“sua veia de militante servia à poesia mais do que o inverso”
Na poesia russa moderna, que tem no mestre Khlébnikov um dos
desbravadores de novos caminhos, e nisto Maiakóvski se fiou, neste caminho
aberto, temos também outras contribuições importantes, mais para a tradição, como
o representante do imagismo russo, Iessiênin, expressando ainda a velha Rússia
patriarcal e camponesa, no choque inevitável desta com a nova civilização
industrial que florescia na nova Rússia socialista, e que, de outro lado, vemos
Boris Pasternak se utilizando da nova linguagem de vanguarda, incorporando
novas expressões ao verso tradicional russo, com momentos autênticos, também,
de alguns poetas como: Eduard Bagrítzki, Óssip Mandelstam, Nicolai Zabolótzki,
Iliá Selvínski, Ana Akhmátova e Marina Tzvietáieva.
Mas, foi com Maiakóvski, sobretudo, em que uma marca pessoal
eclode com firmeza e direção precisa, com um vigor de expressão que nunca
primou pela suavidade, os versos de Maiakóvski são algo totalmente novo no
cenário russo de poesia do século XX, e isto sendo um tipo de expressão que
conduz o leitor a um todo coerente e organizado, isto é, Maiakóvski sabia o que
queria e sabia exatamente o que estava fazendo, com uma poesia descomunal e
hiperbólica. Como diz Boris Schnaiderman: “áspero e revoltado, exigente consigo
e com os demais, é bem o representante típico daqueles que ‘pisavam a garganta
do seu canto’, conforme se expressou em ‘A Plenos Pulmões’”.
E ainda continua o tradutor Schnaiderman: “revolucionário nas
concepções sociais e na forma que utilizou, desabusado, amigo do palavrão e do
coloquial, poeta das ruas, dos comícios, das salas de conferências, Maiakóvski
aparece-nos como um dos artistas mais coerentes que jamais existiram.” Ou seja,
seu ímpeto expressivo em forma de estrépito conduz a um caminho que, junto com
o barulho hiperbólico, temos um artesananto minucioso e completamente
autoconsciente, o que se confirma nos apontamentos que deixou sobre a sua
própria poesia, artigos de jornal, por exemplo, que eram, às vezes, escritos de
poética, se destacando, então, o conhecido “Como Fazer Versos?”, e seu caminho
não foi apenas da poesia, pois Maiakóvski fez ainda peças de teatro, roteiros de
cinema, cartazes, sendo facetas de um mesmo ímpeto criador.
Nos poemas que elenquei aqui, fechando a série Maiakóvski,
temos dois poemas mais longos, os “Incompreensível Para as Massas” e o
emblemático “A Plenos Pulmões” (o seu canto do cisne, certamente), e que vêm
com o vigor conhecido de Maiakóvski, pois ele foi fiel a uma forma e a uma
coerência de intenções até o fim, isto é, a plenos pulmões é também a plenitude
de um poeta com o domínio do que faz, ou seja, autoconsciente, nada mecânico,
um poeta para poetas e para o povo, na sua coloquialidade de rua e que nunca se
traiu quanto ao que almejava, sua liberdade de expressão que ia além da
conferência, apesar de seu panfleto ou cartaz, pois Maiakóvski era poeta, e sua
veia de militante servia à poesia mais do que o inverso, seus versos tinham
comprometimento político, isto é inegável, mas sua forma manteve o material
próprio da poesia, fazer arte.
INCOMPREENSÍVEL PARA AS
MASSAS
Entre escritor
e
leitor
posta-se o intermediário,
e o gosto
do
intermediário
é bastante
intermédio.
Medíocre
mesnada
de medianeiros médios
pulula
na crítica
e
nos hebdomadários.
Aonde
galopando
chega teu pensamento,
um deles
considera
tudo
sonolento:
__ Sou homem
de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
um verso
de
Nadson ...
O operário
não
tolera
linhas breves.
(E como tal
mediador
ainda se entende
Assiéiev!)
Sinais de pontuação?
São marcas de
nascença!
O senhor
corta os
versos
toma
muitas licenças.
Továrich Maiakóvski,
por que não escreve iambos?
Vinte copeques
por linha
eu lhe
garanto, a mais.
E narra
não sei
quantas
lendas
medievais,
e fala quatro horas
longas como anos.
O mestre lamentável
repete
um
só refrão:
__ Camponês
e
operário
não o
compreenderão.
O peso da consciência
pulveriza
o autor.
Mas voltemos agora
ao conspícuo censor:
Camponeses só viu
há tempo
antes da guerra,
na datcha,
ao
comprar
mocotós de
vitela.
Operários?
Viu
menos.
Deu com dois
uma vez
por ocasião
da cheia,
dois pontos
numa
ponte
contemplando
o terreno,
vendo a água subir
e a fusão das geleiras.
Em muitos milhões
para servir de lastro
colheu dois exemplares
o nosso criticastro,
Isto não lhe faz mossa __
É tudo
a mesma massa ...
Gente – de carne e osso!
E à hora do chá
expende
sua
sentença:
__ A classe
operária?
Conheço-a
como a palma!
Por trás
do seu
silêncio,
posso ler-lhe
na alma __
Nem dor
nem
decadência.
Que autores
então
há de ler essa classe?
Só Gógol,
só os
clássicos.
Camponeses?
