PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

VISÕES

Um estudo profundo e eu lhe anotei os hemistíquios, uma febre obnubilada sob a sombra e o campo vasto que fremia entre o ventre  e a cabeça, um mar de poesia se abria, como em toda nota sol vigorosa, passei ao relento e a chuva caía aos cântaros aos borbotões, torrencial, trevosa, tonitruante.

Avisei aos camponeses que a hora do martírio havia passado, em cada gesto de foice o vinho na cara seca do sol, meu frêmito, o espasmo, a sede, cada canto silvestre, a pérola, o mármore, cada sonho e cada poema como um suspiro que cai exangue diante da lama dos dias.

Sim, os estudos críticos avançavam, da plêiade o topázio brilhava em berilo, como toda astúcia, a esmeralda renascia forte, verde neste campo de ambrosia, cada fastígio como um enigma, e todos os rios castanhos na bela queda do estro, um estrondo quando cai a cachoeira, a correnteza era misteriosa, todos os ídolos do passado acordavam neste nascedouro de ressurreição, eu e o poema nos entendíamos, toda a escrita flui nesta intimidade abissal.

O poema estudava a si mesmo, se media e se fazia, como um exercício físico, um exame de seu próprio corpo e de sua potência, vi, venci, na luta do campo de marte matei um bárbaro, ele sangrou sob a minha espada, lhe retirei as tripas e joguei aos abutres, como gritei na noite de verão, como um astro na fúria de seu show, como um presidente que acabara de se exaltar num comício.

O rio castanho com todo o seu fulgor era fogo e era furibundo, descia ao mar com a certeza dos espíritos inteiros, completos, bem estudados, bem testados, conhecedores de todos os venenos e de todos os antídotos, como o poema deve se conhecer, para que o poeta não o tropece, não o derrube, o levante como um corpo, e não se coloque em seu caminho, lhe conduza como rio castanho que é.

Na luta violenta da noite, se matavam os suicidas, matavam os assassinos, brigavam os beberrões, choravam os desiludidos, roubavam os delinquentes, corriam os perdidos, passavam frio os mendigos, e os poetas nada sabiam da noite, apenas viviam a noite, como profetas de fancaria sobre estrelas que moravam em suas cabeças de abóbada, na verdade com suas almas como vinhos embriagados, repetindo ladainhas sobre satori para parecerem cool, imitando beats como se fosse a glória.

Joguetes alucinavam, eu joguei o carteado como um furor de cada choque em meu braço e meu blefe, vi a passagem ao céu firmar um canto estrelado sem pestanas, sem peias, sem ornamentos, apenas um bel canto depurado como um som do coração, tal o poema que pensei, ou melhor, senti.

Assim, depois, penso em fazer de novo estas astúcias de abóbada, de páramo, ou talvez pensar ao rés do chão, cavando da terra meu sumo, e pensar que do mundo da vida, a colheita é farta para quem prorrompe de si tudo o que tem, pense : os poemas não nascem de seu capricho, eles surgem de sua inteligência, mas nada vem, a não ser de tua vontade potente e soberana de querer tudo fazer, assim tua inteligência se torna vontade, e tua ideia, um poema.

Dez meses passam na luta renhida dos corsários, como na procissão, eu cansei de ver mártires, cansei de ver santos, cansei até de ver os demônios imaginados da demonologia, passei ao largo das rezas, das cantorias, dos delírios religiosos, vi o êxtase, mas logo o deixei para trás, nada me interessa em mística, simplesmente me passa a ser enfadonho todo o esforço inútil de cobrir de ouropéis o que se pode ver a olho nu, a maravilha dos átomos em atividade e nada mais.

As visões caem aos cântaros, aos borbotões, são visões de vinho, de céu na terra roxa, são visões de horizonte, eu estou em meu poema como uma visão, vejo tudo em toda cor, neste átimo está a paralaxe do sol que passa, neste silente campo, o aleph, sente deste sempiterno som todo som, e deste exangue verso branco o vinho de sua tinta na cor de seu sonho, pense em todos os dias vividos.

Pense em tudo, não se transborde como um sentido mole, prorrompa como um estro forte, conduza o trabalho das flores, neste seu campo de trigo, neste seu vasto horizonte, as visões não são delírios, são o plano de sua arquitetura, a tessitura de sua biografia, a costura de seu caminho, violento em seu mar e em sua vitória.

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

Poema em prosa – 15/10/2020

 

 

 

 

 

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