“uma poesia que reforça imagens clássicas das viagens ultramarinas portuguesas”
No livro Navegações, de 1983, a poeta Sophia de
Mello Breyner Andresen continua com a parte de sua poesia de temática política,
e se concentra num tipo de consciência política em que o mar, seu eixo poético
supremo, vem com toda a carga histórica.
Sua poesia, neste livro, novamente se depara e enfrenta a
realidade histórica do evento político como fonte de uma poesia que reforça
imagens clássicas das viagens ultramarinas portuguesas.
Nesta jornada ultramarina aparecem poetas do cânon português
como a grande origem da linguagem lusófona que foi Luís de Camões, este que
fora o autor incontornável para a poesia portuguesa do clássico livro Os
Lusíadas.
Por sua vez, Navegações é um livro que traz
descobertas, esta busca das navegações portuguesas por territórios a serem
explorados é, também, a produção de um éthos.
Este éthos é uma busca de uma vida plena, que ultrapassa o
próprio fenômeno histórico, algo que culmina em imagens como a do marinheiro, e
que nos remete a experiências de alto-mar, a vida no mar que se expande defronte à própria riqueza da natureza.
Aqui temos uma aventura que transcende marcadores
socioculturais e convenções ideológicas. Poemas breves compõem este espaço de
descrição desta experiência direta, isto é, sem a mediação de limitadores
artificiais, estamos aqui diante da natureza pura em alto-mar.
A suspensão ideológica é o resultado desta abordagem poética
de Sophia neste livro, e temos, então, a ausência completa de um programa
político neste livro, a epifania produzida visa o coletivo, mas não aprisiona a
experiência poética num marcador cultural ou político específico, existe neste
livro um tipo de liberdade absoluta.
No seu livro, Ilhas, de 1989, temos também o tema da
viagem, com as paisagens culturais e geográficas indo além de Portugal e da
Grécia, temos poemas de diversas abordagens, como o que fala do Palácio
Mocenigo em que se instala o poeta inglês Lord Byron.
Ainda temos um poema chamado Veneza, e vemos o contato do Oriente
com o Ocidente, o que se descreve no primeiro encontro entre europeus e
japoneses no poema “Os biombos Namban”.
E o poema mais visceral nos aparece, neste livro, em “Não te
esqueças nunca”, em que Treblinka, na Polônia, e Hiroshima, no Japão, são o
centro imagético que queima a visão diante da desumanidade da guerra, que no
século XX atingiu um nível de barbárie sem precedentes na História humana.
E neste livro Ilhas temos, por fim, este eixo temático
da viagem que mistura História, poemas que descrevem lugares, como o citado do
Palácio Mocenigo, poemas sobre viajantes, e o poema “Carta (s) a Jorge de
Sena”, que fala de um emigrante, que é o retrato de um português legítimo do
século XX.
DE NAVEGAÇÕES
LISBOA : A poeta Sophia se abre a Lisboa ao passo que a cidade se abre em seu
poema, no que temos : “Digo :/”Lisboa”/Quando atravesso – vinda do sul – o
rio/E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse”. Lisboa que
nasce de seu próprio nome, se expande neste poema, no que vem : “Abre-se e
ergue-se em sua extensão nocturna/Em seu longo luzir de azul e rio/Em seu corpo
amontoado de colinas -/Vejo-a melhor porque a digo/Tudo se mostra melhor porque
digo/Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência/Porque digo/Lisboa com seu
nome de ser e de não-ser”. A sensação da poeta é que ao dizer o nome de Lisboa
esta se fixa no poema e em sua realidade, no que temos : “Enquanto o largo mar
a Ocidente se dilata/Lisboa oscilando como uma grande barca/Lisboa cruelmente
construída ao longo da sua própria ausência/Digo o nome da cidade/- Digo para
ver”. Aqui o sentido da visão se dá através de dizer o nome Lisboa. A poeta faz
ver ao dizer o nome desta cidade.
AS ILHAS : A navegação aqui se dá no percurso do poema até a visão das
ilhas : “I : Navegámos para Oriente -/A longa costa/Era de um verde espesso e
sonolento”. A descrição marítima e de seu clima se abre e a poeta coloca os
versos nesta paisagem que toma a sua visão : “Um verde imóvel sob o nenhum
vento/Até a branca praia cor de rosas/Tocada pelas águas transparentes”. As
ilhas, então, finalmente aparecem, e o poema celebra : “Então surgiram as ilhas
luminosas/De um azul tão puro e tão violento/Que excedia o fulgor do
firmamento/Navegado por garças milagrosas” (...) “E extinguiram-se em nós
memória e tempo”. Ao fim, diante deste evento, findam-se memória e tempo.
III : A poeta se volta ao luzir da madrugada, no que vem : “À luz do aparecer
a madrugada/Iluminava o côncavo de ausentes/Velas a demandar estas paragens”.
As paragens e a escuridão dão um clima ao poema, e segue : “Aqui desceram as
âncoras escuras/Daqueles que vieram procurando/O rosto real de todas as
figuras/E ousaram – aventura a mais incrível -/Viver a inteireza do possível”.
