PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 6 de julho de 2020

HERZOG E SUA CONQUISTA DO INÚTIL NO CORAÇÃO DA FLORESTA

“se tratava tão somente de atravessar um navio sobre uma montanha de uma margem de rio à outra”

Herzog continua seu relato, acontece o primeiro encontro entre Fitzcarraldo e os índios, o rio Camisea, em alguns lugares, só tinha um metro de profundidade, a água ficava clara, o navio Huallaga continuava preso e imóvel no banco de areia, houve explosões de dinamite numa tarde, das quais os índios fugiram, e Herzog diz : “Fora de cena, eles se divertiram muito com a dinamite e queriam que eu lhes desse um pouco – alguns deles pescavam com ela já há anos, pela facilidade”.
E Herzog continua, logo após, a descrever mais uma curiosidade : “Hoje se espalhou pela equipe a febre do ouro, provocada por Huerequeque, Paul e Laplace, que pensaram em, para depois do filme, lavar ouro mecanicamente com uma plataforma flutuante no alto do rio Santiago. Todos agora sonhavam com isso”.
Herzog, na sua ideia insana de atravessar um navio por uma montanha, nos dá o relato deste trabalho : “Quando filmamos hoje no Narinho, o navio foi se deslocando de ré na curva ao lado do banco de cascalho e de início não reagiu com toda a força. Tínhamos descarregado o lastro porque a intenção era começar logo a puxar o navio montanha acima, razão pela qual a hélice estava alta demais e fora da água, já não sendo possível alcançá-la.
Então, em um impulso repentino, enquanto três barcos o empurravam pelo lado, o navio se virou e quase esmagou os barcos, que não conseguiram se soltar com rapidez suficiente, passando por cima do banco de cascalho. Galhos voaram pelo deque, cipós foram arrancados, e nós fomos levados para um ponto muito raso onde o Narinho teria ficado preso, mas, com um impulso vindo de todos os barcos, conseguimos empurrar o navio de volta para a curva, de onde provavelmente conseguiremos puxá-lo com cabrestantes até a outra margem, e lá ele vai começar a travessia por cima da montanha”.
Herzog enuncia as dificuldades : “O Narinho está encalhado na curva, e seu gêmeo, o Huallaga, descansa no pongo em uma ilha de cascalho que fica cada vez maior. O bom e o ruim têm aqui um indicador : nível do rio alto é bom; baixo, ruim. O Caterpillar precisa de novos filtros de combustível e óleo para o sistema de transmissão. O diesel fornecido aqui vem sempre misturado com uma parte de água. E nossa provação não para aí. Estou em contato tão imediato com os fundamentos do mundo real, que hoje pensei ter intimidade até mesmo com a morte. Se eu morresse, não faria nada além de morrer”.
Herzog prossegue, com mais descrições de dificuldades e bizarrices : “O Narinho está preso ao fundo de maneira sólida e pesada; o Huallaga também, o trator não sai do lugar, não chove, o rio corre lenta e silenciosamente, atingindo níveis cada vez mais baixos. Mas ainda podemos continuar trabalhando : cabana do Fitz, Don Aquilino no pongo, o início do rebocamento do navio. Kinski caminhou vestido com o figurino em torno das bananeiras da minha cabana e mandou Beatus fotografá-lo centenas de vezes entre as folhas exuberantes; depois os dois andaram mais alguns metros até a margem da floresta.
Lá K. encostou o rosto carinhosamente em um tronco e começou a copular com a árvore. É algo que ele considera erótico – ele, o homem natural e a perigosa selva. Acontece que até agora ele não avançou nem dez metros floresta adentro, e isso faz parte da sua pose. O seu conjunto para selva, feio por Yves St.Laurent, é muito mais importante para ele do que a própria selva, e eu lhe disse, como quem não quer nada, no momento em que ele esperava de mim que de bom grado concordasse que a floresta seria erótica, que não via ali nenhum erotismo – apenas obscenidade”.
Herzog segue seu relato, desta vez sobre os custos da filmagem e mais uma alusão aos ataques de fúria de Kinski : “Eu me assustei ao ver quanto dinheiro já gastamos, e W. simplesmente não queria acreditar nos números que Lucki apresentou, pois perdeu a noção de contexto.
Gritaria durante a filmagem hoje entre ele e K., depois da qual Miguel, o cacique, fez algumas leves insinuações sobre K., que todos os campas odeiam. Miguel me disse que eu devia ter percebido que seu pessoal se juntava em grupos e mantinha-se calado durante os ataques de fúria de K., mas eu não devia pensar que eles tinham medo dele – na verdade tinham medo era de mim, porque eu sempre ficava completamente calmo diante do colérico”.
Em Iquitos, Herzog continua seu relato, com mais curiosidades e mais uma descrição da personalidade colérica e vaidosa de Kinski : “Chegada de Lewgoy, Grande Otelo, Rui Polanah. Confusões noturnas com Lewgoy, que provavelmente pegou isangos na grama do campo de pouso em Camisea, como já ocorreu com Lucki, W. e Sluizer.
Os ácaros o fazem se coçar como um demente, e ele reclama que a coceira é por causa dos lençóis da casa de Paul, onde provisoriamente o hospedamos, já que o Holiday Inn está lotado. Quando a água acabou na cidade inteira e depois ainda ficamos sem luz, ele foi a pé para o Holiday Inn no meio da noite, aparentemente supondo haver ali as duas coisas.
Passamos a tarde nos figurinos, onde Kinski também estava e acabara de provar um alinhado terno azul-escuro, do qual gostou muito. Toda lógica, e o roteiro também, falava em favor do terno, mas quando o vi achei difícil reconhecê-lo como Fitzcarraldo; na imagem que internalizo, ele já se fixou como um arquétipo, com seu terno de linho claro e o grande chapéu de palha.
Eu lhe disse isso sem titubear, e percebi que ele estava a ponto de iniciar um ataque de fúria; então lhe expliquei que, quando eu visualizava Fitzcarraldo, muito tempo depois de o público ter assistido ao filme, ele precisava ser um conceito fenotipicamente firme, e o princípio férreo de um único terno branco só poderia ser quebrado no final, com um fraque – meu instinto sentenciava isso.
Hesitante entre a fúria e uma centelha de compreensão que se acendeu em K., de repente ele se mostrou bastante atento, e eu soube que ele me compreendera. Qualquer um que agora quisesse convencê-lo a usar o terno azul e lhe mostrasse a falta de lógica, ele expulsaria imediatamente com fúria intempestiva”.
Herzog faz um relato que é descritivo, na maioria das vezes, com eventuais divagações, faz um inventário do que é uma filmagem, contudo, em caráter sui generis, pois não é uma experiência de estúdio, mas uma aventura para dentro do coração da floresta, uma experiência única que reúne toda uma gama de características naturais e culturais, na obsessão somente possível de um diretor que não se sabe se é corajoso ou temerário, mas que, ao fim, nos entrega um resultado único de filmagem.
Não era a primeira ideia louca de Herzog ao filmar, já tínhamos tido isto com a filmagem de Aguirre, A Cólera dos Deuses, de 1972, e agora, em 1981, na filmagem de Fitzcarraldo, contudo, havia uma ideia mais extrema, que se tratava tão somente de atravessar um navio sobre uma montanha de uma margem de rio à outra.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.




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