PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

sexta-feira, 7 de abril de 2017

REPUBLIQUETA

Bem-vinda república, que mal
lhe assoma? Como canalhas
lhe usurpam a face cândida?

Eu tenho que notificar os suicídios
enumerados como facas
nos boquirrotos de salão.

Fazer métodos de escrutínio
com os delatores de fancaria.

Proteger os sábios de suas inocências,
atacar os sádicos de sua insciência.

Vamos! Anacoretas com os bolsos cheios,
tirar do povo seu sustento,
dar aos apaniguados suas carteiras,
e aos amigos e filhos
o tesouro incalculado.

Vamos, que a hora é chegada,
a hora é esta!

Está posto:
todos os canalhas da república bananeira
comerão seus pesadelos depois da festa,
como esqueletos já depois
de estarem gordos.

07/04/2017 Gustavo Bastos

FIANÇA

Eu dizia à lua:
"Tu és branca e branda,
flor demoníaca."

E cada castelo de cratera
anunciava aos gritos:
"Estamos fodidos!"

O trabalho braçal é seco
e breve.
Os campos de batalha
estão dispostos
em camadas de tiro.

E tens em lua febril
o ardil do sol,
e tens em saturno anelando
o sonho, uma carta misteriosa
de criptografia entre
silêncios.

Faz de Júpiter um elmo pagão,
em todo trabalho de hefestos
que malha o ferro
como os gritos tontos
da anarquia.

Me faz lua sonhar,
enquanto o dia trabalha.

07/04/2017 Gustavo Bastos

LEVANTE CONTRA O ÓCIO

Levanta e anda!
À cada um, bem o sabeis,
as suas próprias vidas.

Destarte, o meio campo entre
os jornais e os anúncios,
a carta de despedida
é um mal menor,
todos estão assustados
com o ataque frontal
das armas.

Alumia este brio de extermínio,
como em novelas violentas
e filmes híbridos entre o tempo ido
e o tempo vindouro,
como poemas russos
na flor da revolução.

Levanta e anda!
Tuas contas estão como um negror aviltante
de guerra, o teu terço socorre a febre
montada nas dores de senzala,
corre e come o que tens!

À cada um os seus doces e amargos,
e todos os dias comemos farinha
com as mãos, e cada dia como um sopro
ganhamos e perdemos a canção.


07/04/2017 Gustavo Bastos

domingo, 2 de abril de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE I

“muitos se envergonham de admitir não ter lido um livro famoso”

