PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 14 de fevereiro de 2016

O LIVRO TIBETANO DA GRANDE LIBERAÇÃO

"A Doutrina do Vazio do Mahayana pode ser considerada o caminho para o Nirvana “

A REALIDADE
A realidade, para o Budismo Mahayana, é algo completamente diferente da noção ocidental, acostumados que estamos com a mente científica, isto é, objetiva e experimental, e esta diferença de visão (e de temperamento, se lermos os textos junguianos sobre o tema), como vem sendo colocada aqui nesta análise da Série Tibetana do trabalho realizado por W.Y.Evans-Wentz, e que finaliza agora com esta resenha (vide O Livro Tibetano dos Mortos e A Ioga Tibetana e as Doutrinas Secretas, que foram temas no caderno de cultura da Século Diário nos dois textos anteriores), tem feito desta reflexão um ponto dos encontros e desencontros entre o Ocidente e o  Oriente sobre a psicologia da mente, que envolve, por conseguinte, o Ocidente científico de um lado, e o Oriente místico, de outro lado.
Portanto, a realidade para o budista mahayana é algo ligado à Mente Única Supramundana, que transcende as aparências contidas no dualismo fenomênico que constrói a percepção comum que, no contexto Mahayana, e junto com todas as Escolas das Ciências Ocultas Orientais, não passa de algo da mente sangsárica (ou mundana), e que constitui o que eles chamam de o Brahman dos Rishis, o Sonhador de Maya, o Tecelão da Teia das Aparências, pura ilusão do ciclo de nascimentos e mortes.

A MENTE ÚNICA E O DESVELAMENTO DA REALIDADE
E a Mente Única Supramundana é o que se define (ou indefine, digamos) por ser o Vazio (Shunyata, em sânscrito), também conhecido como o Impróprio, o Não-nascido, o Incriado, O Informe, a Essência Primordial, o Inqualificado, que desintegra o Espaço e o Tempo, a Fonte Cósmica abstrata de onde vêm todas as coisas concretas e fenomênicas e na qual estas mesmas coisas desaparecem.
Padma-Sambhava, o Grande Guru, autor do tratado “Ioga do Conhecimento da Mente em sua Nudez”, desvela o ponto de vista do Budismo Mahayana: “Todo o Sangsara (o Universo fenomenal das aparências) e o Nirvana (o estado Não-manifestado, ou numenal), como uma unidade inseparável, é a nossa mente (no seu estado natural, ou não-modificado do Vazio)”. E, do mesmo modo, segundo o próprio Buda, o Nirvana é a transcendência sobre a transformação constante do que nasce e é formado, então o Nirvana representa também a aniquilação das aparências, a extinção da chama da sensualidade corporal, o despertar do Sonho de Maya, que é, por fim, o desvelamento da Realidade.

A DOUTRINA DO VAZIO
Buda, e ainda depois dele, Nagarjuna, este o compilador do Prajna-Paramita, o principal tratado Mahayana da Sabedoria Transcendental, buscavam, no entanto, evitar extremos de superstição para um lado, ou de niilismo para outro lado, pois um dos principais ensinamentos de Buda e Nagarjuna, por sua vez, é o conhecido Caminho do Meio, que com Nagarjuna ficou conhecido como Madhyamika.
É bom ter claro que na doutrina do Madhyamika, não temos a ideia de renúncia praticada pelos Theravada, por exemplo, que prega a renúncia total do mundo por causa da dor e da aflição, pois em Nagarjuna e no Mahayana a ideia de renúncia é mais simples e menos dramática do que para os Theravada, pois se trata apenas e somente de entender que o mundo fenomênico é tão irreal quanto os sonhos. Sendo, portanto, a doutrina fundamental do Budismo Mahayana a do Vazio. Representando a Doutrina do Vazio para o Budismo do Norte (Mahayana) o que é a Doutrina do Anatma (ou Não-Alma) para o Budismo do Sul.
E a essência universal que fundamenta a Doutrina do Vazio dos mahayanas e exposta no Avatamsaka Sutra, livro atribuído a Nagarjuna, também pode se manifestar em três aspectos que são símbolos dos Três Corpos Divinos (em sânscrito: Tri-Kaya). O primeiro aspecto é o Dharma-Kaya, Corpo Essencial (ou Verdadeiro), que é a Essência Primordial, Imutável, Amorfa, Eternamente Auto-existente do Bodhi, ou Existência Divina. O segundo aspecto é o Sambhoga-Kaya, ou o Bodhi Refletido, onde, nos mundos celestes, habitam os Budas da Meditação (em sânscrito: Dhyani Buddhas) e os demais Iluminados, neste caso quando estão encarnados em formas sobre-humanas. E o terceiro aspecto é o Nirmana-Kaya, Corpo da Encarnação, o Bodhi Prático, estado dos Budas quando estão na Terra.
A Doutrina do Vazio do Mahayana pode ser considerada o caminho para o Nirvana, que é, por sua vez, o Estado Transcendente à Dor, e por conseguinte ao Sangsara. O Vazio do Mahayana é o próprio Nirvana, que nos ensinamentos de Buda é aquilo que não é e nem deixa de ser, não é existência nem inexistência, não é ser nem não-ser, pois todas estas diferenciações não passam, como demonstra Nagarjuna, de dualidades ilusórias. O Nirvana, portanto, está além do discernimento intelectual, está além do intelecto, e por não ser relativo a nada, transcende a relatividade, passa para além de toda concepção e predicação, pertencendo ao Vazio. O intelecto, por sua vez, como o ente que produz as dualidades, é um reflexo, no mundo fenomênico das aparências, da Ipseidade, do Estado Verdadeiro, do Nirvana.