Neste tatear da realidade da vida, em sua busca, aqueles que buscaram a face
real das coisas conseguiram viver a inteireza do possível, aqui podemos falar
da vida plena ou da plenitude como dom e desiderato.
V :
A poeta segue em sua visão total da vida, e esta busca no poema revela e
alcança este dom ou faculdade de ver a verdade, aqui a exposição do visível em
sua forma plena e inteira é, propriamente, o que temos como o verdadeiro : “Ali
vimos a veemência do visível/O aparecer total exposto inteiro/E aquilo que nem
sequer ousáramos sonhar/Era o verdadeiro”.
VII : A poeta Sophia abre as singraduras da navegação, e o poema aqui se
enuncia : “Outros dirão senhor as singraduras/Eu vos direi a praia onde luzia/A
primitiva manhã da criação” (...) “Eu vos direi a nudez recém-criada/A esquiva
doçura a leve rapidez/De homens ainda cor de barro que julgaram/Sermos seus
antigos deuses tutelares/Que regressavam”. As origens são evocadas, uma
realidade nua, que acabou de ser criada, com homens ainda mal saídos da terra, sob
deuses tutelares, aqui se descreve poeticamente a criação.
VIII : A poeta, mais uma vez, se coloca em seu sentido da visão, aqui podemos
dizer que ela vê com o olho de seu espírito, e que a dá o dom da poesia, e de
sua descrição rica, no que vem : “Vi as águas os cabos vi as ilhas/E o longo
baloiçar dos coqueirais/Vi lagunas azuis como safiras/Rápidas aves furtivos
animais/Vi prodígios espantos maravilhas/Vi homens nus bailando nos areais/E
ouvi o fundo som de suas falas/Que já nenhum de nós entendeu mais”. Existe algo
que ainda não se entende, a poeta, então, bebe na mitologia, um de seus eixos
temáticos : “Vi o rosto de Eurydice das neblinas/Vi o frescor das coisas
naturais/Só do Preste João não vi sinais/As ordens que levava não cumpri/E
assim contando tudo quanto vi/Não sei se tudo errei ou descobri”. E de tudo que
a poeta viu, nem ela mesma pode mensurar ou entender exatamente o que viu.
DE ILHAS
A PRINCESA DA CIDADE EXTREMA OU A MORTE DOS RITOS : Aqui a poeta faz uma viva descrição
que tem o clima oriental e mitológico, como se estivesse contando uma lenda, no
que temos : “Quando o palácio do rei do Estio foi invadido/Isô princesa da
Cidade Extrema/Inclinou gravemente a cabeça pequena/E em seu sorriso de coral
os dentes brilharam como grãos de arroz”. A riqueza dos versos é compatível com
todo o requinte que envolve a temática : “Quando levaram sua colecção de
jades/O seu leito de sândalo/O sorriso franziu sua narina fina/Suas pestanas
acenaram como borboletas” (...) “Quando levaram suas jarras vermelhas seus
livros de estampas” (...) “Ela continuou flexível e serena/Suas pestanas aplaudiram
como leques pretos/Seus lábios recitaram a sentença antiga :”. A poeta agora
enuncia a filosofia da princesa, que faz um breve provérbio, no que vem : “Aquele
que é despojado fica livre”. E esta princesa se vê, qual seu provérbio, na
surpresa que este poema oferece : “No lago viu-se/Ela mesma era/Flexível e
brilhante como seda/Fresca e macia como jade/Colorida e preciosa como estampa”
(...) “Serena como seda dormiu nessa noite sobre esteiras” (...) “Porém a
aurora do tempo novo despontou na cidade”. E a princesa acorda de seu transe,
no que vem : “Quando ela acordou/O cortejo das mãos não acorreu/A mão que
acende o incenso/A mão que desenrola o tapete/A mão que faz cantar a música das
harpas/A longa subtil mão precisa que pinta o contorno dos olhos/A mão fresca e
lenta que derrama os perfumes”. E a poeta Sophia aqui discorre sobre os limites
dos dons humanos, remetendo ao mundo dos deuses, no que temos : “Mão nenhuma
invoca o espírito dos deuses/Protectores do tecto/Mão nenhuma dispõe o ritual
antiquíssimo que introduz/O fogo linear do dia/Mão nenhuma traça o gesto que
constrói/A forma celeste do dia”. E a princesa, acordada, agora terá que dar
conta sem o concurso da divindade, com as suas próprias forças e dons, no que
segue o poema : “As vozes dizem :” (...) “Ergue-te sozinha/Não és ídolo não és
divina/Nenhuma coisa é divina” (...) “Como seda no chão cai desprendida/Assim
elas esvaída/Quando a si torna não torna à sua imagem”. O poema segue, então, e
os deuses aparecem, mas a princesa está em si e em seus próprios desafios, como
é a vida : “Suas mãos tacteiam o ar/Muito alto ouve ranger o céu/São os deuses
rasgando suas sedosas bandeiras de vento” (...) “Para não ouvir o silvo dos
gumes acerados/Mergulha no lago até ao lodo/Depois flutua muitos dias/No centro
da corola que formam/Os seus largos vestidos espalhados”.