INTRODUÇÃO

O livro de Ítalo Calvino “Por que ler os clássicos” contém artigos e ensaios do autor sobre o que ele considera os seus clássicos, e que são os escritores, poetas e cientistas que mais o marcaram em vários períodos da sua vida. Segundo Calvino, quando ele abre o livro e sua reflexão, os clássicos são aqueles livros que se pode dizer que : “Estou relendo ...” e nunca “Estou lendo ...”.
A reiteração tem um sentido muito importante, pois Calvino constata, e isso para qualquer adepto da leitura em geral é um fato inexorável, de que muitos se “envergonham de admitir não ter lido um livro famoso”. Mas isso é o fato principal e mais normal para todo grande leitor, pois para Calvino “bastará observar que, por maiores que possam ser as leituras “de formação” de um indivíduo, resta sempre um número enorme de obras que ele não leu”.
E Calvino exemplifica o drama, bem normal, quando nos diz: “Quem leu tudo de Heródoto e de Tucídides levante a mão. E de Saint-Simon? E do cardeal de Retz? E também os grandes ciclos romanescos do Oitocentos são mais citados do que lidos.” Diz que, embora Balzac seja muito lido na França, não acontece o mesmo na Itália, e que os leitores de Dickens neste país configuram apenas uma pequena elite fora da curva. E tal fato nos diz que a qualidade da leitura de um autor passa pela influência local, isto é, também cultural e que envolve identidades que são tanto geográficas como históricas.
E neste aspecto de sentido histórico, Calvino nos diz: “Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. No que temos esta valência tanto para os clássicos antigos quanto para os modernos. E a chave de leitura dos clássicos tem um quesito muito importante para Calvino, que é o de que a leitura direta dos textos originais é o recomendável, e não, como alguns supõem, sua bibliografia crítica, comentários e interpretações.
E um problema prático se apresenta, quando Calvino nos alerta com o seguinte: “não posso mais adiar o problema decisivo de como relacionar a leitura dos clássicos com todas as outras leituras que não sejam clássicas”. Tal problema vem com a hipótese de que “uma pessoa feliz que dedique o “tempo-leitura” de seus dias exclusivamente a ler Lucrécio, Luciano, Montaigne, Erasmo, Quevedo, Marlowe, o Discours de la méthode, Wilhelm Meister, Coleridge, Ruskin, Proust e Valéry, com algumas divagações para Murasaki ou para as sagas islandesas. Tudo isso sem ter de fazer resenhas do último livro lançado nem publicações para o concurso de cátedra e nem trabalhos editoriais sob contrato com prazos impossíveis. Essa pessoa bem-aventurada, para manter sua dieta sem nenhuma contaminação, deveria abster-se de ler os jornais, não se deixar tentar nunca pelo último romance nem pela última pesquisa sociológica. Seria preciso verificar quanto um rigor semelhante poderia ser justo e profícuo”. E sabemos, que nas condições atuais, este leitor privilegiado simplesmente não existe.
Um exemplo de leitor ideal Calvino nos dá com o escritor Leopardi, este que “dada a sua vida no solar paterno, o culto da antiguidade grega e latina e a formidável biblioteca doada pelo pai Monaldo, incluindo a literatura italiana completa, mais a francesa, com exclusão dos romances e em geral das novidades editoriais, relegadas no máximo a um papel secundário, (...) mesmo suas enormes curiosidades científicas e históricas, etc.” E vemos que hoje tal educação clássica como a do jovem Leopardi é impossível, pois para Calvino “sobretudo a biblioteca do conde Monaldo explodiu. Os velhos títulos foram dizimados, mas os novos se multiplicaram, proliferando em todas as literaturas e culturas modernas.”

ODISSEIA

