PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 11 de outubro de 2020

CANÇÃO DO FOGO

A peste se expande, caio na febre montanhesa sobre estrelas fugidias, na horda que nasce deste poema, primeiro o líder montês anuncia que cortará a cabeça de seus soldados, ele está delirando uma festa, chama o sacrifício pelo seu nome próprio : a fogueira.

Vá, pois os demônios da noite tocam tambores em transe, a noite ferina que do fogo se haure, o peito intumescido do poeta que tem delírios na seta que lhe corta a carne, a dama brumosa que da chuva cai aos cântaros, sua chuva torrencial de sacrifício.

Em todos os ritos que o líder manda, as estrelas caem do céu, o vinho derrama sob as luzes da lua, rente aos ídolos de madeira, um escravo morre na sangria, os tambores entram em frenesi, um litofone ronca, os músicos ardem no fogo, é o delírio da noite em seu êxtase de poesia.

Agora o cinéfilo olha novamente, deste primeiro momento antes da Suméria, a horda some no tempo, passamos aos ritos de Gilgamesh, cada vício em todos este vítreos versos do primeiro poeta, qual um Téspis, para depois brindar Homero em seu documento sobre os micênicos, a Ática em polvorosa, Anacreonte e a lira.

Vamos, os beats ainda não chegaram, temos versos metrificados e enfadonhos, troqueus e espondeus para dar em bardos na cantilena do amor cortês, os bas-fonds ainda não eram mainstream, ainda não havia punks de boutique.

Bruma na suada cantata, vamos, os sete sonhos da curva, as quedas monumentais, as enormidades com que fizeram da epopeia uma saraivada de ignomínias, cantos porosos, um vidro se espatifa, o poeta sangra, se corta, quase morre, ele delira outro século, grita feito um touro, pede anarquia no meio acadêmico, em vão.

Eu vejo este cinéfilo, seu elenco é só de atores amadores, seu plano-sequência chama ao trabalho duro, seu set encanta e o roteiro é improvisado, o diretor filma fumando, charutos Cohiba, sim, o poeta tem suas suturas, tá todo remendado, suas cicatrizes são de quem viveu, ele pensa em se afogar, em nadar ao horizonte, ele pensa em tudo e não tem norte, seu livro é uma miscelânea de sonhos infantis.

Fica pronto seu livro infantil, Os Poemas da Plêiade, seus cantos anacrônicos não dão em nada, ele vai à praia, compra badulaques, sonha, acorda, toca violão, nada. O filme fica pronto, o diretor fuma filmando, nada vai dar certo, seu disco é flopado como um brio que morre logo, não dá em nada este filme improvisado emulando Cassavetes, até seu P&B ficou afetado, uma semana em cartaz e acabou.

Ponto e final, o poema que nasce da desordem é este vício beatnik, vento e Buda, satori e maconha, tudo em escrita automática, um furor literário sem eira e nem beira, ah, parou, porra, que é isso? As vontades literárias são um estrondo, vem cá, eu vi a noite quente nos tambores, desmaiei, estava bêbado, deitei no chão, dormi, acordei, ainda era noite.

Fui ao mar, a lua estava cheia, tudo claro, o mar refletia esta lua potente, nadei, vi tudo em um mar de esmeralda, quase saí voando, era um sonho, acordei suado numa manhã quente, sem janelas, encastelado como uma cobra na toca, pensei que era um tipo de bicho, vomitei.

Melhorei e peguei meu bus para mais uma aventura sem destino, fui ao morro cantarolar com as armas, meu vício virava fumaça, vi todos os meus conhecidos se arrebentarem, sobrevivi, este livro que deixo é só um documento vasto feito de sangue.

 

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Poema em Prosa – 11/10/2020

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com

 

 

 

 

 

 

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