O ESTADO DE BUDA
O processo de desdobramento espiritual, do qual a humanidade, consciente ou inconscientemente, faz parte, é um processo de dissipação de Maya. Maya, por sua vez, significa literalmente ilusão, e para um Buda, Maya é a manifestação, tal como o Sangsara, da energia criativa que emana do Cosmos, falado nos tantras que é a Mãe Universal ou Shakti, pelo ventre de quem os corpos encarnados chegam à existência, e quando esta energia é latente, não temos Criação e, portanto, não há Maya.
A transcendência de Maya, ou a saída do reino da ilusão, é nada mais que a transcendência da dualidade e da transitoriedade do mundo fenomênico, que é, por outro lado, um retorno à primordial reconciliação, percepção da Mente Única (ou Consciência Cósmica), a reunião da parte com o Todo, emancipação do tempo, do espaço e da causa, atingimento pela existência condicionada do Ser incondicionado, do Estado de Buda.
No entanto, o esclarecimento necessário feito pelo caminho da Yogachara, por exemplo, é o de que o mundo fenomênico não é algo do qual se deve escapar, mas está ligado à própria essência, de forma simbólica, dessa onipotente e inefável essência da Mente Única em evolução eterna, sendo a vida na Terra, por sua vez, a Oportunidade Suprema, para a maior bem-aventurança que poderia acontecer aos seres sencientes.
Para o ioguim, no entanto, o processo normal para o fim da toda a evolução, é muito cansativo, longo e doloroso, e muitos destes escolhem um caminho mais curto, que é também um dos significados da Ioga. Pois assim fez o grande ioguim Milarepa do Tibete, por exemplo, que lutou para atingir o Objetivo Supremo numa única vida, para se tornar o mais cedo possível num guia para o melhoramento do mundo, pois ele jurou, com o voto de Bodhisattva, atingir o Nirvana não só para si mesmo, mas para, sobretudo, retornar ao mundo fenomênico de Maya, o reino da ilusão, e levar seus habitantes para a Suprema Altura do Nirvana também.

