PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sábado, 9 de julho de 2016

FRIEDRICH HÖLDERLIN E SEUS POEMAS DA ERA PRÉ-ROMÂNTICA – PARTE IV

“Hölderlin manteria seu dom intacto mesmo na mais profunda loucura”

Os temas do divino e da utopia reaparecem agora na fase dos hinos, a qual sucede as elegias na poesia de Hölderlin. Temas que são tratados com ainda mais clareza, como no poema “Como num dia feriado”, tal que é um poema sobre o poeta, uma descrição poética da feitura que o poeta encarna, e que no seu traquejo com a linguagem, será a expressão de uma habilidade que, nesta altura da criação de Hölderlin, irá se tornar controversa ou incompreendida. Alturas incógnitas de Hölderlin que levará o grande filósofo Heidegger a lhe dedicar um ensaio de interpretação, filósofo que iria, no século XX, ser um dos maiores intérpretes da poesia de Hölderlin. E o fenômeno Hölderlin, também em sua loucura, irá ser uma expressão disfuncional que, decerto, terá no século XX seu estatuto na poesia de vanguarda, algo surpreendente, pois se fala de um poeta que viveu até antes de terminar o meio do século XIX.
O “dia feriado” do título representa a ideia mítica do retorno dos deuses à terra, descrição de um despertar da Natureza, pouso idílico, que é também uma potência anterior ao tempo e acima de todos os deuses, que é tomada de entusiasmo, cheio de Deus dentro de si, e que, miticamente, por sua vez, encarna o sopro criador de Dioniso. Hölderlin acende também “um fogo na alma dos poetas”, os quais, como vates que são, portanto, vaticinam o Advento, dom da profecia, aqui o futuro, e de outro, por tratar o mito, dom da memória, acendendo o passado, numa narrativa de origem, e também o dom da ação, acendendo o presente, pois tem a presença de “novo signo, os feitos do mundo de agora”, sendo que o fogo aceso na alma dos poetas pelo entusiasmo de Dioniso lhes faculta irem até o cósmico, é uma ascensão, uma narrativa mítica e transcendente, para reconhecer de pronto, tanto com o sol, como com a terra e a tempestade, as “forças vivíssimas dos deuses” presentes. Origem, profecia, ascensão, elementos que o poema vaticina, refunda e torna presentes com o dom final da palavra.  
Esse vislumbre panteísta, revelação da divina unidade do mundo, Uno filosófico, unio mystica, é também uma lembrança edênica, obnubilada pela consciência comum que dorme, que o comum dos homens esqueceu, mas que a memória fiel dos poetas guarda sempre viva, razão que leva à compreensão de que os poetas são guardiães da sabedoria e da palavra ancestral, pois na mitologia, por sinal, as Musas eram filhas da Memória. Mas, para alcançar a própria alma ou o entendimento extático que é dos iluminados pelo fogo do céu – o mesmo fogo que Prometeu foi roubar aos deuses, sendo punido por isso – e com este fogo chegarem à clareira do autoconhecimento e da decifração do mundo em sua totalidade, através da dádiva do poema, que é também revelação, não religiosa, mas de geração espontânea, fenômeno artístico e poético, e para alcançar a alma dos homens, devem os poetas pagá-lo, assim como Prometeu, ao preço do sofrimento, que é nada mais, falando de mito, o raio divino que fulmina, arrebata e queima poetas, assim como queimou Sêmele.
Os seus últimos grandes hinos, Hölderlin os compôs no limiar da loucura definitiva, era já, nas próprias letras apresentadas, o caminho evidente de um colapso. Daí alguns exegetas terem visto, já nas suas elipses violentas, e na produção de uma dicção consumada, por sinal, em aparente incoerência, as primeiras expressões de sua desordem mental. Mas isso, por outro lado, em nada prejudicou o valor intrínseco do que ele então escreveu, pois Hölderlin manteria seu dom intacto mesmo na mais profunda loucura, o que se comprovará nos relatos seguintes de sua história.
Tais bruscas elipses e suposta incoerência de discurso, ao contrário de uma loucura sem sentido, talvez até contribuísse para realçar o caráter de antecipador da modernidade que hoje lhe é reconhecido. Pois o cubismo poético de Apollinaire, por exemplo, irá explorar os efeitos de descontinuidade e simultaneidade das sensações através das famosas justaposições de versos ou grupos de versos sem vínculos de ordem discursiva ou lógica entre si, o que era nada mais do que levar ao extremo as elipses de Hölderlin, assim como o recurso à escrita automática, no surrealismo, para a produção de imagens de impacto dotadas de “absurdez imediata” levaria a igual extremo a desconexão lógica dos últimos hinos hölderlinianos. A linguagem disfuncional, por mais irônico e curioso que pareça, ganha adeptos no despontar do século XX, sendo um sinal de modernidade e de vanguarda. O que culminará na demolição da onipotência do sentido pelos dadaístas, loucos sóbrios e sedentos de futuro.