Calvino, no livro então, abre sua compilação de artigos e ensaios com a Odisseia, e a coloca no contexto de uma narração épica do retorno, nos dizendo que “o início do poema, a Telemaquia é a busca de uma narrativa que não existe, aquela narrativa que será a Odisseia.” E o fato crucial é da propriedade da narrativa, que nos aparece fluida, pois há uma transmissão de tal órbita quando Calvino nos diz: “Menelau aparece com uma fantástica aventura: disfarçado de foca, capturou o “velho do mar”, isto é, Proteu das infinitas metamorfoses, e obrigou-o a contar-lhe o passado e o futuro. Certamente Proteu já conhecia toda a Odisseia de ponta a ponta: começa a relatar as aventuras de Ulisses do mesmo ponto que Homero, com o herói da ilha de Calipso; depois se interrompe. Naquela altura, Homero pode substituí-lo e continuar a narração.”
Ulisses, que ouve um aedo cego como Homero, ouve a Odisseia como o relato de sua viagem e retorno, e o herói explode em lágrimas; e depois se decide a narrar ele próprio. E Calvino nos dá a chave de leitura que fundamenta a Odisseia, que é o sentido de que “este retorno-narrativa é algo que já existe, antes de se completar: preexiste à própria atuação. Já na Telemaquia, encontramos as expressões “pensar o retorno”, “dizer o retorno”.”
E Calvino conflita isto com a ideia de perda da memória, na qual Ulisses se arrisca quando “uma das primeiras etapas da viagem contada por Ulisses, aquela na terra dos lotófagos, comporta o risco de perder a memória, por ter comido o doce fruto do lótus. Que a prova do esquecimento se apresente no início do itinerário de Ulisses, e não no fim, pode parecer estranho. Se, após ter superado tantos desafios, suportado tantas travessias, aprendido tantas lições, Ulisses tivesse esquecido algo, sua perda teria sido bem mais grave: não extrair experiências do que sofrera, nenhum sentido daquilo que vivera.”
E tal “perda da memória é uma ameaça que nos cantos IX-XII se repropõe várias vezes: primeiro com o convite dos lotófagos, depois com os elixires de Circe e mais tarde com o canto das sereias.” E Calvino conclui, e que é o sentido do retorno para este poema épico: “Ulisses não deve esquecer o caminho que tem de percorrer, a forma de seu destino: em resumo, não pode esquecer a Odisseia.” E a viagem e retorno de Ulisses tem o sentido não de uma regressão, mas sim de uma restauração.
Tais aventuras marítimas estão concentradas em quatro livros centrais da Odisseia, e que é uma rápida sucessão de encontros com seres fantásticos, e que fazem contraste com o restante do poema, em que, segundo Calvino “dominam os tons graves, a tensão psicológica, o crescendo dramático gravitando sobre um objetivo” e que “também aqui se encontram motivos comuns às fábulas populares, como o tecido de Penélope e a prova de arco e flecha, mas estamos num terreno mais próximo dos critérios modernos de realismo e verossimilhança: as intervenções sobrenaturais concernem somente às aparições dos deuses olímpicos, em geral encobertos por feições humanas.” E que configuram, por fim, uma fronteira que Calvino afirma como o fato de que “só nos resta atribuir as diversidades de estilo fantástico àquela montagem de tradições de diferentes origens transmitidas pelos aedos e depois desembocadas na Odisseia homérica, e que no relato de Ulisses na primeira pessoa revelaria seu substrato mais arcaico.”
E Calvino afirma também que mesmo antes da Odisseia e da Ilíada, Ulisses sempre fora um herói épico, e que tais heróis épicos não costumam ter aventuras fabulares do gênero do início da Odisseia, na base de conflito com monstros e encantos diversos. Mas como Ulisses está numa passagem de dez anos em exílio, tal recurso ao fantástico e sobrenatural é um modo de contar este exílio, e que, segundo Calvino, “para tal extrapolação dos territórios da épica, o autor da Odisseia recorre a tradições (estas, sim, mais arcaicas) como as peripécias de Jasão e dos argonautas.” E Calvino conclui, então, nos dizendo: “Portanto, constitui a novidade da Odisseia ter colocado um herói épico como Ulisses às voltas “com bruxas e gigantes, com monstros e devoradores de homens”, isto é, em situações de um tipo de saga mais arcaico, cujas raízes devem ser buscadas “no mundo da antiga fábula e até de primitivas concepções mágicas e xamanísticas”.” Portanto, as raízes da Odisseia e de sua narrativa estão no mais profundo recôndito do mundo arcaico, num tempo perdido da História e do mito. 

