“Hölderlin manteria seu dom intacto mesmo na mais profunda
loucura”
Os temas do divino e da utopia reaparecem agora na fase dos
hinos, a qual sucede as elegias na poesia de Hölderlin. Temas que são tratados com
ainda mais clareza, como no poema “Como num dia feriado”, tal que é um poema
sobre o poeta, uma descrição poética da feitura que o poeta encarna, e que no seu
traquejo com a linguagem, será a expressão de uma habilidade que, nesta altura
da criação de Hölderlin, irá se tornar controversa ou incompreendida. Alturas
incógnitas de Hölderlin que levará o grande filósofo Heidegger a lhe dedicar um
ensaio de interpretação, filósofo que iria, no século XX, ser um dos maiores
intérpretes da poesia de Hölderlin. E o fenômeno Hölderlin, também em sua
loucura, irá ser uma expressão disfuncional que, decerto, terá no século XX seu
estatuto na poesia de vanguarda, algo surpreendente, pois se fala de um poeta
que viveu até antes de terminar o meio do século XIX.
O “dia feriado” do título representa a ideia mítica do
retorno dos deuses à terra, descrição de um despertar da Natureza, pouso
idílico, que é também uma potência anterior ao tempo e acima de todos os deuses,
que é tomada de entusiasmo, cheio de Deus dentro de si, e que, miticamente, por
sua vez, encarna o sopro criador de Dioniso. Hölderlin acende também “um fogo
na alma dos poetas”, os quais, como vates que são, portanto, vaticinam o
Advento, dom da profecia, aqui o futuro, e de outro, por tratar o mito, dom da
memória, acendendo o passado, numa narrativa de origem, e também o dom da ação,
acendendo o presente, pois tem a presença de “novo signo, os feitos do mundo de
agora”, sendo que o fogo aceso na alma dos poetas pelo entusiasmo de Dioniso
lhes faculta irem até o cósmico, é uma ascensão, uma narrativa mítica e
transcendente, para reconhecer de pronto, tanto com o sol, como com a terra e a
tempestade, as “forças vivíssimas dos deuses” presentes. Origem, profecia,
ascensão, elementos que o poema vaticina, refunda e torna presentes com o dom
final da palavra.
Esse vislumbre panteísta, revelação da divina unidade do
mundo, Uno filosófico, unio mystica, é também uma lembrança edênica, obnubilada
pela consciência comum que dorme, que o comum dos homens esqueceu, mas que a
memória fiel dos poetas guarda sempre viva, razão que leva à compreensão de que
os poetas são guardiães da sabedoria e da palavra ancestral, pois na mitologia,
por sinal, as Musas eram filhas da Memória. Mas, para alcançar a própria alma
ou o entendimento extático que é dos iluminados pelo fogo do céu – o mesmo fogo
que Prometeu foi roubar aos deuses, sendo punido por isso – e com este fogo
chegarem à clareira do autoconhecimento e da decifração do mundo em sua
totalidade, através da dádiva do poema, que é também revelação, não religiosa,
mas de geração espontânea, fenômeno artístico e poético, e para alcançar a alma
dos homens, devem os poetas pagá-lo, assim como Prometeu, ao preço do
sofrimento, que é nada mais, falando de mito, o raio divino que fulmina,
arrebata e queima poetas, assim como queimou Sêmele.
Os seus últimos grandes hinos, Hölderlin os compôs no limiar
da loucura definitiva, era já, nas próprias letras apresentadas, o caminho
evidente de um colapso. Daí alguns exegetas terem visto, já nas suas elipses
violentas, e na produção de uma dicção consumada, por sinal, em aparente
incoerência, as primeiras expressões de sua desordem mental. Mas isso, por
outro lado, em nada prejudicou o valor intrínseco do que ele então escreveu, pois
Hölderlin manteria seu dom intacto mesmo na mais profunda loucura, o que se
comprovará nos relatos seguintes de sua história.
Tais bruscas elipses e suposta incoerência de discurso, ao
contrário de uma loucura sem sentido, talvez até contribuísse para realçar o
caráter de antecipador da modernidade que hoje lhe é reconhecido. Pois o
cubismo poético de Apollinaire, por exemplo, irá explorar os efeitos de
descontinuidade e simultaneidade das sensações através das famosas justaposições
de versos ou grupos de versos sem vínculos de ordem discursiva ou lógica entre
si, o que era nada mais do que levar ao extremo as elipses de Hölderlin, assim
como o recurso à escrita automática, no surrealismo, para a produção de imagens
de impacto dotadas de “absurdez imediata” levaria a igual extremo a desconexão
lógica dos últimos hinos hölderlinianos. A linguagem disfuncional, por mais
irônico e curioso que pareça, ganha adeptos no despontar do século XX, sendo um
sinal de modernidade e de vanguarda. O que culminará na demolição da
onipotência do sentido pelos dadaístas, loucos sóbrios e sedentos de futuro.