Foram contemporâneas da composição dos últimos hinos as traduções que Hölderlin fez de suas duas tragédias de Sófocles, Édipo-tirano e Antígona; as quais conseguiu publicar em volume por volta de 1804. Os entendidos da época caçoaram delas, pois  Voss, tradutor de Homero, perguntou em carta a um amigo: “Que me diz você do Sófocles de Hölderlin? O homem é mesmo maluco, ou finge sê-lo”. E Schelling, o filósofo que havia sido colega do poeta em Tubinga, escreveu a Hegel: “A versão de Sófocles mostra uma condição mental assaz decadente”.
A exasperada busca de equivalentes capazes de fazer justiça à riqueza dos matizes de significado do texto grego levou Hölderlin a forçar até o limite as possibilidades expressivas do alemão, enchendo-o de decalques, imitando giros sintáticos do grego, paralelizando-lhe a ordem das palavras, mesmo ao custo de violar a índole do alemão, uma exigência e rigidez que tornou o alemão disfuncional, uma tradução que de tão fiel decaiu o vernáculo e coerência do alemão, incompreendida de pronto nas primeiras impressões. No entanto, pela sua radicalidade e pelo seu vigor, essas traduções marcaram época. George Steiner as considera da “maior importância” por serem “o ato mais violento, mais deliberadamente extremado de penetração e apropriação hermenêutica de que se tem notícia” na história da tradução poética.
No mesmo ano de 1804 em que saíram publicadas suas traduções de Sófocles, Hölderlin conseguiu, por intercessão de seu amigo Sinclair, o cargo simbólico de bibliotecário da corte do landgrave ou príncipe Frederico V, que lhe havia anteriormente encomendado “Patmos”. Mas foi uma sinecura de curta duração; e logo Hölderlin perdeu este subsídio, e agora o poeta se deparava com um estado mental que piorava cada vez mais; sua decadência se tornava nítida, e um médico declarou, após examiná-lo em 1805: “sua loucura está-se convertendo em frenesi, e é impossível compreender-lhe a linguagem, que parece uma mistura de alemão, grego e latim”. No ano seguinte, Sinclair decide interná-lo numa clínica de Tubinga. A esta altura, com seus cabelos que já começavam a embranquecer; Zweig o evoca cambaleando então “pelas ruas de Tubinga, escarnecido pelos rapazes, cercado de estudantes que o ridicularizavam, estudantes que não souberam ver aquele espírito apagado através do invólucro trágico do corpo”.
No verão de 1807, de nada tendo adiantado o tratamento na clínica, ele é entregue aos cuidados do marceneiro Zimmer, de Tubinga, o qual, por admirá-lo desde que lera Hiperíon, se dispusera a tomar conta dele. Até o fim da vida o poeta irá viver em casa de Zimmer, confinado numa torre com vista para o Neckar e para a tranquila paisagem ribeirinha. As suas crises vão-se espaçando, e os passeios pela vizinhança o ajudam a acalmar-se. Para o simplório e bondoso marceneiro que o hospedava, ele tinha enlouquecido “não por falta de espírito, mas por causa do seu muito saber”; e diagnosticava: “Foi o entusiasmo pelo paganismo que o fez descarrilar, e todos os seus pensamentos se detiveram num ponto em torno do qual gira e gira sem descanso”. Mas Zimmer testemunha que o poeta, por outro lado, muito dócil, como uma criança, não lhe dava maior trabalho, pois servia-se sozinho à mesa, vestia-se e ia para a cama sem ajuda. E, o que era mais importante, além de distrair-se tocando flauta e cravo, continuou a escrever até o fim dos seus dias. Costumava oferecer pequenos poemas, compostos na hora com espantosa facilidade, aos seus raros visitantes, entre eles alguns dos escritores românticos alemães que o começavam a descobrir.
