Na Stultitia Navis tinha um governo meio anárquico, o capitão levava o leme, na descrição de Foucalt, em sua História da Loucura, muitos pegavam os insanos perdidos nas cidades e jogavam neste navio, esta embarcação errava pelos mares, por toda a Europa, pouco depois da Idade Média, no começo do período renascentista. Também temos a metáfora platônica para nos retratar a loucura em sua origem poética e filosófica.
A nau dos insensatos que aqui se descreve, foi uma das
embarcações que circulavam desde 1502, existia este capitão, e os marinheiros,
e mais um amontoado de gente suja, agressiva, dissipada e maltrapilha, um mundo
de imundície se abria entre pessoas, ratos e carne podre, o governo, portanto,
naquele ambiente, existia na imaginação de seus tripulantes.
A embarcação em questão tinha sido construída em 1500,
começou a navegar por um capitão naquela época para colher os loucos na
península itálica, começaram a colher os insanos de Roma quando a embarcação
adentrou o Reno, foram muitos, um grupo de insanos tagarelas, uma leva de
insanos depravados, uma outra leva de insanos delirantes de grandeza, um outro
grupo heterogêneo que reunia perfis como de fascinados, animalescos,
agressivos, anestesiados, mudos, aparvalhados, arrogantes, viciados em luxúria,
piores dos que os simples depravados, os que xingavam sem parar, os que diziam
estultícias e faziam piadas sem nexo, os fragmentados, os que se imaginavam
imperadores, e por fim, os insanos que roubavam e cometiam crimes, todos foram
colocados nesta embarcação em 1501.
O reino da insanidade, então, depois de muita disputa de
poder, agora tinha na figura do capitão, seu grande líder, ele se considerava
imperador, era um do grupo de insanos que se imaginavam imperadores, neste
grupo, este capitão era César, Imperator, ele tinha visões e alucinações, e
tinha a certeza absoluta de ser uma reencarnação de Calígula. Neste grupo tinha
um insano que tentara tomar o poder do leme que se dizia Nero, e sempre pensava
em delírios de piromania, lutava contra uma fogueira imaginária enquanto via
diante de seus olhos a sua velha Roma em chamas.
Nero discutia com um insano depravado, numa destas tardes em
que a Nau navegava pelo Adriático, o capitão sempre imaginava conduzir bem o
leme, o fato é que o navio estava desgovernado, entrava água no convés, os
ratos pulavam entre as comidas e as carnes podres, pois ninguém naquele caos
sabia manejar comida ou preparar o que fosse, havia uma convenção de bruxas
reunida, estas que haviam escapado de uma sanha medieval, eram cinco velhas e
três moças, os depravados corriam atrás das três moças insanas, uma dava para
Nero que nem uma cabrita, os depravados ficavam com inveja, pois nenhuma
daquelas moças queria saber deles.
César liderava a grande viagem pelo Adriático, as ondas
cresciam, o ar marinho lhe enchia os pulmões de empolgação, sua visão da
península itálica era magnífica, em seu delírio ele via com a sua ideia de
imperador o desenho de um império que cobria todo o mundo antigo conhecido, ele
pensava que aquelas três moças teriam que ser curradas pelo grupo dos viciados
em luxúria como punição aos senadores que competiam com o seu poder e sua
soberania, Nero, de outro lado, ria, com a sua bruxinha que também gargalhava e
achava que o capitão não tinha mais juízo e que o leme estava na mão de um
louco.
Tinha 12 marinheiros que deviam obediência ao capitão, este
novo Calígula achava que eles eram seus senadores e que eram casados com as
velhas e as três moças, como Nero não largava a sua bruxinha particular, o
comando da tarde seguinte foi amarrar ao mastro as outras duas das moças que
acabaram sendo curradas pelos viciados em luxúria por cinco tardes seguidas,
uma delas desmaiou depois que um deles começou a gritar de orgasmo e saiu
cambaleando como um bêbado saciado, logo se encerrou aquele horror. O capitão,
Imperator, César, se deu por satisfeito e começou a provocar, desta vez, o
grupo de parvos que não faziam nada o dia inteiro, e não ser ficarem cuspindo
no mar como um tipo de brincadeira de crianças doentes.