Foram contemporâneas da composição dos últimos hinos as
traduções que Hölderlin fez de suas duas tragédias de Sófocles, Édipo-tirano e
Antígona; as quais conseguiu publicar em volume por volta de 1804. Os entendidos
da época caçoaram delas, pois Voss,
tradutor de Homero, perguntou em carta a um amigo: “Que me diz você do Sófocles
de Hölderlin? O homem é mesmo maluco, ou finge sê-lo”. E Schelling, o filósofo
que havia sido colega do poeta em Tubinga, escreveu a Hegel: “A versão de
Sófocles mostra uma condição mental assaz decadente”.
A exasperada busca de equivalentes capazes de fazer justiça à
riqueza dos matizes de significado do texto grego levou Hölderlin a forçar até
o limite as possibilidades expressivas do alemão, enchendo-o de decalques,
imitando giros sintáticos do grego, paralelizando-lhe a ordem das palavras,
mesmo ao custo de violar a índole do alemão, uma exigência e rigidez que tornou
o alemão disfuncional, uma tradução que de tão fiel decaiu o vernáculo e
coerência do alemão, incompreendida de pronto nas primeiras impressões. No
entanto, pela sua radicalidade e pelo seu vigor, essas traduções marcaram
época. George Steiner as considera da “maior importância” por serem “o ato mais
violento, mais deliberadamente extremado de penetração e apropriação
hermenêutica de que se tem notícia” na história da tradução poética.
No mesmo ano de 1804 em que saíram publicadas suas traduções
de Sófocles, Hölderlin conseguiu, por intercessão de seu amigo Sinclair, o
cargo simbólico de bibliotecário da corte do landgrave ou príncipe Frederico V,
que lhe havia anteriormente encomendado “Patmos”. Mas foi uma sinecura de curta
duração; e logo Hölderlin perdeu este subsídio, e agora o poeta se deparava com
um estado mental que piorava cada vez mais; sua decadência se tornava nítida, e
um médico declarou, após examiná-lo em 1805: “sua loucura está-se convertendo
em frenesi, e é impossível compreender-lhe a linguagem, que parece uma mistura
de alemão, grego e latim”. No ano seguinte, Sinclair decide interná-lo numa
clínica de Tubinga. A esta altura, com seus cabelos que já começavam a
embranquecer; Zweig o evoca cambaleando então “pelas ruas de Tubinga,
escarnecido pelos rapazes, cercado de estudantes que o ridicularizavam,
estudantes que não souberam ver aquele espírito apagado através do invólucro
trágico do corpo”.
No verão de 1807, de nada tendo adiantado o tratamento na
clínica, ele é entregue aos cuidados do marceneiro Zimmer, de Tubinga, o qual,
por admirá-lo desde que lera Hiperíon, se dispusera a tomar conta dele. Até o
fim da vida o poeta irá viver em casa de Zimmer, confinado numa torre com vista
para o Neckar e para a tranquila paisagem ribeirinha. As suas crises vão-se
espaçando, e os passeios pela vizinhança o ajudam a acalmar-se. Para o
simplório e bondoso marceneiro que o hospedava, ele tinha enlouquecido “não por
falta de espírito, mas por causa do seu muito saber”; e diagnosticava: “Foi o
entusiasmo pelo paganismo que o fez descarrilar, e todos os seus pensamentos se
detiveram num ponto em torno do qual gira e gira sem descanso”. Mas Zimmer testemunha
que o poeta, por outro lado, muito dócil, como uma criança, não lhe dava maior
trabalho, pois servia-se sozinho à mesa, vestia-se e ia para a cama sem ajuda.
E, o que era mais importante, além de distrair-se tocando flauta e cravo,
continuou a escrever até o fim dos seus dias. Costumava oferecer pequenos
poemas, compostos na hora com espantosa facilidade, aos seus raros visitantes,
entre eles alguns dos escritores românticos alemães que o começavam a
descobrir.
