PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 9 de julho de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE VI

“Conrad logo entra para a marinha mercante inglesa”

HENRY JAMES, “DAISY MILLER”

Daisy Miller saiu em revista em 1878 e, como livro, em 1879. E esta narrativa é uma das poucas ou a única de Henry James que conquistou logo um sucesso popular, uma vez que a obra deste escritor tem uma característica de ser evasiva, em que muito do que se diz guarda também uma parcela do não-dito, e que em Daisy Miller isso se quebra um pouco, pois este texto tem uma clareza em que se apresenta a personagem título como uma moça cheia de vida, representando os ideais da jovem América, e com uma estória que se passa na Europa, tal que é o velho continente como o lugar em que se confronta esta América nas personagens que nos aparecem como turistas na Suíça e em Roma.
Tais personagens americanos estão imersos numa Europa que pende entre sugestões de cultura e uma certa nobreza e ao mesmo tempo com uma sujeira imoral de um mundo promíscuo, e aqui tudo nos aparece com tais personagens que também estão numa distância das razões práticas que orientam o comportamento, e o resultado moral é nada mais que tais personagens se fundam num mundo de conveniências, num cuidado puritano fruto da insegurança da situação em que se encontram.
E como nos diz Calvino, já sobre a trama: “O rigorismo – americano ou europeu – é representado pela tia de Winterbourne que não por acaso decidiu morar na Genebra calvinista e por mrs. Walker, que é um pouco a contrapartida da tia, imersa na mais indolente atmosfera romana. Os emancipados são a família Miller, expeditamente à deriva numa peregrinação europeia imposta a eles como dever cultural inerente ao seu status: uma América provinciana, talvez de novos milionários de origem plebeia,” e temos, por fim, Daisy, como vai pontuar Calvino, “a única que consegue realizar-se como personalidade moral autônoma.”  
Por fim, o mundo do mal que é apontado em James aparece em Daisy como uma disputa de sua alma, primeiro pelo mordomo Eugenio, depois pelo romano Giovanelli, que aparece como um caçador de dotes, e temos enfim o fantasma da malária que estava arrebatando meio mundo, e em Roma era o miasma que cerca a estória de Henry James. E Calvino, ao fim, faz a sua análise sintética da trama de James, quando nos diz: “O pior veneno das intrigas com que os americanos da Europa castigam a família Miller é uma alusão contínua e obscura ao mordomo que viaja com eles e que – na ausência de mr. Miller – exerce uma autoridade não bem definida sobre mãe e filha.”
E segue Calvino : “Os leitores de A outra volta do parafuso sabem quanto o mundo dos empregados domésticos pode encarnar para James a presença informe do “mal”.” Temos que, ao fim da estória, a malária é a estranha entidade mediterrânea que vai ceifar a vida de Daisy Miller, num sacrifício de uma personagem que não havia se submetido nem ao puritanismo de seus compatriotas, e nem tampouco ao paganismo nativo. Há então o holocausto no Coliseu, e os miasmas são tão etéreos quanto o espírito narrativo que se esfumaça na escrita de Henry James que, como dito, guarda muito do não-dito como algo que está ainda assim quase à superfície, e isto numa narrativa em que temos mais clareza do que a narrativa habitual do autor.