Depois desta semana caótica de orgias, o capitão, Imperator, César,
colocou o grupo de arrogantes para limpar a sujeira que os viciados em luxúria
tinham deixado em todo o mastro, neste meio estavam os anestesiados, caídos no
caminho, enquanto o grupo de insanos arrogantes chutavam estes pobres diabos
para o lado, num misto de raiva e sentimento de humilhação, pois o capitão,
apesar de ser um insano sem juízo, tinha um tipo de conduta que sempre colocava
este grupo de insanos arrogantes em situações vexatórias, principalmente depois
de ordens delirantes como esta desta simulação de orgia romana de um
pseudo-Calígula.
Os estultos que diziam piadas sem nexo começaram a caçoar
destes insanos arrogantes, que tentavam limpar o mastro entre estes estultos que
zombavam de tudo o tempo todo, e os anestesiados que caíam pelas tabelas,
desabando contra o mastro, que se encontrava imundo e de fato havia ali um
cheiro deplorável de sêmen morto. O capitão, Imperator, César, por sua vez, se
divertia entre os estultos, num tipo de festa das bacantes improvisada em que o
teatro trágico renascia e logo se transfigurava numa peça zombeteira de
Aristófanes.
Aquela peça de Aristófanes, de dar engulhos em almas
sensíveis, foi uma ressaca da bacanal dos viciados em luxúria que, naquela
tarde em que o grupo de arrogantes sofria mais uma humilhação de seu imperador,
dormiam uma siesta embriagada como corpos saciados de um impulso primitivo e
irrefletido, sem método, só feito pelo uso da força e da obsessão doentia, algo
que lhes levara àquela insanidade deplorável que assustava até mesmo os
coitados dos depravados, que eram mais sexistas do ego que de um vício
impulsivo.
De repente, em meio à sujeira que os arrogantes lutavam para
limpar, começou uma discussão barulhenta entre os insanos que xingavam sem
parar e os insanos que imaginavam febrilmente que eram imperadores, mesmo que
já houvesse um imperador no navio, e um outro que dizia que era Nero. Os
xingadores começaram uma altercação furiosa contra estes imperadores, que davam
ordens para exércitos imaginários para matar aqueles insanos que os xingavam de
plebeus e nomes impublicáveis. César, Imperator, desceu de seu leme, furioso,
não contra os xingadores, mas contra estes que se diziam imperadores, e chamou
o grupo de insanos tagarelas para recolher com baldes enormes água do mar, o
trabalho foi rápido, em questão de alguns minutos estes loucos tagarelas
invadiram a briga e jogaram água do mar na cara e na cabeça destes imperadores,
que se acalmaram e, pior, continuaram ouvindo xingamentos obsessivos destes
insanos que gritavam para o júbilo de César, que gostava daqueles xingadores,
era o seu grupo favorito naquele governo náutico e imaginário.
César, Imperator, agora estava sofrendo uma conspiração, pois
Nero e sua bruxinha se juntaram aos falsos imperadores, dentre os xingadores,
que idolatravam César, havia uma rixa eterna contra estes dementes que pensavam
ser imperadores. Dos outros grupos de insanos, tínhamos os arrogantes, que
desejavam se vingar de César, os tagarelas e os depravados apoiavam César, os viciados
em luxúria idolatravam César, os estultos que falavam piadas sem nexo adoravam
César, por sua vez, havia grupos que precisavam ser cooptados, tirando os
anestesiados, que eram incapazes de se posicionar.