E falando agora dos tais “poemas da loucura” (aqui citados inteiros três: A Beleza, Os Prazeres e A Primavera) de Hölderlin, Roman Jakobson dedicou um minucioso estudo a estes poemas, pois ao se deter sobre a poesia daquele que considerava “o maior dos esquizofrênicos”, lembra Jakobson que as fórmulas de extremada reverência (vossa alteza, vossa graça, vossa santidade) com que o poeta sistematicamente tratava os seus visitantes tinha por objetivo manter o mundo exterior à distância, assim como a adoção de um cognome era “uma tentativa de excluir o próprio eu do colóquio e mais tarde até dos escritos”. Um exemplo do distanciamento de Hölderlin da vida prática, já em seu estado disfuncional para o mínimo de coerência discursiva, salvo na poesia, quando lhe foram levar, em 1826, um exemplar da edição de seus poemas, ele observou: “Os poemas são autênticos, são meus, mas o título é falso. Na vida, não me chamei Hölderlin, mas sim Scardanelli, ou algo assim”.
Obliterando a sua identidade real, Hölderlin se despersonalizava, ou melhor, assumia a plenitude da sua interioridade de criador, e leva ao extremo a ideia de criação poética, que, para ser um todo artístico, em todo o seu tempo, obnubila o outro tempo comum, e o torna disfuncional pelo resto da vida, fazia-se então Hölderlin uma encarnação do “logos poético do homem, isto é, da linguagem em sua pureza e simplicidade arquetípicas”, segundo Jakobson. E nos poemas da loucura, por sua vez, aparecem as paisagens tranquilas, edênicas, que tais últimos poemas pintam em pequenos quadros numa figuração de um mundo primevo de perfeição e felicidade, algo semelhante com o mundo platônico das ideias. Sendo mais um ponto de interesse de tais poemas o fato da crescente preferência, neles, pelo presente do indicativo, com o consequente abandono das relações modal-temporais, representando uma nova autocracia do presente, talvez revelando também um estado de alienação, pois Hölderlin vivia agora numa torre, isolado, ou ainda, nestes poemas pode ser que ele quisesse, como dissera muito antes o próprio, fazer “uma atualização do infinito”.
E, na transição dos hinos, última fase lúcida de Hölderlin, para os poemas da loucura, na verdade não há tal transição, há sim uma ruptura, pois tal é que não foi uma ruptura de sua poesia, mas de sua mente, o que radicaliza o fenômeno deveras. O curioso, nesses poemas do estágio mais adiantado da sua esquizofrenia, é eles nada terem em comum, sobretudo quando se fala em estilo de escrita, tanto na forma como no conteúdo e expressão, com os grandes hinos que o antecederam de mais perto. Em contraste com o verso livre e a dicção larga e copiosa dos hinos, os poemas da loucura são um abismo novo e tragicamente interessante, pois são, além de breves, uma ou duas estrofes no geral, metrificados e rimados como os poemas da fase da adolescência.
Poemas de loucura que revelam a busca de Hölderlin de um refúgio (agora na torre diante do Neckar), que são uma paz de espírito, uma simplicidade pueril e uma meiga melancolia que nada têm a ver com a exaltação dos hinos, pois em sua loucura Hölderlin fala do que foi e não é mais, mas está em paz com sua nova condição, embora trágica e muitas vezes melancólica. Era como se, dentro do homem em conflito com o mundo, o poeta estivesse reconciliado, a união divina apontada o tempo todo em seu trajeto poético agora se consuma em poemas lacônicos dentro de uma torre. Opunha-se assim, no nível linguístico, o monológico da fala lírica do eu ao dialógico da fala pragmática com outrem; um dos autores citados por Jakobson nota que “era maravilhoso o encanto exercido pela forma poética” sobre o Hölderlin doente, ao passo que, em prosa, ele “caía numa confusão total”. Ou seja, um “estridente contraste entre (...) a grave perda da capacidade de tomar parte em colóquios com outras pessoas, de um lado, e o gosto, mais que isso, a capacidade – estranhamente intacta e inclusive aumentada – de uma improvisação poética ágil, espontânea e consciente, de outro”.
Ao alternarem pinturas de calmas paisagens edênicas com reflexões acerca do significado da vida, os “poemas da loucura” de Hölderlin lembram um pouco a dicção icástica das “Canções de inocência e experiência” de William Blake, poeta pré-romântico inglês que, mais velho do que ele, foi seu contemporâneo. À semelhança de Hölderlin, Blake era também um visionário cheio de unção religiosa que admirava a Revolução Francesa e clamava contra os males da barbárie industrial; e muitos o tiveram não pelo grande poeta que de fato foi, mas como apenas um maluco pitoresco e inofensivo que se comprazia em conversar com os espíritos. Assim também, em seus últimos anos de vida, Hölderlin aparece como um “débil ancião, desdentado, que vai tateando com o bastão e levanta a mão descarnada dizendo versos, num mundo imperceptível para os que o veem”.  