OS CAPITÃES DE CONRAD

Joseph Conrad morreu em 3 de agosto de 1924 com 66 anos, vinte dos quais passou navegando e outros trinta escrevendo, e teve sucesso literário ainda em vida, mas a crítica europeia lhe deu um grau maior justamente após a sua morte, quando, por exemplo, saiu em dezembro de 1924 um número da Nouvelle Revue Française dedicado inteiramente a ele, com textos de Gide e Valéry.
E temos então a imagem de um homem que reunia um aspecto duplo e ao mesmo tempo de duas profissões que vão se revelar complementares, indissociáveis no quesito que lhe faz ter sentido, pois Joseph Conrad é um contraste no qual se tinha a experiência de vida prática e movimentada da marinha mercante, de um lado, e o talento inconteste de romancista popular, aqui juntando a herança de Flaubert, com a sofisticação da forma, e também ecos da dinastia decadentista da literatura mundial.
O caráter do escritor Joseph Conrad será o de um autor de aventuras, e que nos diz numa literatura renovada a trama que envolve lugares extraordinários, e que coloca Calvino, por exemplo, em relação à arrumação de sua biblioteca particular, num dilema que diz muito da situação da crítica literária diante do autor, e temos Calvino se digladiando na sua estante, quando nos diz: “Na minha estante ideal, Conrad tem lugar garantido junto com o aéreo Stevenson, que é quase o seu oposto, como vida e estilo. Contudo, mais de uma vez estive tentado a deslocá-lo para outra prateleira – com acesso mais difícil para mim -, a dos romancistas analíticos, psicológicos, dos James, dos Proust, dos recuperadores incansáveis de cada migalha de sensações vividas; ou até na dos estetas mais ou menos malditos, à maneira de Poe, tomados de amores transpostos; quando também as suas obscuras inquietudes de um universo absurdo não o remetam para a divisória – ainda não bem-ordenada e selecionada – dos “escritores da crise”.”
E Calvino, enfim, se decide: “Porém, conservei-o sempre lá, ao alcance da mão, com Stendhal que com ele se parece tão pouco, com Nievo que não tem nada a ver com ele. Porque, mesmo sem acreditar em muitas coisas dele, sempre acreditei que fosse um grande capitão e que inserisse em seus contos aquela coisa que é tão difícil de escrever: o sentido de uma integração com o mundo conquistada na vida prática, o senso do homem que se realiza nas coisas que faz, na moral implícita no trabalho, no ideal de saber estar à altura da situação, tanto na coberta dos veleiros quanto numa página.”
Temos no trabalho detalhado o espírito da narrativa de Conrad, pois O espelho do mar, por exemplo, é uma coletânea de prosas sobre temas de marinhagem, no qual se reúne a técnica dos desembarques e das partidas, as âncoras, os velames, o peso da carga, e mais coisas da navegação, num apuro técnico em que a narrativa ganha em correção e objetividade e evita o esteticismo ou a afetação retórica, que só aparece ao fim quando Conrad exalta a tão famosa superioridade naval inglesa, mas que ainda assim mantém o fundo no qual se faz a narrativa conradiana, que é o reflexo fiel de um mundo objetivo, prático, mundo que Conrad conheceu e trabalhou, que é o do mar e dos navios.  
Por sua vez, Conrad era inglês por escolha, e na história literária é um hóspede ilustre da literatura inglesa, pois nasceu polonês, mas Conrad logo entra para a marinha mercante inglesa, para depois despontar na literatura inglesa como escritor aventureiro, e na sociedade inglesa ele não se inseriu por crença religiosa e nem assimilou suas tradições familiares, mas sim fez sua entrada pelo mundo do trabalho feito no mar, como um capitão-gentleman.
Com Lord Jim, que de capitão passa a comerciante, temos a galeria das personagens conradianas em que figuram traficantes europeus imersos nos trópicos que vão povoar os romances de Conrad, mundo real no qual o autor travou conhecimento prático quando, por exemplo, fez a sua experiência naval no arquipélago malaio, e na narrativa que ele ergue temos esta tensão na qual temos, de um lado, a etiqueta aristocrática do oficial de marinha, e de outro, a degradação dos aventureiros falidos.
Conrad, por sua vez, tem revelada esta tensão, pois o escritor viveu num período de transição do capitalismo e do colonialismo britânico: a passagem da navegação a vela para a era do vapor. Portanto, seu mundo real e literário era o da civilização, como nos diz Calvino, “dos veleiros dos pequenos armadores, um mundo de clareza racional, de disciplina no trabalho, de coragem e dever contrapostos ao mesquinho espírito de lucro”. Então, para Conrad, o novo mundo dos navios a vapor das grandes companhias levava suas personagens aos dilemas entre se trair ou lutar contra o avanço do capital, sonhando quixotescamente ou sendo empurrado para um lugar despersonalizado de burocratas coloniais, tais como as sobras humanas da Europa, retratadas pela narrativa conradiana, que passaram a se reunir nas colônias, figuras decadentes às quais Conrad contrapõe os aventureiros românticos como Tom Lingard.
Temos na narrativa conradiana a confiança na força humana, e sem qualquer veia de rigor filosófico, pois o ambiente de cosmovisão era este em que se confrontavam a queda de um mundo de otimismo racional burguês diante de uma espécie de limbo no qual tínhamos terreno fértil para a eclosão do irracionalismo e do misticismo. E como nos diz Calvino, por fim: “Conrad via o universo como algo obscuro e inimigo, mas a ele contrapunha as forças do homem, sua ordem moral e coragem. Perante uma avalanche negra e caótica que lhe vinha em cima, uma concepção do mundo repleta de mistérios e desesperos, o humanismo ateu de Conrad resiste e finca os pés.”

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/34846/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicos-3



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