AS METAMORFOSES

Ovídio, na abertura das Metamorfoses, aproxima o mundo celeste dos deuses do mundo cotidiano romano, incluindo, como nos diz Calvino, seu “urbanismo, divisão em classes sociais, hábitos cotidianos”. E Calvino também afirma que Ovídio também faz isso “enquanto religião: os deuses mantêm seus protetores nas casas onde residem, o que implica que os soberanos dos céus e da terra tributam por sua vez um culto a seus pequenos deuses domésticos”.
As Metamorfoses de Ovídio nos apresenta um universo em que as formas estão densamente povoando o espaço, com um intercâmbio intenso de qualidades e dimensões, com o fluxo do tempo ocupado na proliferação dos contos e ciclos de contos que compõem a narrativa de Ovídio. Segundo Calvino “as formas e as histórias terrestres repetem formas e histórias celestes, mas umas e outras se entrelaçam reciprocamente numa dupla espiral”. Há, portanto, uma contiguidade entre deuses e seres humanos, pois são parentes dos deuses e objeto de seus amores compulsivos, e tal relação de contiguidade é um dos temas dominantes das Metamorfoses, com tal fusão incluindo também tudo o que existe, ou seja, fauna, flora, reino mineral, e até o firmamento, criando um espaço comum em que tudo se relaciona com tudo. Pois, para Calvino “a mescla deuses-homens-natureza implica não uma ordem hierárquica unívoca mas um intricado sistema de interações em que cada nível pode influir sobre os outros, mesmo que em medidas diferentes. O mito, em Ovídio, é o campo de tensão em que tais forças se defrontam e se equilibram”. 
Do Oriente, por exemplo, por meio do romance alexandrino, Ovídio absorve a técnica “de multiplicação do espaço interior à obra mediante os relatos encadeados uns nos outros, que aqui fazem aumentar a impressão de densidade, de aglomeração, de enredamento. Assim, continuamente se decantam nas Metamorfoses novas concreções de histórias”. E Calvino pontua: “a paixão que domina seu talento compositivo não é sistematicidade mas a acumulação, que anda junto com as variações de perspectiva, as mudanças de ritmo”.
As Metamorfoses configuram um poema em que tudo se sucede com rapidez, o ritmo acelerado de acumulação sem sistema é um caldo em que “cada imagem deve sobrepor-se a uma outra imagem, adquirir evidência, dissolver-se”. E também temos, por outro lado, os momentos em que o relato se torna menos célere, num andamento mais calmo, e neste momento Ovídio suspende o tempo numa apreensão dos detalhes que ele narra, numa descrição de coisas miúdas, e “mais adiante excitada e impaciente por saturar o maravilhoso da fábula com a observação objetiva dos fenômenos da realidade natural”. E, por fim, Calvino nos diz que Ovídio também prima por uma característica que é o seguinte: “uma lei de máxima economia interna domina esse poema aparentemente voltado para o dispêndio desenfreado. É a economia própria das metamorfoses, que pretende que as novas formas recuperem tanto quanto possível os materiais das velhas”.
Para Calvino “Ovídio quis dar uma sistematização teórica a essa filosofia natural, talvez em sintonia com o bem distante Lucrécio (...) mas talvez a única coisa que conte para nós seja a coerência poética no modo que Ovídio tem de representar e narrar o seu mundo: esta efervescência e acúmulo de histórias tantas vezes similares e sempre diferentes, em que se celebra a continuidade e a mobilidade do conjunto”. Portanto, Ovídio tem uma narrativa de conjunto, de multiplicidade, nunca de um sistema acabado, que é a junção dos elementos diversos e suas mudanças, isto nas relações intrincadas que dão o sentido principal de As Metamorfoses.  

