“a capa infantil de Alice é muito forte, só que Alice também
é para adultos”
Charles Lutwidge
Dodgson, mais conhecido pelo pseudônimo Lewis Carroll, foi um romancista,
contista, poeta, desenhista, fotógrafo e matemático, além de ter sido reverendo
anglicano britânico. Escreveu o clássico livro As Aventuras de Alice no País
das Maravilhas, e sua via paralela Através do Espelho, além de outros poemas
escritos em estilo nonsense ao longo de sua carreira literária, o que inclui
naturalmente sua criação poética dos doublets. Também ficou conhecido pelas
suas obras de lógica, o que se reflete em seus escritos sobre Alice.
Lewis Carroll,
apesar de ter feito várias outras atividades, é mais conhecido, e isto até
hoje, como autor de literatura infantil. Porém, achar que Aventuras de Alice no
País das Maravilhas e Através do Espelho são livros para crianças, trata-se de
uma visão que pode facilmente ser relativizada, pois Lewis Carroll traz nestes
livros um mundo muito maior de referências do que simplesmente entretenimento
infantil. Seu sentido infantil pode ser mais uma interpretação destas obras na
época em que foram publicadas, do que na referência ao trabalho crítico
posterior que nos dão a visão atual da Alice de Lewis Carroll, já com toda a sua
trama lógico-semântica tematizada.
O impulso fantasista
que, porventura, possa ser depreendido das obras de Carroll sobre a menina
Alice é uma face, contudo, de superfície do que contém estes trabalhos
literários. A fantasia é só o que está, numa primeira vista, no aspecto
criativo e de personagens de que se faz as obras carrollianas sobre Alice. Pois,
numa leitura atenta e fundada do que se trata Alice e suas estórias, isto é, o
que vem de um simples sonho de uma menina, tem algo que a justifica, e que não
é este suposto impulso fantasista que é uma capa bem apresentável de Alice, mas
que está longe de ser o seu sentido.
O sentido, então, da
matéria de que se faz Alice e suas estórias, sua trama onírica, tem muito do
que Carroll estudou e pesquisou, isto é, Alice traz em seu bojo um universo
inteiro de referências, e tais modos de apresentação da “fantasia” de Alice é
um esquema, na verdade, que reúne alusões literárias diversas, aspectos
científicos, e sua base se faz de um fulcro lógico-semântico que tem no
paradoxo sua particular obsessão, o que coloca o sonho de Alice como um
tratamento nonsense de aprofundamento, entretanto, deste sentido.
O sentido sendo
subvertido pelo paradoxo é reforçado no sonho de Alice. O sentido é esgarçado o
tempo todo para dele Carroll tirar o fundamento. O raciocínio passa por uma
contenda de inversões para, no fim, Carroll conseguir na trama de Alice o sumo
do que faz a mente funcionar como tal, ou seja, com uma compreensão profunda deste
jogo em que o sentido das coisas existentes ganha um fundamento forte.
É bom notar que,
apesar do cabedal referencial de que as tramas oníricas de Alice está repleta,
temos que ter atenção, nas decorrências do trabalho crítico-literário, de não
cair na armadilha fácil da superinterpretação, isto é, o viés psicanalítico que
é mestre nisso, e abrir mão de todo
tique psicologizante, numa prevenção autocrítica para não colocarmos sentidos
demais na escrita feita por Carroll ao “contar” Alice.
A superinterpretação,
portanto, é denunciada pelos seus próprios cacoetes, ou seja, quando o trabalho
crítico ganha uma densidade profunda com pretensão de abarcar sentidos de todas
as perspectivas possíveis, podendo este tratamento da obra Alice de Lewis Carroll
virar uma amálgama psicológica que, na verdade, se esboroa na sua extensão, e
que, em se tratando de Lewis Carroll, o jogo lógico tem muito mais frutos de
interpretação do que uma sonda inútil de profundidades psicológicas.