Nero cooptou os agressivos e animalescos, os aparvalhados
achavam César engraçado e o apoiavam, os mudos eram tão inúteis quanto os
anestesiados, pois ninguém entendia suas gesticulações, os delirantes de
grandeza e os fascinados apoiavam César, os fragmentados ficavam indecisos,
pois suas mentes caóticas alternavam num tipo de inda e vinda insana, e os
insanos que roubavam e cometiam crimes desejavam matar César e também Nero para
dominar a embarcação.
Nero intitula a sua bruxinha um tipo de rainha de Sabá, os
arrogantes fizeram a corte do que seria um tipo de ritual, o barco navegava e
já se aproximava de Ancona, já tinham se passado seis meses que os tripulantes
da nau dos insensatos não viam terra firme, perdidos no Adriático, em
movimentos irregulares de uma embarcação sem destino. César, Imperator, tinha
certeza de seu poder, mal sabia da conspiração que estava sendo montada por
Nero e pelos insanos arrogantes que estavam com sede de vingança depois que
tiveram que limpar o mastro do barco de toda a sujeira que os viciados em
luxúria haviam deixado ali.
A embarcação cambaleava num mar bem longo, ainda longe do
porto de Ancona, mas já próximo de sua periferia, o leme ficava ao deus-dará, o
imperador que se achava um Calígula não fazia ideia de como conduzir tudo, um
marinheiro lhe ajudava e recebia ordens ríspidas de um líder que não sabia
nada, só mandava. Nero pensava em cooptar mais insanos, dos que seriam colhidos
em Ancona, pois ele queria tomar o leme para si e jogar César, Imperator, no
mar, para afogá-lo.
Nosso pseudo-Calígula começou a ter sintomas de grandeza e
queria ver Nero morto, não sabia de nada que lhe cercava, segurava seu leme
cada vez mais alheio da realidade, recebendo apoio dos delirantes de grandeza,
o grupo de insanos que alimentava o seu ego que vivia numa espécie de transe
imperial, como se estivesse perdido na antiguidade, pensando que dominaria o
mundo com uma simples embarcação. Nero, por seu turno, era tão louco e insano
quanto o pretenso imperador de Roma, mas estava avançando em suas cooptações e
a estadia em Ancona era para ele estratégica, pois um marinheiro já informara
que lá teriam que recolher dois grupos de insanos, um de depravados e outro de
estultos que contavam piadas idiotas.
O fato é que estavam gestando uma guerra que logo ocorreria
dentro da embarcação, esta chega então ao porto de Ancona, lá um dos
marinheiros desce para conversar e negociar com um atravessador, perto dele se
encontravam acorrentados dois grupos de insanos, primeiro foram recolhidos os
depravados, neste podia se ver alguns que tinham um tipo de olhar perturbador
em que brilhava uma faísca de insanidade, depois o atravessador pegou o outro
grupo que estava num estado assustador, eram completos idiotas que falavam
besteira sem parar e que nada do que diziam fazia qualquer sentido, eles
conversavam entre si e com anjos imaginários que lhes respondiam sobre Deus e o
diabo com a mesma facilidade com que se faz um cálculo aritmético simples. Estes
idiotas julgavam ter a chave da filosofia, quando na verdade faziam piadas de
péssimo gosto.
Em Ancona havia tanto este atravessador, uma espécie de
faz-tudo e traficante de pessoas, havia o comandante do porto, que ordenou que
se recolhesse logo aquela gente infame de Ancona e que aquele barco partisse
logo para sua viagem sem destino e sem futuro. César agradece ao atravessador,
que percebe que estava falando com um louco, logo César teve surtos de
imperador, os grupos novos de insanos entraram no barco, César, Imperator, ele
fazia galimatias, acabou expulso do porto pelo comandante, que o mandou queimar
no inferno junto com aquele bando de loucos e dementes, o atravessador, por
fim, obedecendo as ordens do comandante, enxotou César daquele porto, este que
era imperador apenas em seu barco, no porto não passava de um rebotalho
indesejado.