O QUE É A MENTE?
Já relativamente aceito pela nova visão quântica da ciência ocidental experimental contemporânea, devemos então considerar como um tipo de postulado científico uma verdade que já era desperta na antiguidade da sabedoria oriental, ou seja, o axioma de que a mente e a matéria, como sugere a “Ioga do Conhecimento da Mente”, por exemplo, são o que podemos chamar de aspecto ilusório da mente, concretamente manifestado.
E a mente em si mesma, da qual o Ocidente não vislumbra nada além do que a ciência conhecida afirma, posta a dominância da visão da neurociência materialista que a reduz ao epifenômeno cerebral, em detrimento até da própria psicologia ocidental, temos algo do texto da Ioga: “Em seu estado verdadeiro (de primordialidade imutável e amorfa), a mente é nua, imaculada, feita de nada, ser do Vazio, clara, vácua, sem dualidade, transparente, intemporal, não-composta, desimpedida, incolor (ou destituída de característica), não perceptível como uma coisa separada, mas como a unidade de todas as coisas, embora não composta por elas, de um só critério (isto é, do Vazio, da Ipseidade, da Realidade última), e transcendente à diferença.”
Do ponto de vista da ciência ocidental, especificamente da dinâmica e da física, a Mente Única é a única origem da energia, o dínamo único do poder universal, o iniciador das vibrações, a fonte desconhecida, de onde procedem os raios cósmicos e a matéria em todos os seus aspectos eletrônicos, como a luz, o calor, o magnetismo, a eletricidade, a radioatividade, ou tal como as substâncias orgânicas e inorgânicas em todas as suas múltiplas aparências, visíveis e invisíveis, incluindo aí todos os reinos da Natureza, de onde se cria, por sua vez, da Mente Única, toda a lei natural.
E quando, como ensina o texto da ioga, a mente atinge o seu Estado Verdadeiro, despida da ilusão de Maya, e fica nua, é como Brahman, o Quiescente, num sono sem sonho, em Samadhi, e o mundo, então, é dissolvido por um estado de Máxima Vigília. E, em relação à noção de sangsara, por exemplo, se a Mente Única fizesse parte da essência do tempo, estaria sujeita à transitoriedade e a dissolução, se fizesse parte da essência do pensamento, não seria, por sua vez, a Quiescência, e se fosse uma coisa, se partilhasse literalmente da existência, estaria, por fim, sujeita ao nascimento e a morte. Por conseguinte, a Mente Única é intelectualmente incognoscível.
Assim sendo, o Guru Príncipe Shri Singha, da antiga Pegu, em Burma, disse a seu discípulo Padma-Sambhava: “Ninguém ainda descobriu a Causa Primária nem a Causa Secundária. Eu mesmo não fui ainda capaz de tal, e vós, da mesma forma, vós, Nascido-do-Lótus, também falhareis nisso.” Então, como poderá o homem solucionar o enigma da existência? Os Budas ensinam simplesmente que apenas ao transcender a existência humana, deixando de existir sangsaricamente, é que se recobra a consciência do estado precedente de liberdade, isto é, o homem não pode solucionar o problema de estar agrilhoado à existência sem alcançar esta liberdade de reconciliação na Mente Única, o Vazio, o Nirvana, ou Transcendente Atman dos Brahmins, o Moksha Brâhmico (ou Mukhti), o Completo Despertar do Estado de Buda.
Nagarjuna e Ashvaghosha, os Patriarcas da Escola Mahyamika, chamaram esta Realidade além-da-Natureza de Vazio (em sânscrito: Shunyata), Asanga, o fundador da Escola Yogachara, chamou-a de o Conhecimento Básico ou Original (em sânscrito: Alaya-Vijnana), a consciência transcendente da Mente Única, pois percebê-la é alcançar o Nirvana, desperto do Sonho ou ilusão de Maya do mundo fenomênico e transitório de nascimentos e mortes. Como ensina este tratado de ioga, o Conhecimento da Mente Única parte do conhecimento de si mesmo, como já ensinava, na Grécia Antiga, o Oráculo de Delfos, pois é quando o homem funde ioguicamente a sua consciência microcósmica e mundana à Consciência macrocósmica supramundana, ele deixa de ser homem e se torna Buda, e o ser individual alcança a Consciência Cósmica no seu estado primordial, no cerne da Realidade.

A SABEDORIA ESTÁ NO DHARMA
A Sabedoria Divina, ou Absoluta (em tibetano: Shes-rab), por sua vez, de acordo com o Mahayana, manifesta-se ou é apreendida de três maneiras: ouvindo o Dharma, refletindo sobre o Dharma, e meditando sobre o Dharma. Pois é o Dharma, ou Verdade, que é transcendente à aprendizagem, que ensina a Sabedoria e dá condições ao discípulo de discernir o verdadeiro do falso, o transitório do eterno, a mente humana finita, também identificada com o intelecto, da Mente Única Cósmica e Supramundana, podendo alcançar o Nirvana, que é a Quiescência do Estado de Buda que reside no Vazio (Shunyata). Pois, por fim, são aqueles que trilham o caminho da Sabedoria contida no Dharma que podem, propriamente, transcender todas as ilusões do mundo fenomênico, ficando indiferentes ao prazer e a dor, como nada mais do que dois extremos de um dualismo já superado pela Doutrina do Vazio.

