PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

ANA MARTINS MARQUES E A POESIA COTIDIANA


“uma poesia com precisão nos detalhes”

Na poética do espaço, por sua vez, Ana Martins Marques nos dá como tema o espaço do lar, a imagem poética da casa, aqui mais uma vez reforçando a relação de parte da poesia contemporânea brasileira com temas do cotidiano. O espaço interior, a imagem do dentro, ao mesmo tempo, está aqui fora do mundo, o limiar entre uma vivência particular, o dentro, entra neste contraste com o mundo exterior, criando este limiar entre uma poesia íntima e o que fica fora deste lugar particular.
Em poemas como “Arquitetura de Interiores” do livro A Vida Submarina, temos este contraste entre dentro e fora, com a ideia de limiar tencionando todo o poema. E neste mesmo livro há toda uma série com este tema da casa, com a porta sempre como este limiar que tenciona a casa com o mundo exterior.
Na poética de Ana Martins Marques temos toda uma série de utensílios que irão compor a sua paisagem de poemas do cotidiano, desde xícaras lascadas até encanamentos, com a poesia dos utensílios ou a poesia das coisas aqui virando, de modo amplo, a poesia da casa. Com o tema do cotidiano em Ana Martins Marques, temos aqui uma herança que vem do Modernismo, e que passa, claro, por Ana Cristina César, esta influência indisfarçável para muitos poetas brasileiros contemporâneos, sem demérito, ao contrário, e que também vem de Chacal, Cacaso e Adélia Prado.
Temos, também, nos poemas de A Vida Submarina, a imagem da casa como fonte da memória e não apenas de um ímpeto objetivo e de uma poesia descritiva, a imagem dos afetos e a relação memorial de objetos com vivências, também amorosas, aparece nesta poesia do cotidiano de Ana Martins Marques. O espaço da casa, que tem, de um lado, nostalgia amorosa, também vira campo de anelo e sonho, uma paisagem imaginada ideal, impulsionando o poema que parte deste espaço particular.
Em Da Arte das Armadilhas, a concentração objetiva deste cotidiano, de uma poesia da casa, aumenta, aprofundando um microcosmo que aqui aparece com mais nitidez do que em A Vida Submarina. E finalmente, em O Livro das Semelhanças, esta relação entre dentro e fora se intensifica de modo mais amplo, com o tema metapoético do poema e do livro, culminando em poemas cartográficos, com o tema do mapa como o “fora” que a poesia busca.
Um ponto interessante é também de como a poeta vai edificar a sua subjetividade a partir deste espaço da casa, pois, partindo de uma linguagem cotidiana, inicialmente descritiva, logo vemos se desenhar nos poemas de Ana Martins Marques sobre a casa, a sua condição subjetiva, tanto de memória como de sonho, e a construção de sua reflexão pessoal partindo deste espaço de subjetivação particular que é do verbo habitar e que vem do substantivo casa.
A poesia de Ana Martins Marques, por fim, compõe um espaço de subjetivação e construção do eu lírico que não se limita numa poesia da casa e do cotidiano tomada como simples descrição objetiva e comezinha, mas como lugar em que a poeta reconfigura seu espaço objetivo e familiar e nos aponta para algo desconhecido.
Tal rearranjo cotidiano é próprio da linguagem poética se confrontando com sua reflexão subjetiva e o choque desta com o mundo objetivo da casa, uma poesia com precisão nos detalhes que, ao fim, coloca a poeta nesta tensão entre sua casa e o mundo, uma poesia do dentro e do fora que reconfigura a realidade com uma poesia atenta aos detalhes e que se forja entre o eu lírico e uma interação deste com o cotidiano, agora redesenhado pela linguagem poética.
POEMAS :
SEM TÍTULO : O poema vem com o tema do mapa, este contato da poesia de Ana Martins Marques com o mundo, com o que está fora, no que vem : “E então você chegou/como quem deixa cair/sobre um mapa/esquecido aberto sobre a mesa/um pouco de café uma gota de mel/cinzas de cigarro/preenchendo/por descuido/um qualquer lugar até então/deserto”. E seu interlocutor, aqui incógnito, deixa seu rastro no mapa, como que preenchendo o vazio, seja o deserto do mapa, ou um deserto na poeta que ali olhava o mapa.