A embarcação, depois de uma tensa estadia de três horas,
durante uma tarde, no porto de Ancona, deixa rapidamente aquele lugar, depois
da pressa do comandante e do atravessador de se livrar daquela massa humana de
insanos, César, Imperator, volta a dar ordens à sua tripulação, enquanto Nero
já se encarregava, junto com a sua bruxinha, de cooptar aqueles novos insanos
que adentraram a sujeira daquele barco, logo aqueles depravados, famintos, se
empanturraram de carne podre, entre um mundaréu de moscas que voavam em volta
de suas cabeças.
César, Imperator, convoca os insanos xingadores, por sua vez,
para dar uma geral na embarcação, e estes percebem movimentações estranhas e
conversas enviesadas, o grupo dos insanos arrogantes estavam irados, mal
disfarçavam sua porfia, eles descontavam uma certa raiva nos mudos e nos
anestesiados, enquanto isso os insanos criminosos tinham um plano próprio de
instaurar o caos naquela embarcação e se livrarem destes imperadores postiços e
deixar aquele lugar tomado pela anarquia.
Neste ínterim, os agressivos e animalescos, que apoiavam a
conspiração de Nero, começaram uma altercação e logo uma briga de socos com os
tais xingadores que apoiavam César, o grande imperador estava em seu leme, sem
saber para onde ia, tendo seu marinheiro direcionado o barco agora para
Pescara, para pegar mais três grupos de insanos, com os quais alguns daqueles
marinheiros ganhariam algumas moedas de ouro, pois o porto de Pescara queria se
livrar daqueles estorvos que emporcalhavam a cidade de Pescara.
Os animalescos, nesta briga com os xingadores, pareciam
cachorros loucos, uns uivavam como lobos, num tipo de licantropia imaginária,
uns tipos que babavam e davam guturais como lobisomens no cio, sendo sacaneados
pelos viciados em luxúria que apoiavam César. Neste ponto, ainda não havia uma
guerra, César, em seu leme, estava completamente alheio ao que se passava na
embarcação, seu fascínio pelo mar e pelo horizonte o deixavam numa bolha de
existência feita de maresia e miragens.
Os tagarelas que apoiavam César, se juntaram aos xingadores,
a coisa ficou tão insuportável, que os animalescos ficaram mais surtados do que
já estavam e caíram numa posição fetal patética como se rolassem pelo chão da
embarcação como pequenos bichos que urravam de dor, enquanto os agressivos, que
tinham socado vários daqueles xingadores, ficaram horrorizados com o avanço
daqueles insanos tagarelas e saíram para um outro canto da embarcação, exaustos
com aquela babel verbal daqueles chatos de galochas.
César se juntou aos delirantes de grandeza, e fez uma festa,
logo os aparvalhados ficaram fazendo momices em volta de César, que ria e se
dirigia a Nero com uma ironia, sem perceber os olhares que lhe cercavam naquele
momento, aquela festa era temporária, o barco agora ia com um dos marinheiros
em direção de Pescara, pois a loucura era uma espécie de tráfico de pessoas, e
os marinheiros da nau dos insensatos, que habitavam a embarcação, mas não eram
insanos, faziam escambo de gente o tempo todo, era uma malandragem, por isso
dependiam de um tipo de rei louco, para simular uma ordem que eles, os
marinheiros, eram os que manipulavam, os verdadeiros donos da situação e da
embarcação.
A festa demencial de César e dos delirantes de grandeza,
junto com os aparvalhados que comemoravam achando que estavam com um imperador
divino durou a noite toda, varou a madrugada, desde aquela tarde em que a
embarcação havia deixado Ancona para trás em direção de Pescara, pois os
marinheiros estavam juntando moedas de ouro par fazer um pé de meia e depois
abandonar aqueles loucos à própria sorte, a nau dos insensatos estava num misto
esquizofrênico de festas e rixas no mesmo espaço.
