeririam andar a pé a serem vistos
numa Honda, Yamaha ou Suzuki. Suas máquinas são perigosas, nervosas e caras,
esses fora da lei sentem desprezo pela ideia de divertimento saudável e seguro,
que é um dos motivos pelos quais eles evitam até as mais básicas medidas de
segurança que a maioria dos motoqueiros consideram necessárias. Você jamais verá um Hell`s Angel usando
capacete. Muito menos uma jaqueta de couro com tachas de prata estilo
Brando-Dylan, normalmente associada a motoqueiros bandidos e “rituais de
fetiche de couro”.
Embora os Angels fossem bastante
prestigiados no circuito sadomasoquista, as coisas levam a crer que qualquer
pessoa que passe um tempo com os Angels sabe a diferença entre motoqueiros fora
da lei e o culto homossexual ao couro. O que se pode ver na ligação pública
mais conhecida entre motoqueiros fora da lei e a homossexualidade é um filme
intitulado Scorpio Rising. Trata-se de um clássico underground medíocre criado
no início dos anos 60 por um jovem cineasta de São Francisco chamado Kenneth
Anger. E, diferentemente de O Selvagem, a criação de Anger não possuía nenhuma
intenção jornalística ou de documentário, era nada mais que um filme de arte
com uma trilha sonora de rock`n`roll, que consistia numa estranha crítica aos
Estados Unidos do século XX, que usava motocicletas, suásticas e
homossexualidade agressiva como uma nova trilogia cultural.
Para um Angel, sua motocicleta é a única
coisa que ele domina totalmente na vida. É o seu único símbolo válido de
status. “O fato de que muitos Angels praticamente criaram as suas motos a
partir de peças roubadas, trocadas ou feitas sob medida explica apenas em parte
o tremendo apego que têm por elas. É preciso ver um fora da lei montar em sua
moto e depois começar a pular no pedal de ignição para poder avaliar com
precisão o que isso significa. É como ver um homem com sede encontrar água. Sua
feição muda, toda a sua postura irradia confiança e autoridade” (Hunter S.
Thompson).
Com raras exceções, a moto fora da lei é uma
Harley 74, uma motocicleta gigante que sai da fábrica de Milwaukee pesando
trezentos quilos, mas que os Angels depenam até chegar a uns duzentos. No
jargão do mundo das motocicletas, a Harley é uma hog (porco) e a moto do fora
da lei é uma chopped hog (porco retalhado). Uma chopped hog é um pouco mais que
um chassi pesado, um banco minúsculo e um potente motor de 1.200 cilindradas.
Isso é quase o dobro do tamanho do motor de uma Triumph Bonneville ou da BSA
Lightning Rocket, ambas com 650 cilindradas e capazes de chegar a velocidades
entre 190 e 210 km/h. A Honda Super Hawk tem um motor de 305 cilindradas e uma
velocidade máxima de quase 160 km/h. “Não existe nada nas estradas, com exceção
de alguns carros esporte ou de corrida, que possa alcançar uma 74 fora da lei
artisticamente retalhada ... Uma chopper em geral é uma obra de arte” (Hunter
S. Thompson).
Quanto aos fatos que tornam os Angels
conhecidos, este pode ser ligado às incursões independentes que são as duas
jornadas principais: Dia do Trabalho e Quatro de Julho. São estas duas datas do
ano em que os fora da lei de todas as partes do estado se reúnem em algum lugar
da Califórnia para uma farra colossal. Vendo os Angels numa jornada, os
camponeses californianos provavelmente consideram este espetáculo inadequado ao
seu modo de vida. Um fora da lei, cuja aparência normal do dia a dia chega a
atrapalhar o trânsito, aparece numa jornada com a barba tingida de verde ou
vermelho vivo, os olhos escondidos atrás de óculos de proteção laranjas e uma
argola de metal no nariz. Outros usam capa e faixa de cabeça Apache, ou óculos
de sol enormes e capacete prussiano pontudo, brincos, capacetes da Wehrmacht
(Forças Armadas do III Reich) e a Cruz de Ferro alemã, além de uma Levi`s
coberta de graxa, tatuagens e jaquetas sem manga.