SEM TÍTULO : O poema fala sobre a dobra do mapa que aproxima cidades distantes e corações que desejam se encontrar, o mapa dobrado junta o que tá longe, no que temos : “Você fez questão/de dobrar o mapa/de modo que nossas cidades/distantes uma da outra/exatos 1720 km/fizessem subitamente/fronteira”. A fronteira que se faz aqui é do gesto de dobrar um mapa, distância que aqui acaba neste gesto poético.
SEM TÍTULO : O mapa aqui aparece mais uma vez como a indicação do caminho para um encontro, no que vem : “Você assinala no mapa/o lugar prometido do encontro/para o qual no dia seguinte me dirijo”. O lugar assinalado logo vira a pressa do desejo, sempre este afoito, que esquece o mapa sobre a mesa, viagem perdida, no que temos : “a pressa feroz do desejo/deixando no entanto esquecido sobre a mesa o/mapa que me levaria/onde?”.
SEM TÍTULO : O poema tem o mapa do mundo aqui descrito de modo físico, disposto de forma que pode ser modificado ao gosto da poeta, no que temos : “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem/mas posso esquecer uma laranja sobre o México/desenhar um veleiro sobre a Índia”. Ana Martins Marques tem aqui a onipotência de manipular seu mapa ao bel prazer, no que segue : “duplicar a África com um espelho/criar sobre o Atlântico um círculo de água/pousando sobre ele meu copo de cerveja/circunscrever a Islândia com meu anel de noivado”. A intervenção física do mapa como um papel disposto aqui vira imagem de poder à poeta de revirar um mundo inteiro com pequenos gestos, no que temos : “visitar os nomes das cidades/levar o mundo a passeio/por ruas conhecidas/abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse/apenas para que tome/algum sol”.
SEM TÍTULO : O poema aqui, mais uma vez, usa da imagem do mapa como fonte para a imagem poética do encontro, no que temos : “Viajo olhando pela janela do ônibus/em busca das linhas vermelhas das fronteiras/ou dos nomes luminosos das cidades”. O poema segue aqui com o estudo detido da poeta sobre o mapa como modo de encontrar o caminho ao seu interlocutor, no que temos : “e eu passava horas estudando/todos os caminhos que me levariam até você/mas nos mapas eu nunca te encontrava”. A poeta aqui especula, sonha, delira, e na conjectura tenta realizar um anelo meio solto, que fica neste poema, ao ver do mapa a sua esperança de um caminho direto : “talvez você me espere na rodoviária/talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus/assim que descer vou entregar nas suas mãos/emboladas num novelo/as linhas desfeitas das fronteiras e/como as contas luminosas de um colar/cada um dos nomes das cidades”.
SEM TÍTULO : O poema segue com o tema do mapa, agora como um efeito da chuva que influi toda a descrição poética que o poema desenha, aqui também com a imagem física do mapa fazendo uma linha com sua associação com o que o mapa representa, no que segue : “Abro o mapa na chuva/para ver/pouco a pouco/diluírem-se as fronteiras” (...) “as cores confundidas/nem parecem mais aleatórias” (...) “agora há um grande lago/onde antes havia uma cordilheira/o mar não é mais molhado/do que o deserto logo ao lado”. O mapa, tomado como objeto físico, ganha a sua proporção gigante de descrição do mundo, interagindo este microcosmo com uma vastidão de fronteiras e países, entre insetos que dominam o cenário, e que Ana Martins Marques aproveita aqui para brincar de modo genial, no que temos : “Deixo depois o mapa/para secar ao sol/sobre a grama do jardim/mais rápidas do que aviões/as formigas atravessavam/de um continente a outro/uma lagarta riscada/apossou-se das Coreias/agora unificadas/um tapete de folhas/cobre o mar Egeu/e o rastro de uma lesma umedeceu/o Atacama”. E diante desta festa da natureza, a poeta deixa o mapa para um pequeno inseto novo lhe dar a feição, ao fim este mapa se dobraria sobre si mesmo, revelando lugares secretos, no que temos : “Penso que se deixasse o mapa aí/tempo o bastante/em algum momento surgiria/quem sabe/um pequeno inseto novo/com esse dom que têm os bichos/e as pedras e as flores e as folhas/de imitarem-se/uns aos outros” (...) “Quando enfim/fechássemos o mapa/o mundo se dobraria sobre si mesmo/e o meio-dia/recostado sobre a meia-noite/iluminaria os lugares/mais secretos”.
POEMAS :
SEM TÍTULO
E então você chegou
como quem deixa cair
sobre um mapa
esquecido aberto sobre a mesa
um pouco de café uma gota de mel
cinzas de cigarro
preenchendo
por descuido
um qualquer lugar até então
deserto