COMO NUM DIA FERIADO ...

Como, num dia feriado, o lavrador
Vai de manhã ver seu campo após a noite
Abafadiça, em que raios refrescantes
Caíram o tempo todo, e longe ronca
Ainda a trovoada e o rio volta a seu leito,
E o solo reverdece
E de chuva do céu goteja
A vinha, alegre, e as árvores do bosque
Se erguem cintilantes sob o sol sereno __

Assim erguem-se num tempo favorável,
Elas que mestre algum, além da Natureza,
Prodígio onipresente, poderosa
E divina beleza, educou.
Por isso, nas quadras do ano em que parece
Ela dormir no céu, nas plantas ou nos povos,
Também se enluta o rosto dos poetas.
Parecem estar sós, mas vaticinam sempre;
Vaticinando é que ela própria dorme.

Mas eis o dia! Esperei-o e o vejo vir,
E do que vi o Sagrado é testemunha.
A Natureza, mais velha dos que os tempos
E acima dos deuses de Ocidente e Oriente,
Desperta num estrépito de armas
E do Éter até o fundo dos abismos
Segundo firme lei, nascido, como outrora,
Do Caos sagrado, sente o entusiasmo,
O criador de tudo, renovar-se.

E, como brilha um fogo nos olhos do homem
Que nutre alto desígnio, assim também
O novo signo, os feitos do mundo de agora
Acendem um fogo na alma dos poetas.
E o que outrora aconteceu, mal percebido,
Torna-se agora notório
E no disfarce de servos sorridentes
A nos lavrar o campo, enfim reconhecemos
As forças vivíssimas dos deuses.

Perguntas onde estão? Seu espírito sopra
No canto se vem do sol, da terra morna,
Das tormentas do ar e de outras que,
Geradas nas entranhas do tempo,
Mais compreensíveis, mais cheias de sentido
Para nós, vagueiam entre céu e terra
E entre os povos, lembranças do espírito comum
Findando-se em paz na alma dos poetas.

Alma tocada de pronto e conhecida
Do infinito há muito, que freme à lembrança
E, acesa pelo raio consagrado,
Produz o fruto do Amor, obra de homens e deuses,
O poema que a ambos testemunha.
Assim, segundo dizem os poetas, caiu
Sobre a casa de Sêmele, que rogara
Vê-lo, o raio do deus, e a fez parir,
Fruto da tormenta, o Baco divino.

Por isso os filhos da terra agora podem
Beber sem perigo o fogo do céu.
Mas cabe a nós, poetas, enfrentar,
Cabeça nua, as tempestades de Deus,
E agarrar com nossas mãos o próprio raio
Do Pai e oferecer ao povo,
Encoberta em canto, a dádiva celeste.
Pois, como temos puro o coração
De criança e nossas mãos são inocentes,
Não nos queima o puro fogo do raio do Pai,
E, tocado fundo pela dor de um deus,
O coração persiste, eterno e compassivo.

A BELEZA

A beleza é própria das crianças,
Uma imagem de Deus, talvez, fiel.
Nela há paz e silêncio, uma aliança
Que nos anjos também é um laurel.

OS PRAZERES ...
Os prazeres do mundo desfrutei-os todos;
Foram-se, e há quanto tempo! as alegrias de moço.
Abril e maio e junho estão muito distantes.
Não sou nada; já não amo viver, como antes.

A PRIMAVERA

O dia acorda, o céu é magnificente,
Foi-se o turbilhão de estrelas lá de cima,
É na contemplação que o homem se sente,
O princípio do ano é tido em alta estima.

Nos nobres montes, os rios são fulgores,
Lembram coroas, nas árvores, as flores,
O jovem ano começa como em festa,
Com o melhor e mais alto o homem se apresta.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29547/17/friedrich-holderlin-e-seus-poemas-da-era-pre-romantica-parte-iv


domingo, 3 de julho de 2016

BIBELÔ DE CARTINHAS

Alavanca:
tens edulcorado meus fotogramas?
Pois penso, de A à Z,
que um meio de carta e depoimento
é um caminho muito poeta
à fazer poesia!

Assim:
misto de carta,
com todos os ais possíveis,
com leves estampidos de sentir,
com todas as flores embrutecidas
dos solilóquios mil.

Misto de carta,
com papel borrado
de caneta estourada,
com vícios de pequenez
em pequenos frascos
de veneno.

Assim:
misto de depoimento,
veias saltadas,
parque biográfico,
ventos loucos de campanha,
noites armadas aos dentes da ilusão,
um pouco de febre,
um chororô nas horas perdidas,
e um sorriso ao nada
que diz estou vivo.

