Um estudo profundo e eu lhe anotei os hemistíquios, uma febre obnubilada sob a sombra e o campo vasto que fremia entre o ventre e a cabeça, um mar de poesia se abria, como em toda nota sol vigorosa, passei ao relento e a chuva caía aos cântaros aos borbotões, torrencial, trevosa, tonitruante.
Avisei aos camponeses que a hora do martírio havia passado,
em cada gesto de foice o vinho na cara seca do sol, meu frêmito, o espasmo, a
sede, cada canto silvestre, a pérola, o mármore, cada sonho e cada poema como
um suspiro que cai exangue diante da lama dos dias.
Sim, os estudos críticos avançavam, da plêiade o topázio
brilhava em berilo, como toda astúcia, a esmeralda renascia forte, verde neste
campo de ambrosia, cada fastígio como um enigma, e todos os rios castanhos na
bela queda do estro, um estrondo quando cai a cachoeira, a correnteza era
misteriosa, todos os ídolos do passado acordavam neste nascedouro de
ressurreição, eu e o poema nos entendíamos, toda a escrita flui nesta
intimidade abissal.
O poema estudava a si mesmo, se media e se fazia, como um exercício
físico, um exame de seu próprio corpo e de sua potência, vi, venci, na luta do
campo de marte matei um bárbaro, ele sangrou sob a minha espada, lhe retirei as
tripas e joguei aos abutres, como gritei na noite de verão, como um astro na fúria
de seu show, como um presidente que acabara de se exaltar num comício.
O rio castanho com todo o seu fulgor era fogo e era
furibundo, descia ao mar com a certeza dos espíritos inteiros, completos, bem
estudados, bem testados, conhecedores de todos os venenos e de todos os
antídotos, como o poema deve se conhecer, para que o poeta não o tropece, não o
derrube, o levante como um corpo, e não se coloque em seu caminho, lhe conduza
como rio castanho que é.
Na luta violenta da noite, se matavam os suicidas, matavam os
assassinos, brigavam os beberrões, choravam os desiludidos, roubavam os
delinquentes, corriam os perdidos, passavam frio os mendigos, e os poetas nada
sabiam da noite, apenas viviam a noite, como profetas de fancaria sobre
estrelas que moravam em suas cabeças de abóbada, na verdade com suas almas como
vinhos embriagados, repetindo ladainhas sobre satori para parecerem cool,
imitando beats como se fosse a glória.
Joguetes alucinavam, eu joguei o carteado como um furor de
cada choque em meu braço e meu blefe, vi a passagem ao céu firmar um canto
estrelado sem pestanas, sem peias, sem ornamentos, apenas um bel canto depurado
como um som do coração, tal o poema que pensei, ou melhor, senti.
Assim, depois, penso em fazer de novo estas astúcias de
abóbada, de páramo, ou talvez pensar ao rés do chão, cavando da terra meu sumo,
e pensar que do mundo da vida, a colheita é farta para quem prorrompe de si
tudo o que tem, pense : os poemas não nascem de seu capricho, eles surgem de
sua inteligência, mas nada vem, a não ser de tua vontade potente e soberana de
querer tudo fazer, assim tua inteligência se torna vontade, e tua ideia, um
poema.
Dez meses passam na luta renhida dos corsários, como na
procissão, eu cansei de ver mártires, cansei de ver santos, cansei até de ver
os demônios imaginados da demonologia, passei ao largo das rezas, das
cantorias, dos delírios religiosos, vi o êxtase, mas logo o deixei para trás,
nada me interessa em mística, simplesmente me passa a ser enfadonho todo o
esforço inútil de cobrir de ouropéis o que se pode ver a olho nu, a maravilha
dos átomos em atividade e nada mais.
As visões caem aos cântaros, aos borbotões, são visões de
vinho, de céu na terra roxa, são visões de horizonte, eu estou em meu poema
como uma visão, vejo tudo em toda cor, neste átimo está a paralaxe do sol que
passa, neste silente campo, o aleph, sente deste sempiterno som todo som, e
deste exangue verso branco o vinho de sua tinta na cor de seu sonho, pense em
todos os dias vividos.
Pense em tudo, não se transborde como um sentido mole, prorrompa
como um estro forte, conduza o trabalho das flores, neste seu campo de trigo,
neste seu vasto horizonte, as visões não são delírios, são o plano de sua arquitetura,
a tessitura de sua biografia, a costura de seu caminho, violento em seu mar e
em sua vitória.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
Poema em prosa – 15/10/2020
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