Estranhamente, César e Nero, no dia seguinte, pela manhã,
levaram uma conversa amigável de uma hora, nada que mudasse a situação, uma
bomba poderia explodir a qualquer momento naquela embarcação insana que rumava
na direção irresistível do caos. Os marinheiros já sabiam da movimentação, e
também sabiam que aquilo seria benéfico para seus interesses particulares, pois
ver aqueles loucos se engalfinhando facilitaria ainda mais o domínio oculto que
eles exerciam naquela embarcação, com um rei palhaço que segurava um leme sem
fazer absolutamente nada, a não ser, eventualmente, disparar ordens insanas
como um tipo de perversidade infantil.
César não fazia ideia da conspiração de Nero, sua ingenuidade
era hilária, ao passo que Nero era um tipo de perverso que sabia antecipar
movimentos como um jogador de xadrez, ele só não sabia que havia um ar maléfico
em volta, que eram os insanos criminosos, estes sim, dispostos a matar e fazer
o diabo pelo poder, os marinheiros sabiam que o único grupo de insanos que eles
deveriam prestar atenção e temer era aquele grupo de marginais doidos e sem
escrúpulos, e que viam a vida como algo que poderia ser ceifado com um golpe de
martelo.
Os marinheiros sabiam sobre a esperteza daqueles criminosos,
ao passo que Nero se esquecera de ver esta sua retaguarda em seu jogo de
xadrez, os mestres ali, ao fim, eram os marinheiros, que buscavam um jeito de
se livrar dos marginais que povoavam aquele barco, mas ainda não tinham
descoberto como. Nero dominava a situação com César, os criminosos estavam para
tentar dar um contragolpe em Nero, e por fim a fatura poderia ser mesmo dos
marinheiros, que traficavam pessoas, eram os donos de tudo, pois não eram
insanos como todos que ali habitavam.
Depois do dia, no meio da madrugada, cinco dos criminosos
insanos foram até um dos quartos da embarcação, acordaram os mudos e os
anestesiados, eles amarraram ao mastro dois dos mudos, os espancaram e os
deixaram sangrando com uma carta com o nome de Nero, jogaram três dos
anestesiados ao mar, estes morreram afogados, no dia seguinte, César vê tudo e
dá ordens de amarrar e surrar Nero, foi o que os xingadores fizeram, no que
começou uma confusão por toda a embarcação.
Os agressivos começaram a socar os xingadores, e
sorrateiramente, acabou que depois da confusão havia anestesiados e mudos que
tinham sido esfaqueados, ninguém tinha visto nada, mas era obra dos insanos
criminosos. Nero, por fim, estava desmaiado, amarrado ao mastro, acusado por
César de agressão aos anestesiados, que eram como mortos-vivos e não podiam se
defender.
César tenta dar um novo golpe de Estado dentro da embarcação
e, tomado pela fúria, manda um dos marinheiros matar Nero, este, amarrado ao
mastro, acordando, pede clemência, em vão, um dos marinheiros saca uma
machadinha e crava na cabeça de Nero, que morre na hora, sua companheira, a
bruxinha, não resiste ao choque, e se joga ao mar, ela nada em direção de um
horizonte incerto até morrer afogada.
César ainda não sabia da conspiração feita pelos insanos
criminosos, que eram muito espertos, no pior sentido, e muitos dos que apoiavam
Nero acabaram sendo cooptados por estes bandidos loucos, e eles sabiam que
teriam que lidar com os marinheiros, pois estes exerciam um tipo de poder
mental, pois tinham o tesouro da embarcação e guardavam toda a documentação do
mesmo com eles, nisto César dava ordens gritando para a embarcação seguir
imediatamente para Pescara.