E falando agora dos tais “poemas da loucura” (aqui citados
inteiros três: A Beleza, Os Prazeres e A Primavera) de Hölderlin, Roman
Jakobson dedicou um minucioso estudo a estes poemas, pois ao se deter sobre a
poesia daquele que considerava “o maior dos esquizofrênicos”, lembra Jakobson
que as fórmulas de extremada reverência (vossa alteza, vossa graça, vossa
santidade) com que o poeta sistematicamente tratava os seus visitantes tinha
por objetivo manter o mundo exterior à distância, assim como a adoção de um
cognome era “uma tentativa de excluir o próprio eu do colóquio e mais tarde até
dos escritos”. Um exemplo do distanciamento de Hölderlin da vida prática, já em
seu estado disfuncional para o mínimo de coerência discursiva, salvo na poesia,
quando lhe foram levar, em 1826, um exemplar da edição de seus poemas, ele
observou: “Os poemas são autênticos, são meus, mas o título é falso. Na vida,
não me chamei Hölderlin, mas sim Scardanelli, ou algo assim”.
Obliterando a sua identidade real, Hölderlin se
despersonalizava, ou melhor, assumia a plenitude da sua interioridade de
criador, e leva ao extremo a ideia de criação poética, que, para ser um todo
artístico, em todo o seu tempo, obnubila o outro tempo comum, e o torna
disfuncional pelo resto da vida, fazia-se então Hölderlin uma encarnação do
“logos poético do homem, isto é, da linguagem em sua pureza e simplicidade
arquetípicas”, segundo Jakobson. E nos poemas da loucura, por sua vez, aparecem
as paisagens tranquilas, edênicas, que tais últimos poemas pintam em pequenos
quadros numa figuração de um mundo primevo de perfeição e felicidade, algo semelhante
com o mundo platônico das ideias. Sendo mais um ponto de interesse de tais
poemas o fato da crescente preferência, neles, pelo presente do indicativo, com
o consequente abandono das relações modal-temporais, representando uma nova autocracia
do presente, talvez revelando também um estado de alienação, pois Hölderlin
vivia agora numa torre, isolado, ou ainda, nestes poemas pode ser que ele
quisesse, como dissera muito antes o próprio, fazer “uma atualização do
infinito”.
E, na transição dos hinos, última fase lúcida de Hölderlin,
para os poemas da loucura, na verdade não há tal transição, há sim uma ruptura,
pois tal é que não foi uma ruptura de sua poesia, mas de sua mente, o que
radicaliza o fenômeno deveras. O curioso, nesses poemas do estágio mais
adiantado da sua esquizofrenia, é eles nada terem em comum, sobretudo quando se
fala em estilo de escrita, tanto na forma como no conteúdo e expressão, com os
grandes hinos que o antecederam de mais perto. Em contraste com o verso livre e
a dicção larga e copiosa dos hinos, os poemas da loucura são um abismo novo e
tragicamente interessante, pois são, além de breves, uma ou duas estrofes no
geral, metrificados e rimados como os poemas da fase da adolescência.
Poemas de loucura que revelam a busca de Hölderlin de um
refúgio (agora na torre diante do Neckar), que são uma paz de espírito, uma
simplicidade pueril e uma meiga melancolia que nada têm a ver com a exaltação
dos hinos, pois em sua loucura Hölderlin fala do que foi e não é mais, mas está
em paz com sua nova condição, embora trágica e muitas vezes melancólica. Era
como se, dentro do homem em conflito com o mundo, o poeta estivesse
reconciliado, a união divina apontada o tempo todo em seu trajeto poético agora
se consuma em poemas lacônicos dentro de uma torre. Opunha-se assim, no nível
linguístico, o monológico da fala lírica do eu ao dialógico da fala pragmática
com outrem; um dos autores citados por Jakobson nota que “era maravilhoso o
encanto exercido pela forma poética” sobre o Hölderlin doente, ao passo que, em
prosa, ele “caía numa confusão total”. Ou seja, um “estridente contraste entre
(...) a grave perda da capacidade de tomar parte em colóquios com outras
pessoas, de um lado, e o gosto, mais que isso, a capacidade – estranhamente
intacta e inclusive aumentada – de uma improvisação poética ágil, espontânea e
consciente, de outro”.