A respeito dos hábitos econômicos dos
Angels, apesar do fetiche por suásticas, a relação fiscal entre eles beira o
comunismo puro, e por mais que eles afirmem admirar o sistema da livre
iniciativa, eles não conseguem sustentá-lo entre eles mesmos. A sua ética do
trabalho é mais na ordem do “aquele que tem divide”. Não existe nada verbal ou
dogmático, eles só não conseguem fazer diferente.
Falando das origens dos Hell`s Angels, eles
são um fenômeno da classe baixa, mas não chegam a ser miseráveis. A maioria dos fora da lei são filhos de
pessoas que vieram à Califórnia durante a Segunda Guerra Mundial, ou um pouco
antes. Pelo menos metade dos Hell´s Angels são filhos da guerra. É bem fácil
localizar as origens da mística dos Hell`s Angels e até de seu nome e emblemas,
na Segunda Guerra Mundial e em Hollywood. Mas seus genes e sua verdadeira
história têm origens bem mais remotas. A Segunda Guerra Mundial não foi o
primeiro boom econômico da Califórnia e sim de algo que teve início nos anos
30, até que a economia da guerra fez da Califórnia uma nova Valhalla. Porém,
antes um milhão de Okies, Arkies e caipiras que fizeram uma longa viagem até o
Estado de Ouro, descobriram que era mais um lugar onde o dinheiro era suado.
Quando esse senhores chegaram, o Movimento para o Oeste já estava começando a
se solidificar, e uma vez na Califórnia os recém-chegados persistiram por
alguns anos reproduzindo-se de forma prolífica até que a guerra começou. E já
eram californianos quando a guerra acabou. O antigo estilo de vida havia se
espalhado na Rota 66, e seus filhos foram criados em um novo mundo. Os
Linkhorns haviam finalmente encontrado um lar.
Nelson Algren escreveu sobre eles em “Um
passeio pelo lado selvagem”, o livro começa como uma das melhores descrições
históricas já escritas sobre a escória branca americana, ele segue a linha dos
ancestrais de Linkhorn, que eram nada mais que a ralé da sociedade de todas as
Ilhas Britânicas: desajustados, criminosos, endividados, arruinados de todos os
tipos e descrições, todos eles dispostos a assinar contratos de trabalho
opressivos com futuros empregadores em troca de uma travessia do oceano rumo ao
Novo Mundo. E no caminho para o Oeste muitos ficaram pelo meio, nas Carolinas,
em Kentucky, West Virginia e Tennessee. São eles os Okies, Arkies, os caipiras,
todos o mesmo povo. O Texas é um monumento vivo a essa raça. Assim como o sul
da Califórnia. “Seria injusto dizer que
todos os motoqueiros fora da lei carregam genes de Linkhorns, mas qualquer um
que já tenha passado algum tempo entre tribos anglo-saxãs nativas de Appalachia
precisaria de um pouco mais de algumas horas com os Hell`s Angels para ter uma
sensação muito forte de dejà vu. Existe
a mesma hostilidade e o mesmo mau humor em relação a estranhos, as mesmas
atitudes e os mesmos temperamentos extremados e até os mesmos nomes, rostos
rígidos e corpos de ossos longos” (Hunter S. Thompson).
Quanto às drogas, em Bass Lake, no Quatro de
Julho, os fora da lei engoliam suas rações, que era nada mais que anfetaminas
com cerveja. As anfetaminas (bolinhas ou rebites) fazem parte da dieta básica
dos fora da lei, assim como maconha, cerveja e vinho. Mas, quando se fala em
ficar chapado, para eles é um outro nível, o que inclui o Seconal (vermelhas ou
demônio vermelho), um barbitúrico que normalmente é usado como sedativo ou
tranquilizante. Eles também usam Amital (céu azul), Nembutal (capa amarela) e
Tunial.
No final do verão de 1965, os Hell`s Angels
haviam se tornado um fator a ser considerado na vida social, política e
intelectual do norte da Califórnia. Eles eram citados quase todos os dias pela
imprensa. E a única conexão realmente bem-sucedida que o escritor Hunter S.