Chegando em Pescara, César desce junto com um dos seus
marinheiros, este negocia com o atravessador, sob o olhar impaciente do chefe
do porto, neste ponto César delira alheio à negociação espúria que ocorria
entre seu marinheiro e o atravessador, era um grupo grande de acorrentados, um
conjunto de insanos paranoides e insuportáveis, que lotariam mais uma parte
daquela embarcação decadente, o marinheiro fecha negócio e embolsa uma pequena
fortuna sem César perceber, ele achava que eram mais súditos para o seu império
romano imaginário, este Calígula patético que agora se vangloriava de ter
matado Nero.
Em meio da carne podre, os paranoides matam a fome, os
agressivos ficam perturbados, um grupo destes paranoides começam a delirar
contra vários dos insanos da embarcação a esmo, num tipo de alucinação
coletiva, estes paranoides começam a ver insetos por toda a parte invadindo a
embarcação, um destes era um velho que tinha tomado um chá alucinógeno e nunca
mais voltara ao normal, este era o líder do grupo e sugestionava todo o resto e
logo estes começam a ver aranhas e lacraias percorrendo a embarcação.
Os agressivos, que agora se juntavam aos insanos criminosos,
se revoltam com aquele circo e resolvem fazer mais uma carnificina, doze dos
paranoides são espancados e jogados ao mar, já entrava a noite, a embarcação já
deixara Pescara há algumas horas, e o mar estava particularmente revolto, caía
uma tempestade, uns insanos tagarelas se penduravam no mastro como se
estivessem em meio de uma festa macabra, os xingadores gritavam contra os
agressivos mais uma vez, e esta noite tempestuosa gerou mais uma pequena guerra
em que os insanos criminosos começavam a ver meios de tomar o poder na
embarcação que agora seguia para Bari, os marinheiros ficavam quietos, cuidavam
do tesouro e contavam dinheiro em meio da confusão.
Em Bari, os marinheiros planejavam fazer uma grande
negociação, pois o mais experiente deles pretendia vender parte de uns tecidos
que estavam guardados na embarcação e ele conhecia um mascate que ficara rico em
Bari e estava disposto a comprar a embarcação para usufruto dos marinheiros que
trabalhariam para ele depois que os loucos da embarcação fossem descartados, e
o plano para o tal mascate era a cargo dos marinheiros, eles teriam que vender
estes loucos em outro país ou simplesmente se livrar desta carga humana como
fosse, pois o mascate queria que a embarcação fosse usada para venda e compra
de víveres por todo o mar Adriático.
De Pescara até Bari, a embarcação navegou por doze dias,
neste ínterim, César tinha surtos de grandeza e de poder, os insanos criminosos
começaram então a encher o ego e a cabeça de César de sonhos delirantes, de que
todos ali ficariam ricos, mas dependia de César dar ordens para matar os seus
marinheiros, os criminosos manipularam César até Bari, os marinheiros
perceberam a movimentação estranha e um cheiro de intriga no ar, o mais
experiente dos marinheiros logo ligou o alerta de que entre a venda da
embarcação em Bari e a solução para tirar os loucos desta teria que ser rápida,
ele então pensou em navegar a embarcação até a Dalmácia para tentar vender os
loucos para serem escravizados por mercenários. Os insanos criminosos, no
entanto, já tinham atentado que havia um tesouro dentro da embarcação e
começaram a caçá-lo toda madrugada enquanto todos dormiam, o que fizeram por
doze noites até Bari sem êxito.
A embarcação, depois de doze dias de navegação tumultuada, em
meio de muitas tempestades, duas quedas em que um insano anestesiado e outro
mudo caíram ao mar e se afogaram, chega ao porto de Bari, lá esperava o mascate
junto com o atravessador e o comandante do porto, ali havia um punhado de dez
insanos tagarelas que tinham sido expulsos da cidade pelo prefeito de Bari por
perturbação pública, claramente insuportáveis, e que o atravessador,
irritadíssimo, teve que segurar estes tagarelas acorrentados por dez dias
seguidos de sol a pino no porto de Bari, e agora poderia se ver livre daqueles
estorvos com a tal nau dos insensatos.