03/07/2016 Gustavo Bastos


POEMA-ESPELHO

Juro que não perco a hora,
pois têm milésimos que escapam.

O tempo brincante, deste lúdico
porvir, alimenta as minhas
antenas, busca no âmago os meus
esquemas, forma um aço puro
de correção, uma alma mais bruta
para o palco da vida.

E de três questões:
O que faço de mim?
O que faço dos outros?
O que faço do mundo?
Tenho três mil interrogações,
como um cabedal que constrói e destrói,
ao bel-prazer das platitudes.

Os asnos, fiscais de tudo,
pecam em demasia com fichas
numéricas, esquetes abobalhadas,
ficções de rodapé.

Eu, por meu turno,
digo que dos pés à cabeça,
sei de muito em poucos dias,
sei de tudo em poucas letras.

Mas, do aço ao vitral,
como uma esfera,
perco o milésimo e a hora,
sou um burro de carga
com água no joelho,
uma lhama mascando o terror,
doidivanas às turras com brumas,

levitando canções com sustos
em cartas náuticas,
devedor dos pagãos,
credor dos cristãos,
salvador dos ateus,

poeta sadio com bolhas na mão,
regente de saturno quando
estou nervoso e inquieto,
mensageiro de almas penadas,
carteiro por todas as ruas,
pesquisador de crânios,

volta e meia me dá a doida
e chego na hora.

03/07/2016 Gustavo Bastos

FRIEDRICH HÖLDERLIN E SEUS POEMAS DA ERA PRÉ-ROMÂNTICA – PARTE III

“Hölderlin apontava como caminho de unidade nacional o despertar intelectual e material da Alemanha”

