Já de saída de
alguns ecos neoparnasianos, como em Sete poemas portugueses, no seu livro Luta
Corporal, Ferreira Gullar vai ao caminho novo, bem próprio e moderno, de deixar
os cumes de uma suposta alta poesia e de fato partir dentro das entranhas, sua
luta corporal, a presença do corpo e de seus movimentos, do esforço hercúleo de
expressão que vem do instinto, como se pode ver no poema que aqui transcrevo
(abaixo) que é o “Carta ao inventor da roda”, poema que me impressionou muito
quando me deparei pela primeira vez com a produção poética de Gullar. Sempre
que volto a lê-lo, este poema sempre aparece de súbito, como muitas vezes, ao
abrir aleatoriamente a antologia de Gullar, Toda Poesia, eu abrir exatamente
neste poema, não “ao acaso” ou sabe-se lá.
Gullar, muito
conhecido pelo esforço brutal que deu à luz “Poema Sujo” de 1975, numa situação
de exílio em que o poeta não sabia ainda se viveria mais para contar histórias
ou escrever, foi uma mistura do desespero e da obscuridade daqueles tempos, e
aqui venho com este poema em prosa que, como disse, me marcou por sua sujeira
tão belamente composta. Gullar já dá o arranque da questão posta diante do
inventor da roda como uma interpelação crítica que se transmuta em dilema e
abismo civilizatório, sua questão é a da produção do mundo que começou com esta
invenção.
“Carta ao inventor
da roda”: a luta corporal neste poema é intensa. A presença fisiológica
concatena com uma guerra retórica do poeta ao metaforizar com mestria todo o
símbolo cadavérico da roda e seus efeitos. O poeta dá à sua revolta com este
inventor um cabedal poético de motivações contrárias à invenção, pois o que se
coloca em todo o poema, para além da roda, é todo o mal civilizatório de suas
engrenagens, pois de todo o tempo, em toda a História e seu processo, o poeta
julga, em sua coda, que, não resta nada senão a ironia “numa saudação à tua
memória inexorável.”
CARTA AO INVENTOR DA
RODA
O teu nome está inscrito na parte mais úmida de meus
testículos suados; inventor, pretensioso jogral dum tempo de riqueza e
providências ocultas, cuspo diariamente em tua enorme e curiosa mão aberta no
ar de sempres ontens hojeficados pela hipocrisia das máculas vinculadas aos
artelhos de alguns plantígrados sem denodo. Inventor, vê, a tua vaidade vem
moendo meus ossos há oitocentos bilhões de sóis iguais-desiguais, queimando as
duas unhas dos mínimos obscurecidos pela antipatia da proporção inelutável.
Inventor da roda, louvado a cada instante, nos laboratórios de Harvard, nas
ruas de toda cidade, no soar dos telefones, eu te amaldiçoo, e principalmente
porque não creio em maldições. Vem cá, puto, comedor de aranhas e búzios
homossexuais, olha como todos os tristíssimos grãos de meu cérebro estão
amassados pelo teu gesto esquecido na sucessão parada, que até hoje tua mão
desce sobre a madeira sem forma, no cerne da qual todas as mecânicas
espreitavam a liberdade que viria de tua vaidade. Pois bem, tu inventaste o
ressecamento precoce de minhas afinidades sexuais, de minhas probabilidades
inorgânicas, de meus apetites pulverulentos; tu, sacana, cuja mão pariu toda a
inquietação que hoje absorve o reino da impossibilidade visual, tu, vira-bosta,
abana-cu, tu preparavas aquela manhã, diante de árvores e um sol sem aviso,
todo este nefasto maquinismo sevicioso, que rói meu fêmur como uma broca que
serra meu tórax num alarma nasal de oficinas de madeira. Eu estou soluçando
neste edifício vastíssimo, estou frio e claro, estou fixo como o rosto de
Praxíteles entre as emanações da ginástica corruptiva e emancipadora das
obliterações documentárias. Eu estou, porque tu vieste, e talhaste duma coxa de
tua mãe a roda que ainda roda e esmaga a tua própria cabeça multiplicada na
inconformidade vulcânica das engomadeiras e dos divergentes políticos em noites
de parricídio. Não te esquecerei jamais, perdigoto, quando me cuspiste o ânus
obliterado, e aquele sabor de alho desceu vertiginosamente até as articulações
motoras dos passos desfeitos definitivamente pela comiseração dos planetoides
ubíquos. Agora estou aqui, eu, roda que talhaste, e que agora te talha e te
retalha em todos os açougues de Gênova, e a tua grave ossada ficará à beira dum
mar sujo e ignorado, lambido de dia ou de noite pelas ondulações dum mesmo
tempo increscido; tua caveira acesa diante dos vendilhões será conduzida em
pompa pelos morcegos de Saint-Germain-des-Prés. Os teus dentes, odioso berne
deste planeta incorrigível, serão utilizados pelos hermafroditas sem amigos e
pelas moças fogosíssimas que às duas da manhã, após toda a sorte de
masturbação, enterram na vagina irritada e ingênua os teus queixais, caninos,
incisivos, molares, todos, numa saudação à tua memória inexorável.
Ferreira Gullar, do livro Luta Corporal (1950-1953)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/26109/17/ferreira-gullar-a-poesia-da-critica
Nenhum comentário:
Postar um comentário