A embarcação então leva este pequeno grupo de tagarelas insuportáveis
e o marinheiro, à revelia de César, que se encontrava cada vez mais delirante e
alheio da realidade, toma o leme ao passo que César imaginava comandar tudo, e
este marinheiro então segue até a Dalmácia, viagem que duraria um mês, e dizia
a César que a embarcação seguia de volta à Roma para a sua coroação e retorno a
seu império continental. César se empolga, e começa a ver seu reino de Roma
novamente, ele imaginava a sua suposta vida passada como Calígula, e delira
fatos históricos que nunca ocorreram.
A embarcação enfrenta novas tempestades, e dois dos insanos
criminosos, no meio de uma madrugada, finalmente encontram o tesouro que os
marinheiros guardavam e embolsam tudo em panos e lençóis improvisados e amarram
com cordames que sobraram do soerguimento do mastro na construção da embarcação.
Na manhã seguinte, um dos marinheiros dá falta do tesouro e diz aos outros
marinheiros que eles tinham sido roubados e que tinham perdido tudo, eles
desconfiam do grupo de criminosos, mas ficam com medo de enfrentá-los, e
preferem esperar a chegada à Dalmácia para se livrar daquela gente e amealhar
novamente alguma pequena fortuna vendendo massa humana para ser escravizada por
mercenários.
Os insanos criminosos agora queriam matar César, e um dos
marinheiros então faz um acordo final com este grupo, em que estes receberiam
uma quantia na Dalmácia, fortuna que ficaria entre os marinheiros e eles, os
criminosos, com a condição de deixar César vivo e não provocar o caos, pois
toda aquela gente suja da embarcação seria vendida para mercenários e que a
embarcação agora era propriedade do mascate que estava no porto de Bari, e eles
usariam esta para vender e comprar víveres diversos, uma vez que a nau dos
insensatos seria aposentada, o mascate disse aos marinheiros que eles teriam
uma nova fonte de renda, pois era uma solução para os marinheiros se livrarem
daquele trabalho caótico de tomar conta de loucos dentro de um navio para
juntar fortuna.
A viagem agora vinha de um cheiro de carne podre cada vez
mais insuportável, os insanos tagarelas ainda devoravam aquele misto de carne
com mosca e gordura velha, já apareciam mais ratos na embarcação, tudo estava
cada vez mais sujo, os marinheiros já sentiam engulhos frequentes e quando
chegassem na Dalmácia, além de se livrarem daquele bando de insanos sujos e
maltrapilhos, teriam que limpar tudo e jogar aqueles restos de carne de boi
podre que estava há meses na embarcação e que era alimento destes infames
delirantes que não sabiam o que comiam, apenas matavam a fome.
Os insanos agressivos disputavam com os ratos os nacos de
carne, tudo parecia cada vez mais caótico, a presença abstrata de César era a
única fonte virtual de ordem, mas não era nada, pois César piorava seu estado
de demência e não conseguia mais ordenar uma frase inteira coerente, o
marinheiro traduzia falsamente as suas falas para os insanos da embarcação,
para tentar manter um mínimo de paz naquele cenário que desabava.
A tempestade estava cada vez mais forte nas madrugadas
seguintes, cinco insanos anestesiados se afogaram no mar Adriático naquele
intervalo, os marinheiros tentavam domar o leme e direcionar o mastro, o plano
deles e dos criminosos tinha apaziguado uma possível guerra dentro da
embarcação, e César delirava ser agora o dono dos mares, filho de Netuno, e que
Éolo soprava o seu vento na direção de seu destino glorioso em Roma como o
imperador do mundo, Calígula em uma versão requentada e patética, sem reino e
sem seu palácio, com uma embarcação decadente e cheia de vermes, carne podre e
loucos sem destino e que poderiam terminar na mão de mercenários.