Em “Canto do alemão”, repetindo conceitualmente o que foi feito em alguns pontos explicitado no seu clássico Hiperíon, Hölderlin critica a Alemanha de sua época por ainda não ter consciência nacional, por ainda não ter em sua grandeza despertado para um só destino. Nos estertores do século XVIII, que presenciara a revolução na França, a Alemanha ainda nem sonhava em unidade política, não passando de um monstro grotesco de aproximadamente 1800 territórios autônomos.
Por sua vez, Hölderlin apontava como caminho de unidade nacional o despertar intelectual e material da Alemanha, lembrado numa das estrofes do “Canto do alemão”: “Vi nas margens, em cidades nobres onde/As oficinas trabalham em silêncio/Florir o saber e o teu sol brando/Conduzir o artista à seriedade.” Aqui aparece a cidade pré-industrial, com o trabalho das oficinas, como anunciação de uma nova época vindoura que traria o saber para uma nação até então fragmentada. Em seu poema, no entanto, não prevalecem o chauvinismo militarista que viria a surgir na Alemanha unificada de Bismarck, mas um patriotismo de outra natureza: a grandeza que o poeta sonhava para a sua pátria era, ao contrário da unidade militar, a grandeza da paz, do saber, da fraternidade: “Terra do gênio mais alto, mais severo!/Terra do amor!”.
No poema “O arquipélago” já vemos o Hölderlin da fase das grandes elegias, tal poema que é o mais longo e mais sustentado de sua obra poética. Trata-se de uma peça de temática sobre a Grécia da Antiguidade, algo que é comum a vários poetas, o tema mítico, que hoje é apenas algo que se confunde com tiques de poetas perdidos nas ruas com seus livrinhos de bolso achando que são “novos Homeros”, poesia deslocada, para ser gentil, mas que por muito tempo agraciou a poesia do mundo.
O poema do arquipélago é um amplo sopro de épica, cujo destaque está nas estrofes consagradas à descrição da batalha de Salamina. O registro descritivo da épica, seu componente mítico por excelência, se junta aqui com os lamentos de elegia, na sensação clássica e comumente humana pelo que foi e já não é mais e com invocação de ode para saudar as glórias do passado e as promessas do futuro. As invocações do poema vão dirigidas ao arquipélago grego que lhe dá título, o Ancião ou Pai, testemunha da Idade de Ouro (aqui a ideia de origem, que anda ao lado da de perfeição), em cuja companhia vivem os Celestes.
O registro elegíaco serve a Hölderlin agora para evocar as sombras sagradas do passado numa libação fúnebre em que se manifesta a presença de fundo órfico, sua ida ao além e o conhecimento profundo que vem do mundo dos mortos, orfismo cujo título de iniciado Hölderlin se confere, e que também é irá se fundir com o dionisíaco, conforme se vê no poema “Pão e vinho”, também de caráter elegíaco, desta fase em que estava a poesia de Hölderlin, que pode ser considerada o clímax de sua poesia, antes do colapso que o colocaria nas trevas da loucura.
“Pão e vinho” foi escrito em 1801, e este é um dos poemas supremos de Hölderlin, o ponto no qual a mitologia grega, que hoje pode ser um tique funesto em alguns casos, para a poesia, ganha, naquela época da Alemanha, todo o sentido, pois Hölderlin sempre tematizara a Grécia diante da Alemanha, e não como um emulador canastrão de um Homero imaginário. Neste poema se alternam os pólos opostos, porém complementares, numa evocação indireta aqui a Heráclito, o filósofo do pólemos que vira harmonia, poema em que aparecem o dia e a noite, a lucidez e a embriaguez, a terra e o céu, o sofrimento e a alegria, numa série antinômica cuja conciliação se faz à luz do sentimento do divino, e tal divindade harmônica vai resultar exatamente na eclosão de toda uma dimensão latente da consciência, o alcance transcendente é um destes anelos das elegias míticas de Hölderlin, mas que sempre resultará na utopia da Alemanha nova.
Há, nesse empenho de conciliação, algo de órfico, na medida em que o orfismo representou, na religiosidade grega, a harmonização entre o apolíneo e o dionisíaco. Cabe lembrar que não há menção expressa ao orfismo na poesia de Hölderlin, os traços de orfismo que aparecem são certamente explicados pelas suas leituras gregas – Heráclito, Empédocles, Platão, Píndaro – onde eles estavam bem presentes. O título, por sua vez, explicita as duas espécies comungatórias do culto de Deméter-Dioniso.
E à “noite inspiradora” celebrada na segunda seção do poema estão ligados os motivos da embriaguez e da loucura de Dioniso, e o papel intermediário de Orfeu no conciliar a luz apolínea do intelecto, da ordem e da proporção, com a noite dionisíaca dos instintos, da loucura e da embriaguez. E no poema tal habilidade é transferida ao próprio Baco, quando diz deste que “concilia o dia e a noite”. O fulcro órfico de “Pão e vinho”, por sua vez, se estabelece principalmente no caráter soteriológico (salvacionista) da sua visão da proximidade e intersecção possível entre o humano e o divino, tendo seu momento de epifania na venturosa Grécia da Idade de Ouro, mais um clássico idílio da poesia em seu mito de origem, lugar onde se busca nada mais que a perfeição.
“Pão e vinho” vê o reinstaurador do divino entre os homens, este ponto em que há no mito de origem da idade de Ouro, na verdade, a conexão da Grécia antiga e arcaica com a Alemanha do futuro, o poeta Hölderlin vive o presente, mas sua poesia insiste em se comportar como visionária, apontando sempre para além, num resgate do divino no aquém, e há então a volta do mito como um religare (religião) do homem com o divino, e nisto com a poesia propondo a unidade da Alemanha vindoura.
Esse epíteto faz inclusive pensar na sucessão mítica de Zeus por Dioniso, anunciada nas escrituras órficas, como o advento de uma segunda e futura idade de ouro, assim como a primeira surgira também de uma sucessão do velho pelo novo: a de Cronos por Zeus. E, uma vez que Hölderlin já tinha diante de si o exemplo dado pela Revolução Francesa, quando o novo veio substituir-se dramaticamente ao velho, mais uma vez vem o ímpeto irresistível, que se torna anelo, na tentativa de estabelecer algum tipo de laço, por remoto que seja, entre a esperança no regresso dos deuses e a utopia política, horizonte de referência de Hiperíon, por exemplo, que é a obra representativa do nome Hölderlin.
E também neste poema e nesta trama do mito grego com a Alemanha unificada do futuro, por sinal, estaria possivelmente a nostalgia do ex-seminarista de Tubinga pela Parusia ou segundo advento: o pão e o vinho da transubstanciação que a liturgia cristã herdou da órfica fazem Cristo e Baco confluir na mesma figura messiânica do “filho do Altíssimo”. O resgate é utopia, aqui o mito de origem como perfeição da Idade de Ouro é a volta do divino como apontamento de realização de uma utopia futura, nada mais natural para um poeta, ainda mais quando se fala de fenômenos visionários.   

CANTO DO ALEMÃO

Oh sagrado coração dos povos, pátria!
Tão paciente quanto a muda Terra-Mãe
E incompreendida, se bem os estrangeiros
Do teu seio tirem o melhor.

Ceifam o teu pensamento, teu espírito;
Gostam de colher-te o racimo, mas zombam
De ti, vide disforme que corres
Pelo chão, indecisa e bravia.

