Finalmente, depois de 27 anos de regime democrático no Brasil, foi estabelecida a Comissão da Verdade, que chegou com atraso, se comparada às comissões de outros países do Cone Sul. As questões desta comissão terão caráter de colher informações até agora ocultadas nos recônditos dos arquivos da ditadura. Ou seja, não terá caráter punitivo, uma vez que isto pode ser atribuição do Poder Judiciário e não da comissão.
Dilma deu posse aos sete integrantes da Comissão da Verdade: Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ); José Carlos Dias, advogado e ex-ministro da Justiça; Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada; Cláudio Fonteles, ex-procurador-geral da República; Paulo Sérgio Pinheiro, sociólogo; Maria Rita Kehl, psicanalista; e José Paulo Cavalcanti Filho, advogado. Com a instalação da comissão, os sete integrantes terão dois anos para apresentar um relatório com a narrativa e as conclusões sobre os crimes cometidos.
A Comissão da Verdade vai apurar violações aos direitos humanos cometidos entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar. O que fica claro, de antemão, é que o espaço exíguo de dois anos para o trabalho da comissão é insuficiente para a abrangência de anos que envolve seu trabalho, o que obrigará a comissão a se concentrar nos anos de chumbo, deixando um pouco de lado períodos de democracia breve como a dos anos 50. Não há tempo a perder, e a comissão, certamente, não concluirá efetivamente o exame de todas as nuances de informações, pois provavelmente não existem mais alguns documentos nos arquivos da ditadura, pois muitos devem ter sido queimados, fica, portanto, a esperança de novos achados que esclareçam, com um mínimo de sorte, alguma parte desta nossa História escondida.
O coordenador da Comissão da Verdade, Gilson Dipp, disse que a prioridade inicial do grupo é trabalhar em conjunto com outras duas comissões já existentes e que tratam de crimes cometidos durante a ditadura, são estas: a Comissão de Anistia, criada em 1995; e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, criada em 2002. Haverá um “intercruzamento de acervos” entre os colegiados da Comissão de Anistia (que tem o maior acervo de vítimas da ditadura do país, com 70 mil processos de pedido de anistia) e a Comissão da Verdade. O acervo da Comissão de Anistia contém uma gama vasta de informações que podem ser aproveitadas pela Comissão da Verdade para a geração de relatórios.
Gilson Dipp disse que a comissão é independente e que não recebeu nenhuma orientação do governo sobre o foco das investigações. É bom que fique claro que a Comissão da Verdade é uma comissão de Estado, isto é, envolve uma política de Estado e não de governo e, portanto, não se subordina a ninguém. O governo, por conseguinte, não participará das reuniões, sua presença será apenas no que deve a questões administrativas. A participação do Ministério da Justiça, por exemplo, será apenas no sentido de suporte para o trabalho da comissão, mas não haverá, de forma alguma, interferência na direção destes trabalhos e na elaboração da investigação, cabendo aos membros da comissão, total autonomia na condução da mesma.
A presidenta Dilma Rousseff afirmou em solenidade no Palácio do Planalto, que a instalação da Comissão da Verdade não é motivada por “ódio”, “revanchismo” ou “desejo de reescrever a história”. Aprovada no Senado, em outubro de 2011, a Comissão da Verdade, surge agora, junto com a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de reconhecer a constitucionalidade da Lei de Anistia, decisão que veio no rastro da recusa da Câmara de revisar essa mesma lei. Cabe lembrar, contudo, que a Lei de Anistia, em vigor desde 1979, foi aprovada num regime de exceção, não havia democracia, então a validade da lei pode ser questionada a todo momento, embora o STF e a Câmara tenham dado poder ao prolongamento da validade da Lei de Anistia, ela poderá ser revista novamente ao fim dos trabalhos da Comissão da Verdade, dependendo isto, de forma imprescindível, dos resultados apresentados por esta mesma comissão que, a saber da gravidade das descobertas, poderá provocar uma reação do Judiciário para punir os verdugos da ditadura, uma vez que a comissão não tem poder para tanto e nem deveria, pois o conceito de comissões desta natureza não são de punibilidade, mas de esclarecimento da História.