As interpretações
simbólicas em Alice, então, são a armadilha de Carroll neste aspecto fantasista
de que ela carrega em sua superfície. Pois se trata de um aspecto de capa de
Alice, a simbologia não é seu sentido, o expresso em Alice como onírico,
paraíso da psicologia, é superfície. O que tem de jogo lógico-semântico é que
dá sentido às aventuras de Alice, e o paradoxo é seu sustento, como bem
interpretou Gilles Deleuze. Uma semiótica objetiva e uma psicanálise subjetiva
passam ao largo, inversamente entre si, por exemplo, da matéria de que Alice e
os personagens que povoam suas estórias é feita. Pode até haver substrato
semiótico ou psicológico, mas a grande versão de Alice é sua trama lógica, de
regras do raciocínio, e de sua respectiva subversão.
Na leitura
fantasista das obras de Carroll sobre Alice, por exemplo, podemos ver aí uma
aura de mitificação que a envolve. Isto é, esta base de fantasia, armadilha
psicológica, que é superfície, tem fundo numa interpretação ingênua da figura e
do sentido de Alice e sua trama onírica. Tal base ingênua passa pela publicação
e sua época, ou seja, a herança desta interpretação de Alice vem da primeira
impressão que houve historicamente, a fantasia como o único aspecto visível da
obra de Lewis Carroll, e que se torna, então, uma obra de literatura infantil,
o que também é, mas que não decodifica o seu trabalho extenso com o conceito de
sentido.
A leitura concreta
de Alice pode trazer certas limitações interpretativas, mas é o método pelo
qual não saberemos “demais” e colocaremos uma justa medida das intenções de
Lewis Carroll que, certamente, não teria inventado uma superpsicologia ao criar
Alice e sua trama.
O contexto
biográfico do escritor tem peso na interpretação, como também aspectos
lógico-semânticos que dão fundamento, tanto ao fenômeno onírico de Alice, como
de sua referência a estudos conhecidos do próprio escritor nesta área. O não se
exceder na interpretação tem como método relativo e adequado o viés concreto de
ver o texto, isto é, de se ater mais ao texto de Alice em si, do que cair na
inventividade de sua trama, e tentar tirar uma radiografia simbólica que passa
para além da fala do texto.
É preciso prestar
atenção ao que o texto de Alice diz na sua própria fala, nas vozes que aparecem
pela trama, e não na invenção extrema desta própria trama. A invenção criativa
e onírica, em Alice, tem seu sentido textual, mais do que subterrâneo. Então, o
método pelo concreto, isto é, pelo textual, é um princípio seguro de não fazer
da superinterpretação uma tentação da crítica literária sobre o que está em
Alice.
Uma nota importante
das duas obras, Aventuras de Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho,
é que as duas estão imbricadas num paralelismo que as vincula ao projeto
lógico-semântico de Lewis Carroll. As duas narrativas estão em harmonia neste
sentido lógico-semântico, e também nas cronologias que as estruturam. As duas
narrativas são separadas por seis anos na publicação: a primeira é de 1865 e a
segunda é de 1871.
O nonsense
carrolliano tem uma mesma matriz em ambas as narrativas, e também comportam as
mesmas técnicas de duplo sentido. Este é o exercício do paradoxo que a trama de
Alice tem como sustentação de seu sentido principal. Tal técnica também está
presente em uma obra posterior, o extenso romance Sylvie and Bruno, publicado
em duas partes, e que dá um passo além para a ambivalência do nonsense, com a
orientação realista. Ou seja, em Sylvie and Bruno, Lewis Carroll transforma seu
projeto lógico-semântico em literatura anfíbia, juntando o caráter realista com
o fantástico.
Uma das maneiras
principais, ou a mais interessante, de se fazer a conexão entre Aventuras de
Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho, é no conteúdo dos poemas que
aparecem em ambas as narrativas. Pois, quando não são nursery rhymes ou poemas
infantis tradicionais, têm uma função paródica, que, em sua ironia, são
imitações burlescas de poemas conhecidos dos líricos ingleses.
A ironia poética de
Lewis Carroll brinca, sobretudo, com as palavras chamadas valise, que são
criações que surgem da junção de palavras diferentes, e que formam um duplo
sentido, ou melhor, um sentido novo, que, na sua formação, dão vazão aos
sentidos originais e a um neologismo ao mesmo tempo. As palavras valise são a
criação carrolliana que entram no jogo lógico-semântico, a serviço, na poesia,
de uma burlesca corruptela da tradição poética inglesa.