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/33459/17/por-que-ler-os-classicosij-italo-calvino-parte-1


PÚCHKIN – POESIAS ESCOLHIDAS – PARTE I

“Púchkin também se destacou em prosa e na ficção”

BIOGRAFIA DE PÚCHKIN – PARTE I

Púchkin veio a falecer quando tinha apenas trinta e sete anos. O poeta e escritor, devido a isto, deixou várias de suas obras mais longas, em verso ou em prosa, inacabadas, e também muitos de seus poemas que ele dera início restaram desses apenas fragmentos. Mesmo com tais lacunas, o que Púchkin deixou como concluído e publicado foi suficiente para que muitos de seus contemporâneos o considerassem o maior dos poetas russos, e isso também nas gerações posteriores.
Púchkin também se destacou em prosa e na ficção, tendo em paralelo a ascensão de outro mestre como foi Nicolai Gógol’, e com outros vultos russos na senda literária surgindo nas décadas seguintes, mantendo, no entanto, a grande dimensão dos contos e relatos desse poeta e escritor, tendo a estima de também estar entre os grandes nestes gêneros literários.
Aleksandr Púchkin nasceu em Moscou no dia 26 de maio de 1799 e morreu nessa cidade no dia 10 de fevereiro de1837. Embora tenha improvisado comédias inspiradas em Molière, Púchkin ganha a sua estatura quando escreve seus primeiros versos perduráveis em russo: que podem ser exemplificados por obras como A janela, Manhã de outono, Aspiração, Aos meus amigos (“Os deuses ainda vos dão ...”), O prazer e A taça do brinde.
Em meio de sua ascensão literária, Púchkin frequenta os salões aristocráticos, e inicia divertimentos pouco sensatos, que envolvem alguns duelos. E de 1817 a 1820, Púchkin apresenta uma produção prolífica, resultando em novas obras como A *** (“Saber não queiras por que a alma abatida ...”), A N. Ia. Pliuskova, A Tchaadáev, Ao gênio familiar, A ondina (“Diante de um lago, entre carvalhos ...”), Tsárskoie Seló, Estâncias a Tolstoi, “Desvaneceu-se a diurna estrela ...” e “Sua beleza, que é serena ...”. E também é neste período que aparece seu primeiro grande poema: Ruslan e Liudmila, e que é um sucesso imediato.  
Na Bessarábia, Púchkin anda em meio a bailes provincianos, em que se envolve em casos amorosos, duelos, visitando feiras moldavas e acampamentos ciganos. É nesse período que vem a lume obras como O Prisioneiro do Cáucaso, Os Irmãos Salteadores, Os Ciganos, que são poemas influenciados fortemente por Byron, e é em 1823, a seguir, que Púchkin começa a produzir o que a crítica e os leitores vão considerar a sua obra-prima, que é o grande romance em versos Evguêni Onêguin, o qual envolve oito anos de trabalho e que se conclui sem, no entanto, se encerrar, pois Púchkin deixa a obra em aberto, e mesmo assim tal obra é importante, pois nos oferece um retrato preciso da sociedade russa de então, com personagens que possuíam grande verdade psicológica, com episódios de brilho intenso, com descrições da natureza de grande beleza, e que é a criação literária mais extensa de toda a obra dele, no que temos tal romance com lugar de vulto na literatura russa de todos os tempos, e também na literatura mundial. E é com esta obra que Púchkin rompe com a influência do romantismo byroniano, indo em direção a uma literatura realista.
Neste ínterim, Púchkin vai para Odessa, onde serve como funcionário de escritório do general-governador Vorontsov, aonde o escritor e a esposa de Vorontsov se apaixonam um pelo outro. Por sua vez, o marido, que esperava ser louvado pelo poeta, irrita-se e tenta humilhar Púchkin, no que a polícia intercepta uma carta do poeta, em que este afirma estar “tomando lições de puro ateísmo”. Vorontsov, então, exige o afastamento de Púchkin de Odessa, e o czar exclui Púchkin do funcionalismo e o exila numa aldeia, Mikháilovskoie, lugar em que Púchkin recebe vigilância policial e eclesiástica.
Durante o inverno, as autoridades lhe proíbem visitas e a sua saída da aldeia. E é em meio de tal solidão que Púchkin escreve, dentre outras coisas, o poema “Protege-me, meu talismã ...”, sobre um anel-amuleto que lhe fora dado por Elizaveta Vorontsova e, a pedido dela, queima as cartas de amor que ela lhe dirigira (ver a poesia A carta incinerada). E é também neste isolamento forçado que Púchkin escreve a tragédia Boris Godunov, a qual envolve fatos da história da Rússia do século XVII. No exílio, Púchkin se relaciona com a família Óssipov-Vul’f, em cuja fazenda reencontra Anna Petrovna Kern, que casara, aos dezesseis anos, com um general bem mais velho do que ela, e os dois se envolvem.

POEMAS:

MADONA : O poema começa com tais versos: “Eu nunca desejei ornar com profusão/De quadros dos de outrora a casa em que ora habito,/Para que o visitante, atento do perito/Ao laudo grave, a olhasse com superstição.”. O ornamento do habitat do poeta não pode ser objeto da superstição, no que segue o poema, que pinta a tela com a mesma profusão e inspiração do início: “Que da tela, qual se do céu, em direção/A mim, a imaculada e o salvador bendito/_ Ela, nobreza plena; ele, pleno saber –/Olhassem, de seu triunfo e de seu esplender,/Sós, sem anjos, de Sião sob a verde palmeira./Meus desejos estão cumpridos. O Criador/A mim te encaminhou, Madona alvissareira,/Que és o exemplo melhor do mais puro primor.”. A madona aparece como em quadro pintado, e o poema se associa nas suas cores como imagem religiosa e de arte consolidada.

A *** : O poema aparece-nos em tal visão: “Do instante mágico hei lembrança:/Diante de mim surgiste então/Qual anjo que aqui não descansa,/Qual ser de pura perfeição.”. A perfeição, cara a toda poesia, toma de tal o seu poder e a sua força, no que o poema segue: “Recluso em longínqua distância,/Meus dias se iam de arrastão,/Sem nume nem exuberância,/Sem pranto, sem vida ou paixão./Em minha alma ocorreu mudança:/Eis que outra vez surgiste então/Qual anjo que aqui não descansa,/Qual ser de pura perfeição./Vibra o peito em feliz instância,/E de novo comigo estão/O nume com a exuberância/Mais o pranto, a vida e a paixão.”. Com pequenos e sutis estribilhos, a beleza de musa e poema se fundem num todo harmonioso e bem fluido de um poeta que não peca por se inspirar.