Nomeado para assessorar a Comissão da Verdade, Wagner Gonçalves defende que o Ministério Público (MP) proponha ações contra responsáveis por crimes ocorridos durante a ditadura. Os procuradores da República não deveriam ter medo de propor ações contra torturadores, pois a tortura não é um simples delito político, como a Lei de Anistia quer fazer acreditar, mas sim crime de lesa-humanidade, que vai de encontro aos direitos humanos. O fato de muitos questionarem que há o tal dos “dois lados” na questão é um argumento fraco, que não condiz com os fatos e seus significados, uma vez que houve uma política de Estado com poder policial apoiando a tortura, e o outro lado, o dos guerrilheiros, muitas vezes chamados de terroristas, já foram punidos pelo Estado à época, cabendo agora à democracia o esclarecimento do lado que ainda não foi punido, que é o lado dos torturadores, agentes de Estado que cometeram crimes contra os direitos humanos, uma vez que a Lei de Anistia, embora julgada constitucional, é considerada irregular pelo Tribunal Interamericano de Diretos Humanos da OEA (Organização de Estados Americanos), do qual o Brasil é signatário. O Brasil avança na política de memória, verdade e reparação, e deixa a desejar na questão da impunidade dos torturadores.
Paulo Sérgio Pinheiro, comissário da ONU, e um dos nomeados para a Comissão da Verdade no Brasil, afirma: “Não é papel de nenhuma Comissão da Verdade processar ou punir. Isso é trabalho para o Judiciário.” O jurista diz que a Lei de Anistia de 1979, que até hoje impediu a punição de agentes do Estado envolvidos em crimes da ditadura, é um “fato” que a comissão não tem mandato para questionar. A comissão, portanto, fará um relatório, cabendo às instituições responsáveis, o encaminhamento desses documentos e seus possíveis desdobramentos, um deles, o caráter punitivo aos torturadores que depende de uma reavaliação realmente séria e democrática da Lei de Anistia. E o Brasil, por conseguinte, pode aproveitar a experiência acumulada por outras nações em suas Comissões da Verdade para aprimorar este trabalho em nosso país.
Embora atrasada 27 anos, desde a redemocratização do país, a Comissão da Verdade pode se aproveitar também do trabalho feito pelas outras duas comissões: a de Anistia, como dito no início deste artigo, e a de Mortos e Desaparecidos, pois muito trabalho já foi feito por ambas as comissões, já que muitos arquivos já foram abertos e muita informação já foi reunida. Contudo, estamos bem atrasados no que diz respeito a lidar com crimes contra os direitos humanos de regimes autoritários.
E quanto à lentidão da criação da Comissão, comparada a outros países da América Latina, é bom que fique claro que em tais países o estabelecimento de suas Comissões da Verdade não foi um processo fácil. No caso da Argentina, por exemplo, desde o governo de Raúl Alfonsín, houve vários avanços e recuos. Mas o Brasil fica bem atrás de seus vizinhos quando se trata de punir autoridades responsáveis por torturas e assassinatos. O Brasil, embora uma potência emergente da América Latina e a quarta maior democracia do mundo, ainda fica atrás no processo de autoridades que cometeram crimes de lesa-humanidade. Enquanto países como Argentina, Uruguai e Chile aplicaram penas pesadas a militares que cometeram crimes, e até revogaram leis de anistia, o STF (Supremo Tribunal Federal) prolonga a Lei de Anistia de 1979 que, por sua vez, vai de encontro a tratados internacionais assinados pelo próprio Brasil. É uma contradição que deve ser resolvida com o auxílio das instituições competentes que tenham poder punitivo, uma vez que, ao fim dos trabalhos da Comissão da Verdade aqui no Brasil, teremos que ter, de acordo com os resultados obtidos, um extenso debate quanto à Lei de Anistia e sua validade, podendo haver novas votações no Congresso, ou, se for o caso, um referendo sobre a validade da lei, ou ainda, o simples respeito da Constituição Federal Brasileira aos tratados internacionais.
30/05/2012 Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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