SEM TÍTULO
Você fez questão
de dobrar o mapa
de modo que nossas cidades
distantes uma da outra
exatos 1720 km
fizessem subitamente
fronteira

SEM TÍTULO
Você assinala no mapa
o lugar prometido do encontro
para o qual no dia seguinte me dirijo
com apenas café preto o bilhete só de ida do metrô
a pressa feroz do desejo
deixando no entanto esquecido sobre a mesa o
mapa que me levaria
onde?

SEM TÍTULO
Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem
mas posso esquecer uma laranja sobre o México
desenhar um veleiro sobre a Índia
pintar as ilhas de Cabo Verde uma a uma
como se fossem unhas
duplicar a África com um espelho
criar sobre o Atlântico um círculo de água
pousando sobre ele meu copo de cerveja
circunscrever a Islândia com meu anel de noivado
ou ocultar o Sri Lanka depositando sobre ele
uma moeda média
visitar os nomes das cidades
levar o mundo a passeio
por ruas conhecidas
abrir o mapa numa esquina, como se o consultasse
apenas para que tome
algum sol

SEM TÍTULO
Viajo olhando pela janela do ônibus
em busca das linhas vermelhas das fronteiras
ou dos nomes luminosos das cidades
pairando sobre elas
como nos mapas
neles não ventava nem chovia
e nunca era noite
e eu passava horas estudando
todos os caminhos que me levariam até você
mas nos mapas eu nunca te encontrava
chego em duas ou três horas
o coração no peito como um pão
ainda quente na mochila
talvez você me espere na rodoviária
talvez eu te veja ainda antes de descer do ônibus
assim que descer vou entregar nas suas mãos
emboladas num novelo
as linhas desfeitas das fronteiras e
como as contas luminosas de um colar
cada um dos nomes das cidades

SEM TÍTULO
Abro o mapa na chuva
para ver
pouco a pouco
diluírem-se as fronteiras
as cidades borradas
diminuem de distância
as cores confundidas
nem parecem mais aleatórias
perderam aquele modo abrupto
com que as cores mudam nos mapas
agora há um grande lago
onde antes havia uma cordilheira
o mar não é mais molhado
do que o deserto logo ao lado

Deixo depois o mapa
para secar ao sol
sobre a grama do jardim
mais rápidas do que aviões
as formigas atravessavam
de um continente a outro
uma lagarta riscada
apossou-se das Coreias
agora unificadas
um tapete de folhas
cobre o mar Egeu
e o rastro de uma lesma umedeceu
o Atacama
uma formiga enamorou-se
de um vulcão
exatamente do seu tamanho
um dos polos
ficou à sombra
e resfriou-se mais que o outro
de longe não sei se são moscas
ou os nomes das cidades

Penso que se deixasse o mapa aí
tempo o bastante
em algum momento surgiria
quem sabe
um pequeno inseto novo
com esse dom que têm os bichos
e as pedras e as flores e as folhas
de imitarem-se
uns aos outros
um pequeno inseto novo
eu dizia
um novo besouro talvez
que trouxesse desenhado nas costas
o arquipélago de Cabo Verde
ou as finas linhas das fronteiras
entre a Argélia e a Tunísia

Quando enfim
fechássemos o mapa
o mundo se dobraria sobre si mesmo
e o meio-dia
recostado sobre a meia-noite
iluminaria os lugares
mais secretos

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.