O PRISIONEIRO : O poema, de tom angustiante, nos dá a imagem da prisão, em toda a sua dor: “Estou trás as grades de úmida prisão./Águia jovem criada nesta servidão,” (...) “Atrai com a olhada e o grito peculiar/E quer proferir: “Ponhamo-nos a voar!/Livres somos nós; é hora, é hora, irmão!”. A hora da libertação é a do voo, a tensão entre liberdade e prisão é o obvio da luta interior do poeta, que segue com o poema: “Ao ponto em que o azul aos mares se estendeu,/Ao em que passeamos, sós, o vento ... e eu!””. O vento vem ao poeta, e a sua libertação sonha no azul que nos mares se espalha, o vento é a liberdade deste poema prisioneiro.

PRESSENTIMENTO : O poema vidente nos dá então sua visão, no que segue: “Nuvens negras novamente/Reúnem-se sobre mim;/Com desgraça repelente/O fado ameaça meu fim ...”. O fado é o fim, mas o poema continua, como um resgate: “Talvez, inda resgatado,/Porto de novo hei de achar .../Mas pressentido a partida,/A hora da provação,/Apresso-me, minha vida,/A vir apertar-te a mão./Meu anjo meigo e sereno,/Dir-me-ás baixo teu adeus,”. A hora do adeus é a consumação de tal fado, fim de poema, que vem como memória suave, e com o tempo que já vai e se perde na imensidão: “E essa suave lembrança/Nesta alma substituirá/Força, ardor, brio e esperança/Do tempo que já vai lá.”.

A CARTA INCINERADA : O poema de amor se consome no fogo, e a carta é que vira cinzas: “Adeus, carta de amor, adeus; assim quis ela .../Muito procrastinei, muito à chama da vela” (...) “Basta, o instante chegou; arde, carta de amor.”. Eis o instante em que o que está escrito vira fogo, queima a carta e o poeta clama pela providência, no que segue o poema: “_ Ó Providência -, o lacre, em brasa já, derrete .../Cada folha se enrola, então cor de carvão./Era fatal! Na cinza a oculta e alma expressão/Branqueja ... O peito meu contrai-se. Cinza amada,/Refrigério infeliz de sorte desgraçada,/Serás sempre sobre este aflito coração.”. A aflição é a imagem do poema, e não há dor maior de amor do que esta carta sendo incinerada, quando tudo se exorciza.

MANHÃ DE INVERNO : O poema se abre em tais versos: “Há frio e sol; que manhã linda!/Tu, meu primor, dormes ainda./É tempo, ó bela, de acordar.”. A bela dorme, e o poeta a quer desperta, e o poema segue: “À noite, neve e tempestade/Houve e, no céu, névoa, verdade?” (...) “Tristonha estavas e sentada;/E ora ... à janela vem olhar:/Ao claro azul do céu que esplende,”. A mulher triste, e o olhar da beleza se espalha no azul do céu que brilha, no que segue o poema: “O bosque, só, sobressai, preto;/Verdeja, sob a geada, o abeto;/Sob gelo, eis a água a lucilar.”. E a imagem amorosa vem como em galope, num fim praiano de afeto poético e humano: “A deslizar na neve, amada,/Dar-nos-emos à galopada/Do equino e sua agitação./Iremos ver os nus e imensos/Campos, faz pouco inda tão densos,/E a praia de minha afeição.”.

POEMAS:

MADONA
Eu nunca desejei ornar com profusão
De quadros dos de outrora a casa em que ora habito,
Para que o visitante, atento do perito
Ao laudo grave, a olhasse com superstição.

De um só quadro eu quis ser, em minha habitação,
Eterno espectador, da faina ao lento rito;
Que da tela, qual se do céu, em direção
A mim, a imaculada e o salvador bendito

_ Ela, nobreza plena; ele, pleno saber –
Olhassem, de seu triunfo e de seu esplender,
Sós, sem anjos, de Sião sob a verde palmeira.

Meus desejos estão cumpridos. O Criador
A mim te encaminhou, Madona alvissareira,
Que és o exemplo melhor do mais puro primor.
(1830)

A ***

Do instante mágico hei lembrança:
Diante de mim surgiste então
Qual anjo que aqui não descansa,
Qual ser de pura perfeição.