Thompson conseguiu fazer para os Angels foi com Ken Kesey, um jovem romancista
(Um estranho no ninho e Uma lição para não esquecer) que vivia em um bosque
perto de La Honda, ao sul de São Francisco.
Kesey convidou a divisão de Frisco para uma
festa em La Honda, o terreno de Kesey estava cheio de gente, música e luzes
multicoloridas. As festas com Kesey ficavam cada vez mais intensas, e havia
pouca maconha, ali era o paraíso do LSD. Os Angels então se juntaram ao bando
de beatniks e tipos universitários , com luminares como o poeta Allen Ginsberg
e o guru do LSD, Richard Alpert. Ginsberg, ao encontrar com os Angels, logo se
tornou um aficionado. E, com o burburinho, outras divisões dos Angels foram
chegando nas festas de Kesey. E no caso do LSD, a legislatura estadual da
Califórnia aprovou uma lei rigorosa em junho de 1966, depois de rumores e
histórias de que o ácido fazia as pessoas subirem em árvores, correrem pelas
ruas gritando, incluindo, além, assassinatos, suicídios e comportamentos
insanos de todo tipo, segundo o depoimento de um policial de Los Angeles.
A publicidade maciça dos Hell`s Angels, que
seguiu muito de perto a amplamente divulgada rebelião estudantil em Berkeley,
foi interpretada nos círculos intelectuais, radicais, e liberais como um sinal
de aliança natural. Além disso, a postura agressiva e antissocial dos Angels,
sua alienação, tinha um apelo muito forte para o temperamento mais estético de
Berkeley, e a reputação dos Angels de desafiar a polícia era uma imagem
poderosa para os estudantes. Mas esta fascinação acabou quando os Hell`s Angels
atacaram uma passeata contra a guerra do Vietnã na divisa entre Oakland e
Berkeley. Os heróis existenciais que dividiram o mesmo baseado com os liberais
de Berkeley nas festas de Kesey de repente se tornaram bestas perversas que
partiam para cima desses mesmos liberais agitando os punhos e gritando
“Traidores”, “Comunistas” e “Beatniks!” Não foi uma surpresa para quem sabia
realmente quem eram os Angels, que sempre tiveram um ponto de vista coletivo
fascista, o que os jovens estudantes demoraram a entender.
Os Angels, assim como todos os motoqueiros
fora da lei, são rigidamente anticomunistas, com suas visões políticas de um
mesmo patriotismo retrógado que inspiram coisas como, por exemplo, a Sociedade
de John Birch, a Ku Klux Klan e o Partido Nazista Americano. Durante as semanas
que precederam a segunda manifestação em Oakland, Allen Ginsberg passou um
tempo tentando convencer Barger e os Angels e não atacar os manifestantes.
Ginsberg, Kesey, Neal Cassady, e alguns outros, junto com um grupo de Angels,
na casa de Barger em Oakland, se reuniram para tomar LSD e discussões políticas
tolas foram resolvidas pelas vozes gravadas de Joan Baez e Bob Dylan, e tudo
acabou com o grupo todo entoando o texto do Prajnaparamita Sutra, o Sermão da
Sabedoria mais Elevada e Perfeita.
Os Angels nunca tinham conhecido ninguém
como Ginsberg, eles o classificaram como alguém de outro mundo. E depois de
mais alguns esforços de Ginsberg, os Angels convocaram uma entrevista coletiva
e anunciaram que não iriam preparar nenhum ataque mais. E, a diferença
principal entre os Angels e os idealistas de Berkeley, é que estes fora da lei
não têm nenhum sonho de construir um mundo melhor.
Uma das conclusões que se pode chegar do
trabalho de Hunter S. Thompson, é que a imagem dos Hell`s Angels foi muito
idealizada, tanto positiva, de um lado, e negativa, de outro, o que talvez, com
este livro, fique a realidade de caras que, dito fracassados por uns e até pelo
próprio Thompson, têm na motocicleta seu status e meio de expressão, pois cada
um, na sociedade, quando não caem no crime literal, buscam identidade, e o caso
dos Hell`s Angels é uma identidade coletiva, a força dos Angels é o grupo, e
neste ponto eles são imbatíveis.
Gustavo
Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário :http://www.seculodiario.com.br/21577/14/hellss-angels