Terra de um gênio mais alto, mais severo!
Terra do amor! Sendo embora eu um dos teus,
Muita vez chorei de raiva ao ver-te,
Sempre tola, negar a própria alma.

Mas não podes me ocultar tantas belezas;
Muita vez, de pé no claro monte, do alto
Dos teus ares, contemplei o verde
Do teu vasto jardim e te vi.

Percorri os rios teus, pensando em ti,
Enquanto o tímido rouxinol cantava
Sobre o vime flexível e o sol
Pairava contra um fundo sombrio.

Vi nas margens, em cidades nobres onde
As oficinas trabalham em silêncio,
Florir o saber e o teu sol brando
Conduzir o artista à seriedade.

Conheces os filhos de Minerva? Há muito
A oliveira é-lhes favorita; conheces?
Ainda vive, ainda reina entre os homens,
A alma ateniense e cisma, embora

O jardim sagrado de Platão não mais
Viceje à beira do rio, e um homem pobre
Lavre entre cinzas de heróis, e chore,
Sobre uma coluna, a ave da noite.

Oh sacro bosque da Ática! Ele feriu-te
Também com seu raio terrível, e tão cedo?
E ascenderam ao Éter, libertos
Pelas chamas, os que te animavam?

Mas tal como a primavera, o gênio vaga
De um país a outro. E nós? De nossos jovens
Algum haverá que não esconda
Um anseio, um enigma no peito?

Graças às mulheres alemãs! Guardaram
A alma afável das imagens dos deuses
E sua serenidade expia
A desordem má de cada dia.

Mas onde poetas a quem concedesse
O Deus, como aos nossos antigos, piedade
E alegria, ou sábios, como os nossos,
Frios, indômitos, insubornáveis?

Saudações pois a ti, nobre pátria minha,
Com um novo nome, o fruto mais maduro
Do tempo! Tu, última e primeira
Das Musas, Urânia, eu te saúdo!

Mas calas e tardas, e concebes uma
Obra alegre, que dê nova imagem tua
Que, nascida como tu do amor,
Fosse tão virtuosa quanto o és.

Onde estão teu Delos, tua Olímpia, a festa
Suprema em que nos encontremos todos?
Como, Imortal, adivinharia
Teu filho o que há tanto lhe preparas?

O ARQUIPÉLAGO

Retornam a ti as gruas? E os barcos, buscam novamente
Seu curso em tuas costas? E as brisas, sopram elas
A paz das tuas águas? E, atraído lá do fundo,
O golfinho aquece o dorso à luz nascente?
É tempo de florir na Jônia? Na primavera, sempre,
Quando o coração dos vivos se renova e o amor primeiro
Acorda nos homens as lembranças da Idade de Ouro,
É que eu venho a ti e em teu silêncio saúdo-te, Ancião!

Tu vives sempre, Potestade, e como outrora dormes
À sombra dos teus montes; com braços juvenis estreitas
Ainda a tua terra encantadora e tuas filhas, Pai!
Tuas ilhas florescentes, nenhuma delas se perdeu.
Creta aí está, e Salamina verdeja no ocaso dos loureiros;
Com raios à volta, eleva Delos, na hora do nascente,
Sua cabeça inspirada, e eis Tinos, Quios
Abarrotadas de frutos púrpura, e os outeiros bêbados
A verter o licor de Chipre, e de Caularia correm,
Como antes, regatos de prata até tuas antigas águas, Pai.
Ainda vivem todas, mães de heróis, as ilhas,
De ano em ano florindo, e quando às vezes, desde o chão
Do abismo,

Também os Celestes – as serenas forças das alturas,
Que da plenitude do poder trazem até a cabeça
Dos homens sensíveis o dia risonho, o doce langor
E os prenúncios -, eles também, os antigos companheiros,
Moram contigo como outrora, e amiúde, no crepúsculo,
Quando dos montes da Ásia chega o sacro luar,
As estrelas encontram-se nas tuas vagas
E resplandeces então de brilho celestial; enquanto
Elas gravitam, tuas águas se mudam, e ressoa
No teu peito o canto noturno dos irmãos lá do alto.
Quando o que tudo transfigura, o sol dos dias,
Miraculoso filho do Oriente, surge enfim
E todos os viventes num sonho dourado encetam
O que a cada manhã o poeta lhes apronta,
A ti, deus em luto, eles enviam sortilégio mais ridente
E sua luz amistosa não é ela própria tão bela
Quanto a coroa, sinal de amor que sempre, como outrora,
Ele entrelaça, recordando-te, aos grisalhos anéis do teu cabelo.
E não te envolve o Éter? E não regressam dele
As nuvens tuas mensageiras que te trazem o raio,
Dádiva dos deuses? Tu as mandas então correr as terras
Para que, na praia em fogo, os bosques ébrios de tormenta
Contigo ondulem e marulhem; para que, filho sem rumo
Chamado pelo pai, o Meandro de mil córregos
Fuja dos extravios, e o Caístro, da planície,
Acorra a ti em júbilo e, primo nato, o Ancião
Que por tanto tempo se guardou, o Nilo majestático
Vindo de monte longínquo, avance agora vitorioso,
Num fragor de armas te abrindo os braços anelantes.