Quanto às discussões
de caráter lógico-semântico, tais estão concentradas nos diálogos entre Alice e
alguns dos personagens. Por exemplo, em Aventuras de Alice no País das
Maravilhas, Alice discute com a Lagarta, com a Duquesa, com o Gato de Cheshire,
com o Chapeleiro e com a Lebre de Março, e em Através do Espelho, ela discute
com Tweetledum e Tweetledee, com Humpty-Dumpty, com o Cavaleiro Branco, com as
duas Rainhas, etc. Os temas das discussões em ambas as narrativas passam pelo
termo lógico-semântico que se refere, por sua vez, às questões de identidade, o
sentido das palavras, o problema dos nomes, e as proposições lógicas.
O sentido da obra de
Lewis Carroll, tanto em geral, como quando se fala de Alice, é que, mais do que
uma carga simbólica, passível de superinterpretação psicológica, Carroll faz na
verdade a percepção de um jogo dialético, nas relações entre significante e
significado, do jogo de palavras e do que elas significam, e passa, através
deste fenômeno linguístico, pelo questionamento das regras lógicas através do nonsense
e pelo paradoxo.
Ou seja, Alice e
toda a obra de Lewis Carroll tenta edificar o sentido, por sua vez, com a
experiência de linguagem e suas decorrências, e nesta experiência ele se coloca
numa trama lógica subvertida. Isto é, o uso da linguagem em Alice entra na
subversão da lógica por esta, pois a origem dos paradoxos e do nonsense (efeito
lógico subvertido) está na linguagem. A experiência linguística é a ferramenta
das subversões lógicas de Lewis Carroll.
O paradoxo, em
Alice, passa por inversões e reversões, isto é: Alice muda de tamanho, passa
por reversões na ordem do tempo, e na narrativa temos também reversões de
proposições, reversões de causa e efeito, e outras ilusões da lógica
subvertida.
O paradoxo da
identidade infinita, por exemplo, conduz à contestação da identidade pessoal de
Alice, e isto entra num jogo carrolliano da dualidade dos sentidos, com a
proliferação indefinida dos mesmos, numa trama sem regras definidas e com
termos contraditórios entre si.
E, é bom frisar, a
construção de paradoxos em Lewis Carroll, isto inserido em toda a trama de
Alice, se coloca como jogos lógico-semânticos, mas tem sua interpretação mais
correta no sentido de compreender-se que, salvo o aspecto lógico em si, tais
paradoxos são, antes, fenômenos de linguagem. Tal sentido é fabricado por jogos
poéticos e analógicos, tendo seu efeito de raciocínio apenas como decorrência
do jogo de linguagem. E, em Alice, pelo paradoxo, temos uma demolição do
sentido usual de linguagem, entrando nas fronteiras lógicas de que o uso das
palavras podem provocar.
Lewis Carroll,
contando com seu trabalho lógico-semântico, tanto em sua obra sobre Alice, como
em seus trabalhos de lógica propriamente dita, tem-se o entendimento de que a
capa infantil de Alice é muito forte, só que Alice também é para adultos, e sua
amplitude passa por questionamentos humanos dos limites da realidade, do mundo
onírico, tudo isso num esquema surrealista só na aparência, pois a substância
do trabalho de Carroll passa ao largo da escrita automática e da obsessão pelo
inconsciente dos surrealistas, colocando em termos de linguagem, num jogo, esta
subversão que vem do sonho e que, com Alice, se torna apenas o fundo no qual se
dá um verdadeiro enfrentamento das palavras e de seu sentido, tudo chega ao
limite em Alice, e o pano de fundo onírico é só o detalhe de que tais
subversões só seriam possíveis neste contexto. A trama onírica é o único
ambiente no qual as experiências lógico-semânticas, incluído o paradoxo, se dão
de forma fluida e com segurança.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário:http://seculodiario.com.br/23451/14/lewis-carrol