Ao alternarem pinturas de calmas paisagens edênicas com
reflexões acerca do significado da vida, os “poemas da loucura” de Hölderlin
lembram um pouco a dicção icástica das “Canções de inocência e experiência” de
William Blake, poeta pré-romântico inglês que, mais velho do que ele, foi seu
contemporâneo. À semelhança de Hölderlin, Blake era também um visionário cheio
de unção religiosa que admirava a Revolução Francesa e clamava contra os males
da barbárie industrial; e muitos o tiveram não pelo grande poeta que de fato
foi, mas como apenas um maluco pitoresco e inofensivo que se comprazia em
conversar com os espíritos. Assim também, em seus últimos anos de vida,
Hölderlin aparece como um “débil ancião, desdentado, que vai tateando com o
bastão e levanta a mão descarnada dizendo versos, num mundo imperceptível para
os que o veem”.
COMO NUM DIA FERIADO ...
Como, num dia feriado, o lavrador
Vai de manhã ver seu campo após a noite
Abafadiça, em que raios refrescantes
Caíram o tempo todo, e longe ronca
Ainda a trovoada e o rio volta a seu leito,
E o solo reverdece
E de chuva do céu goteja
A vinha, alegre, e as árvores do bosque
Se erguem cintilantes sob o sol sereno __
Assim erguem-se num tempo favorável,
Elas que mestre algum, além da Natureza,
Prodígio onipresente, poderosa
E divina beleza, educou.
Por isso, nas quadras do ano em que parece
Ela dormir no céu, nas plantas ou nos povos,
Também se enluta o rosto dos poetas.
Parecem estar sós, mas vaticinam sempre;
Vaticinando é que ela própria dorme.
Mas eis o dia! Esperei-o e o vejo vir,
E do que vi o Sagrado é testemunha.
A Natureza, mais velha dos que os tempos
E acima dos deuses de Ocidente e Oriente,
Desperta num estrépito de armas
E do Éter até o fundo dos abismos
Segundo firme lei, nascido, como outrora,
Do Caos sagrado, sente o entusiasmo,
O criador de tudo, renovar-se.
E, como brilha um fogo nos olhos do homem
Que nutre alto desígnio, assim também
O novo signo, os feitos do mundo de agora
Acendem um fogo na alma dos poetas.
E o que outrora aconteceu, mal percebido,
Torna-se agora notório
E no disfarce de servos sorridentes
A nos lavrar o campo, enfim reconhecemos
As forças vivíssimas dos deuses.
Perguntas onde estão? Seu espírito sopra
No canto se vem do sol, da terra morna,
Das tormentas do ar e de outras que,
Geradas nas entranhas do tempo,
Mais compreensíveis, mais cheias de sentido
Para nós, vagueiam entre céu e terra
E entre os povos, lembranças do espírito comum
Findando-se em paz na alma dos poetas.
Alma tocada de pronto e conhecida
Do infinito há muito, que freme à lembrança
E, acesa pelo raio consagrado,
Produz o fruto do Amor, obra de homens e deuses,
O poema que a ambos testemunha.
Assim, segundo dizem os poetas, caiu
Sobre a casa de Sêmele, que rogara
Vê-lo, o raio do deus, e a fez parir,
Fruto da tormenta, o Baco divino.
Por isso os filhos da terra agora podem
Beber sem perigo o fogo do céu.
Mas cabe a nós, poetas, enfrentar,
Cabeça nua, as tempestades de Deus,
E agarrar com nossas mãos o próprio raio
Do Pai e oferecer ao povo,
Encoberta em canto, a dádiva celeste.
Pois, como temos puro o coração
De criança e nossas mãos são inocentes,
Não nos queima o puro fogo do raio do Pai,
E, tocado fundo pela dor de um deus,
O coração persiste, eterno e compassivo.
A BELEZA
A beleza é própria das crianças,
Uma imagem de Deus, talvez, fiel.
Nela há paz e silêncio, uma aliança
Que nos anjos também é um laurel.
OS PRAZERES ...
Os prazeres do mundo desfrutei-os todos;
Foram-se, e há quanto tempo! as alegrias de moço.
Abril e maio e junho estão muito distantes.
Não sou nada; já não amo viver, como antes.
A PRIMAVERA
O dia acorda, o céu é magnificente,
Foi-se o turbilhão de estrelas lá de cima,
É na contemplação que o homem se sente,
O princípio do ano é tido em alta estima.
Nos nobres montes, os rios são fulgores,
Lembram coroas, nas árvores, as flores,
O jovem ano começa como em festa,
Com o melhor e mais alto o homem se apresta.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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