Meio à magoa sem esperança,
Meio aos alarmes do que é vão,
Ouvi longamente voz mansa
E sonhei querida visão.

De anos e de tufões a dança
Varreu meu sonho temporão,
Não mais lembrei tua voz mansa
Nem tua celeste visão.

Recluso em longínqua distância,
Meus dias se iam de arrastão,
Sem nume nem exuberância,
Sem pranto, sem vida ou paixão.

Em minha alma ocorreu mudança:
Eis que outra vez surgiste então
Qual anjo que aqui não descansa,
Qual ser de pura perfeição.

Vibra o peito em feliz instância,
E de novo comigo estão
O nume com a exuberância
Mais o pranto, a vida e a paixão.
(1825)

O PRISIONEIRO

Estou trás as grades de úmida prisão.
Águia jovem criada nesta servidão,
Triste companheiro meu, a asa a agitar,
Sangrenta ração se dispõe a bicar.

Mas logo a rejeita, e olha através do vão
Qual se a meditar em minha solidão.
Atrai com a olhada e o grito peculiar
E quer proferir: “Ponhamo-nos a voar!

Livres somos nós; é hora, é hora, irmão!
Ao cimo que alveja trás o nimbo, então,
Ao ponto em que o azul aos mares se estendeu,
Ao em que passeamos, sós, o vento ... e eu!”
(1822)

PRESSENTIMENTO

Nuvens negras novamente
Reúnem-se sobre mim;
Com desgraça repelente
O fado ameaça meu fim ...
Desdenharei a desgraça?
Diante dela mostrarei
O orgulho, a paciência, a raça
Dos dias que atrás deixei?

Por procelas esgotado,
Outra aguardo sem piscar:
Talvez, inda resgatado,
Porto de novo hei de achar ...
Mas pressentido a partida,
A hora da provação,
Apresso-me, minha vida,
A vir apertar-te a mão.

Meu anjo meigo e sereno,
Dir-me-ás baixo teu adeus,
Fitando, ou não, esse ameno
Olhar nestes olhos meus;
E essa suave lembrança
Nesta alma substituirá
Força, ardor, brio e esperança
Do tempo que já vai lá.
(1828)

 A CARTA INCINERADA

Adeus, carta de amor, adeus; assim quis ela ...
Muito procrastinei, muito à chama da vela
Meu regozijo eu não me decidi a opor! ...
Basta, o instante chegou; arde, carta de amor.
Minha alma (pronto estou) outro ato não concebe.
As páginas, voraz, o calor já recebe ...
Inflamaram-se após instante ... e a fumaçar,
Sobem, perdem-se com minhas súplicas no ar.
A esvair-se a impressão fiel do anel-sinete
_ Ó Providência -, o lacre, em brasa já, derrete ...
Cada folha se enrola, então cor de carvão.
Era fatal! Na cinza a oculta e alma expressão
Branqueja ... O peito meu contrai-se. Cinza amada,
Refrigério infeliz de sorte desgraçada,
Serás sempre sobre este aflito coração.
(1825)

MANHÃ DE INVERNO

Há frio e sol; que manhã linda!
Tu, meu primor, dormes ainda.
É tempo, ó bela, de acordar.
Desvenda o olhar que o torpor cerra,
Encara a aurora sobre a terra
Qual fosses novo astro polar!

À noite, neve e tempestade
Houve e, no céu, névoa, verdade?
A mancha lívida do luar
Nos nimbos era amarelada.
Tristonha estavas e sentada;
E ora ... à janela vem olhar:

Ao claro azul do céu que esplende,
Tapete raro que se estende,
A neve jaz a fulgurar;
O bosque, só, sobressai, preto;
Verdeja, sob a geada, o abeto;
Sob gelo, eis a água a lucilar.

Faz-se ambarino o quarto inteiro.
Vem estalido prazenteiro
Do recém-aceso fogão.
Meditar perto dele é grato.
Mas dize; queres que, neste ato,
A poldra parda atrele, não?

A deslizar na neve, amada,
Dar-nos-emos à galopada
Do equino e sua agitação.
Iremos ver os nus e imensos
Campos, faz pouco inda tão densos,
E a praia de minha afeição.
(1829)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário:  http://seculodiario.com.br/33460/17/puchkin-poesias-escolhidas-parte-1