BUDISMO TÂNTRICO
Padma-Sambhava surgiu como uma emanação tântrica ou reencarnação do Buda Gautama, tendo sua influência sobre o Budismo em todo o Tibete, Mongólia, China, Nepal, Cachemira, Butão e Sikkim, sendo fundamental na formação do Budismo Mahayana, e teve reflexo na sua própria esfera do Tantrismo, assim como Nagarjuna foi fundamental na forma dada à Doutrina do Vazio, tal como foi demonstrada no cânon Prajna-Paramita.
O Tantrismo, por sua vez, é muito pouco conhecido de onde surgiu, tanto no seu aspecto hindu como budista, sendo objeto de pura especulação as questões de sua origem. A Escola Yogachara pode ser considerada, a fortiori, como um estímulo importante ao Budismo Mahayana como um todo, pois se originou com Asanga, um monge budista de Gandara (agora Peshawar), no noroeste da Índia, e de outro modo, o conhecido método de atingir a união do êxtase com a Mente Única conhecido como ioga, que teve seu primeiro sistema com o Yoga Sutras de Patanjali, sistema que se tornou o fundamento do Yogachara, pode ser considerado uma das origens conhecidas do Tantrismo. E o Tantrismo, por sua vez, é definido como uma escola esotérica de ioga aplicada de modo prático, e que tem sua divisão evidente entre o Brahmanismo esotérico e o Budismo Mahayana esotérico.
Uma das características distintivas do Tantrismo é a personificação dos aspectos duais das forças procriadoras da Natureza, Shakta, que representa o aspecto masculino (ou positivo) e Shakti, que representa o aspecto feminino (ou negativo). Como resultado desta influência tântrica, temos que, dentro do Mahayana, surgiram duas escolas, a Vajrayana e a Mantrayana, que são uma mistura da antiga Escola Yogachara.
E o responsável pela introdução do Budismo Tântrico no Tibete foi Padma-Sambhava, durante a segunda metade do século VIIII. E foi na segunda metade do século X que a forma Kalachakra do Tantrismo foi mais ou menos introduzida e desenvolvida no norte da Índia, na Chachemira e no Nepal, uns dizendo que a doutrina Kalachakra surgiu na misteriosa terra secreta de Shambhala. E, com o tempo, o Kalachakra se tornou um sistema próprio do Budismo, colocando o culto do Adi Buda (ou Buda Primordial) em seu cerne, o que na Índia ganhou variedades de culto com Shiva ou Ganesha na posição do Adi Buda.
Uma fonte relativamente especulativa pode nos colocar diante de uma outra origem para o sistema Kalachakra, a qual pode estar, ainda, na religião antiga do Tibete, pré-budista, do Bön. Podendo nos levar à conclusão de que havia algo originário do Kalachakra no próprio Tibete e que ganhou ares, digamos, mais oficiais, com a introdução na forma do Tantrismo de Padma-Sambhava.
E fontes documentais tibetanas podem provar tal associação do Kalachakra, por sua vez, com a religião primitiva do Bön, como, por exemplo, na exposição contida no Bardo Thodol e no texto do rito Chöd, tal rito que é apresentado no Livro V de A Ioga Tibetana e as Doutrinas Secretas de que, bem antes do surgimento do Budismo Tântrico Tibetano, na antiga fé Bön, do Tibete, já havia um culto elevado aos demônios, dos quais o To-wo e o Drag-po (que correspondem ao Bhairava e ao Heruka do Tantrismo Hindu) são grandes representantes. E, dentro da demonologia, por sua vez, elaborada com detalhes na fé Bön, podemos ainda identificar os protótipos não só das Deidades Iradas como também das Deidades Pacíficas do Tantrismo Tibetano.
Por fim, a forma do Tantrismo hoje mais evidente no Tibete é o Vajrayana, ou “Caminho do Raio Indomável dos Deuses.” E se falarmos do Tantrismo, no que ele representa para a evolução do Budismo Mahayana, podemos dizer que, independente de onde se originou o Tantrismo, sua influência sobre o Budismo Mahayana foi de primeira ordem sobre todas as suas fundações.
O Tantrismo, para completar, ensina a compreensão e a sublimação da força ativa reprodutiva, se opondo à sua supressão forçada, pois considera esta uma força importante da Natureza, e que nela tem-se, para o Tantrismo, o nascimento equilibrado com a morte, mantendo em circulação a corrente do Prânico Rio da Vida, até à Emancipação Final do Estado de Buda. E é por esta razão que, também, o Tantrismo propõe uma ciência do sexo, tal como o falecido Sir John Woodroffe (cujo pseudônimo era Arthur Avalon) sugeriu em suas obras “O tantra da grande liberação”, “O poder da serpente” e “Shakti e Shakta”.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/27290/17/o-livro-tibetano-da-grande-liberacao       

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