César era um rei oco, tinha a dimensão existencial de um anão
sem visão nenhuma, era um palhaço involuntário que só não era notado como tal
por quem era tão insano como ele, os marinheiros o tinham na conta de um idiota
fracassado e que cairia que nem uma jaca em seu sonho de esponja, não sobraria
nada de sua empáfia imaginária de um rei de hospício. E o mascate já tinha dado
ordens de que este César chato e insuportável seria despachado para os
mercenários da Dalmácia junto com toda aquela plebe rude de insanos e
desvairados.
Um dos marinheiros, que conduzia o leme de fato, levava a
embarcação cada vez mais rápido na direção da Dalmácia, neste lugar sujo e com
carne podre começavam a aparecer cada vez mais ratos, os insanos animalescos
começaram a se misturar a estes ratos, uma porcaria imensa, enquanto os insanos
viciados em luxúria voltavam a currar as duas moças que agora se encontravam
num estado de torpor.
César delirava, no entanto, numa tarde de sol, com o mar Adriático
relativamente calmo, ele sai de seu leme, desce até uma outra parte da embarcação
que estava infestada de ratos, começa a remexer na carne podre que ali havia e,
no meio dos ratos e das carnes, aparece uma serpente, que pula e dá o bote em
César, ele leva três picadas seguidas bem na cara, esta incha, ele começa a ter
a pele gangrenada, em dez minutos ele morre envenenado.
A embarcação agora estava sem governo, logo todos ficam
sabendo da morte de César por picada de serpente, os insanos criminosos isolam
esta serpente no mar, que some na imensidão do Adriático, e decidem que o marinheiro
que comandava o leme era o novo líder da embarcação que, a esta altura, se aproximava
da Dalmácia.
O cheiro de podre se misturava à maresia, o mar Adriático
brilhava na aurora de um dia que seria de céu limpo, a embarcação enfim chega
na Dalmácia, lá o grupo de marinheiros desce da embarcação, e um dos marinheiros
que dominava o turco começa uma conversa com membros do porto da Dalmácia, lá
eles ficam sabendo aonde estavam alojados os mercenários.
A embarcação estava ancorada no porto, com os insanos dentro
achando que tudo estava bem, mas logo aparecem um grupo enorme de mercenários
que invadem a embarcação e fazem todos aqueles insanos de prisioneiros para
serem escravizados, todos saem acorrentados com violência, muitos apanham, no
meio da confusão, uns morrem com golpes de adaga e cimitarra, dois são
decapitados com cimitarra, as moças são estupradas e mortas pelos mercenários,
os marinheiros embolsam uma fortuna e dividem o butim com os insanos criminosos.
Na manhã seguinte a embarcação deixa o porto da Dalmácia para
seguir de volta a Ancona para comprar víveres para revenda em Roma, o mascate,
que estava em Bari, já tinha orientado tudo e sabia de todas as mercadorias e
preços, e o que estes marinheiros teriam que comprar.
Quando a embarcação deixa então o porto da Dalmácia, os
mercenários seguem com os insanos escravizados até o Império Otomano, lá eles
são revendidos, uns morrem de fome num trecho de deserto, e ao fim, já em meio
a um outro grupo de mercenários, estes otomanos, os insanos que haviam sobrado
são mortos e esquartejados, sendo jogados para os urubus numa praia abandonada.
A embarcação, agora comandada pelos marinheiros e pelos insanos
criminosos, segue até Ancona, uma semana depois, numa madrugada, os insanos criminosos
acabam matando todos os marinheiros e dominam a embarcação, ficam com todo o
butim obtido com os mercenários da Dalmácia, passam mais cinco dias, e numa
noite gelada e tempestuosa, o mar Adriático se agita ferozmente e a embarcação,
a antiga nau dos insensatos, naufraga, e os insanos criminosos, que agora
dominavam a embarcação, todos morrem afogados, era o fim desta a aventura de loucos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Contos Psicodélicos – Volume II – conto pronto em 26/12/2020
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
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