Porém te sentes só; na noite muda, apenas o penhasco
Te ouve o lamento, e amiúde a alada nuvem,
Com raiva dos mortais, foge de ti rumando para o céu.
Pois já não vivem contigo os nobres favoritos,
Os que te honravam, os que com belos templos e cidades
Coroavam antes tuas praias; os sacros elementos,
Heróis em busca de coroa, estão sempre à procura,
No coração dos homens sensíveis, da glória que lhes falta.

(obs: o poema é longo, portanto, esta é a parte inicial para apreciação)

PÃO E VINHO
(a Heinze)

1
Dorme a cidade à volta; cala-se a rua iluminada,
E, ornados de tochas, partem os carros rumorosos.
Fartos do dia intenso, os homens vão-se repousar em casa,
E uma cabeça ajuizada pondera lucros e perdas
No conforto do seu lar; vazio de racimos, de flores,
De coisas feitas à mão, jaz tranquilo o operoso mercado.
Mas sons de música soam longe, nos jardins, por onde
Talvez toque um enamorado ou lembre um solitário
A mocidade, os amigos distantes; ouvem-se as fontes
Correndo, sempre frescas, junto aos canteiros perfumosos.
Numa surda alegria, replicam sinos ao crepúsculo,
E, atento ao curso das horas, um vigia as vai gritando.
Vem um sopro agitar o topo das árvores do bosque,
E também, vede! Silhueta de nossa Terra, a Lua
Secretamente surge; desdobra-se a noite inspiradora,
Cheia de estrelas e muito pouco preocupada conosco.
Cintilante, surpreendente, forasteira em meio aos homens,
Ela se eleva, melancolia e pompa, sobre os montes.

2
Maravilhosa é a graça da Altíssima, e ninguém sabe
Donde provém ela nem o que dela lhe caberá.
Eis como ela move o mundo e a alma esperançosa dos homens.
Sábio algum compreende bem o que ela prepara porque
Assim o determina o deus supremo, que muito te ama;
Por isso, em vez dela preferes o dia circunspecto.
Mas de quando em quando o olhar límpido ama também a sombra
E busca por gosto, mais que por necessidade, o sono;
O homem fidedigno, por gosto também, perscruta a noite.
Sim, não quadra mal oferecer-lhe coroas e cânticos
Porque a noite está consagrada aos insensatos e aos mortos,
Mas ela própria mantém sempre e sempre o espírito isento.
Todavia, cumpre-lhe ainda, para que, na hora hesitante,
Possamos em meio à treva encontrar algo palpável,
Propiciar-nos o esquecimento, a sagrada embriaguez, dar-nos
A palavra transbordante que, como os enamorados,
Seja insone, e taça mais plena e vida mais audaciosa
E a sagrada memória em vigília até o fim da noite.

3
Em vão calamos o coração no peito, o sentimento
Em vão o contemos, nós, mestres e aprendizes, pois quem
Iria impedi-lo, iria proibir nossa alegria?
O fogo divino também nos incita, dia e noite,
A ir adiante. Vem, pois, contemplar o aberto, buscar
Um bem que seja o nosso próprio, por distante que esteja!
Uma coisa é segura: por volta do meio-dia ou perto
Da meia-noite, existe sempre uma medida comum
Para todos, mas há para cada um um bem particular.
A buscá-lo vai cada um e chega até onde consegue.
Que da troça troce a alegre insensatez quando apossar-se
Repentinamente dos poetas na noite sagrada.
Vem para o Istmo, pois! Lá onde o mar aberto canta ao pé
Do Parnaso, e o brilho da neve envolve os rochedos délficos.
Lá no país do Olimpo, lá nas alturas de Citáiron,
À sombra dos pinheiros, no meio das vinhas, lá de onde
Chega o rumor de Tebas e Ismenos, no país de Cadmos:
De lá vem e para lá aponta de volta o deus vindouro.

(obs: o poema é longo, portanto, esta é a parte inicial para apreciação)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/29445/17/friedrich-holderlin-e-seus-poemas-da-era-pre-romantica-parte-iii