Também.
O quadro não
se altera.
Lembra-me agora __
a datcha, a
primavera ...
Este palrar
de
literatos
muitas vezes
passa
entre nós
por
convívio com a massa.
E impinge
modelos
pré-revolucionários
da arte do pincel,
do cinzel,
do
vocábulo.
E para a massa
flutuam
dádivas de
letrados __
lírios,
delírios,
trinos dulcificados.
Aos pávidos
poetas
aqui vai meu aparte:
Chega
de chuchotar
versos para os pobres.
A classe condutora,
também ela pode
compreender a arte.
Logo:
que se eleve
a cultura do povo!
Uma só,
para todos.
O livro bom
é
claro
e necessário
a mim,
a vocês,
ao
camponês
e ao
operário.
1927
(Tradução de Haroldo de Campos)
1 – Nadson: O poeta sentimental S.I. Nádson (1862–1887). A
mudança do acento é do próprio Maiakóvski.
2 – Assiéiev – O poeta russo N.N.Assiéiev (1889-1963), amigo
de Maiakóvski.
3 – Továrich – Camarada.
4 – Datcha – Casa de veraneio.
A PLENOS PULMÕES
Primeira Introdução ao
Poema
Caros
camaradas
futuros!
Revolvendo
a merda
fóssil
de
agora,
perscrutando
estes
dias escuros,
talvez
perguntareis
por mim. Ora,
começará
vosso
homem de ciência,
afogando os porquês
num banho de sabença,
conta-se
que
outrora
um férvido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor.
Professor,
jogue
fora
as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar
De mim
de minha
era.
Eu – incinerador,
eu – sanitarista,
a revolução
me
convoca e me alista.
Troco pelo front
a horticultura airosa
da poesia –
fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim
virgem
vargem
sombra
alfombra.
“É assim o jardim de jasmim,
O jardim de jasmim do alfenim.”
Este verte versos feito regador,
aquele os baba,
boca em babador, __
bonifrates encapelados,
descabelados vates __
entendê-los,
ao
diabo!,
quem há-de ...
Quarentena é inútil contra eles __
mandolinam por detrás das paredes:
“Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
Ta-ran-tem-n-n ...”
Triste honra,
se de
tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
escarra a
tuberculose;
putas e rufiões
numa ronda de sífilis.
Também a mim
a propaganda
cansa,
é tão fácil
alinhavar
romanças, __
Mas eu
me dominava
entretanto
e pisava
a garganta
do meu canto.
Escutai,
camaradas
futuros,
o agitador,
o
cáustico caudilho,
o extintor
dos
melífluos enxurros:
por cima
dos
opúsculos líricos,
eu vos falo
como um
vivo aos vivos.
Chego a vós,
à
Comuna distante,
não como Iessiênin,
guitarriarcaico.
Mas através
dos
séculos em arco
sobre os poetas
e
sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta
lírico-amável,
que
persegue a caça.
Nem como
ao
numismata
a moeda
gasta,
nem como a luz
das estrelas decrépitas.
Meu verso
com
labor
rompe a mole
dos anos,
e assoma
a olho
nu,
palpável,
bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
por
escravos romanos.
No túmulo dos livros,
versos como
ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós a respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
mas terrível.
Ao ouvido
não diz
blandícias
minha
voz:
lóbulos de donzelas
de cachos e bandós
não faço enrubescer
com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
__
tropas em parada,
e passo em revista
o front das palavras.
Estrofes estacam
chumbo-severas,
prontas para o triunfo
ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
as
maiúsculas
abertas.
Ei-la,
a cavalaria do
sarcasmo,
minha arma favorita,
alerta para a luta.
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças
agudas.
E todo
este exército
aguerrido,
vinte anos de combates,
não
batido,
eu vos doo,
proletários do planeta,
cada folha
até a
última letra.
O inimigo
da
colossal
classe obreira,
é também
meu inimigo
fidagal.
Anos
de servidão e de
miséria
comandavam
nossa
bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
volume após volume,
janelas
de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
saberíamos o rumo!
onde combater,
de que lado,
em
que frente.
Dialética,
Não
aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das
batalhas,
quando,
sob nosso
projétil,
debandava o burguês
que antes nos
debandara.
Que essa viúva desolada,
-
glória –
se arraste
após os
gênios,
merencória.
Morre,
meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada
do assalto.
Cuspo
sobre o bronze
pesadíssimo,
cuspo
sobre o mármore
viscoso.
Partilhemos a glória, -
entre nós todos, -
o comum monumento:
o socialismo,
forjado
na refrega
e no fogo.
Vindouros,
varejai
vossos léxicos:
do Letes
brotam
letras como lixo –
“tuberculose”,
“bloqueio”,
“meretrício”.
Por vós,
geração de
saudáveis, -
um poeta,
com a
língua dos cartazes,
lambeu
os escarros
da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
fossilcoleante.
Camarada vida,
vamos,
para diante,
galopemos
pelo
quinquênio afora.
Os versos
para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de
madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara,
e basta, -
para mim
é tudo.
Ao Comitê Central
do futuro
ofuscante,
sobre a malta
dos
vates
velhacos e
falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.
Dezembro, 1929/janeiro,1930
(Tradução de Haroldo de Campos)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27691/17/maiakovski-os-poemas-de-som-e-furia-parte-iii
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