NÃO TE ESQUEÇAS NUNCA : O poema descreve o mundo antigo e divino, no que vem
: “Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina/O pinhal a coluna a veemência
divina/O templo o teatro o rolar de uma pinha/O ar cheirava a mel e a pedra a
resina/Na estátua morava tua nudez marinha/Sob o sol azul e a veemência divina”.
Agora, ao fim, o desencanto, terra sem deuses, as cidades da desgraça da
guerra, em seus extremos : “Não esqueças nunca Treblinka e Hiroshima/O horror o
terror a suprema ignomínia”.
OLÍMPIA : A mitologia, mais uma vez, predomina como tema na poesia de Sophia, no
que temos : “Ele emergiu do poente como se fosse um deus/A luz brilhava de mais
no obscuro loiro do seu cabelo”. Todo o clima do mundo antigo e a paisagem aqui
se dão no poema, e segue : “Era o hóspede do acaso/Reunia mal as palavras/Foram
juntos a Olímpia lugar de atletas/Terra à qual pertenciam/Os seus largos ombros
as ancas estreitas”. O casal então se dispersará, e o poema abre como o mar em
seu canto : “Ela viu-o depois ficar sozinho em plena rua/Subitamente jovem de
mais e como expulso e perdido” (...) “Porém na manhã seguinte/Entre as
espalhadas ruínas da palestra/Ela viu como o corpo dele rimava bem com as colunas/Dóricas”
(...) “De qualquer forma em Patras poeirenta/No abafado subir da noite/Tomaram
barcos diferentes” (...) “De muito longe ainda se via/No cais o vulto espesso
baloiçando esguio/Que entre luzes com as sombras se fundia” (...) “Sob a
desprezível indiferença/Não dela mas dos deuses”. A existência habita aqui em
meio a uma indiferença, que também vem dos deuses.
A ESCRITA : O poema de Sophia descreve aqui a vida nababesca do poeta
inglês Lord Byron, que podia desfrutar de seu grande espaço, de suas salas, e
de seu tempo livre, no que temos : “No Palácio Mocenigo onde viveu sozinho/Lord
Byron usava as grandes salas/Para ver a solidão espelho por espelho/E a beleza
das portas quando ninguém passava” (...) “Sem dúvida ninguém precisa de tanto
espaço vital/Mas a escrita exige solidões e desertos/E coisas que se veem como
quem vê outra coisa”. A relação dos grandes espaços, da solidão e dos vazios,
com a criatividade, também aparecem neste poema de Sophia sobre Byron, no que
temos : “Podemos imaginá-lo sentado à sua mesa/Imaginar o alto pescoço
espesso/A camisa aberta e branca/O branco do papel as aranhas da escrita/E a
luz da vela – como em certos quadros -/Tornando tudo atento”.
ESTÁTUA DE BUDA : A descrição da vida de Buda inicia o poema, a sua renúncia,
e o poema termina com a visão de sua estátua no museu, no que temos : “Os belos
traços o inchado beiço a narina fina/O torneado corpo e sua/Beleza tão carnal
de magnólia e fruto/Em tão longínqua latitude representam/O príncipe da
perfeição e da renúncia” (...) “Antes do museu/Em sua frente/Oscilavam sombras
e luzes enquanto deslizava/O rio das preces”.
DEDICATÓRIA DA SEGUNDA EDIÇÃO DO CRISTO CIGANO A JOÃO
CABRAL DE MELO NETO :
A poeta Sophia aqui se volta, mais uma vez, a seu amigo e também poeta, o brasileiro João Cabral de
Melo Neto, no que vem : “I - João Cabral de Melo Neto/Essa história me
contou/Venho agora recontá-la/Tentando representar/Não apenas o contado/E sua
grande estranheza/Mas tentando ver melhor/A peculiar disciplina/De rente e
justa agudeza/Que a arte deste poeta/Verdadeira mestra ensina”. E o poema exato
e frio da dicção cabralina, também não deixa de alucinar, e a poeta cita
Cesário Verde, como uma possível comparação, no que temos : “II – Pois é poeta
que traz/À tona o que era latente/Poeta que desoculta/A voz do poema imanente”
(...) “Nunca erra a direcção/De sua exacta insistência/Não diz senão o que
quer/Não se inebria em fluência” (...) “Mas sua arte não é só/Olhar certo e
oficina/E nele como em Cesário/Algo às vezes se alucina” (...) “Pois há nessa
tão exacta/Fidelidade à imanência/Secretas luas ferozes/Quebrando sóis de
evidência”.
CESÁRIO VERDE : A poeta Sophia aqui faz um poema como se Cesário Verde
descrevesse a sua própria dicção poética, num poema bem curioso, no que temos :
“Quis dizer o mais claro e o mais corrente/Em fala chã e em lúcida
esquadria/Ser e dizer na justa luz do dia/Falar claro falar limpo falar rente”.
O mesmo tema da fala fria que, em seguida, alucina, dita no poema anterior,
aqui se repete, no que vem : “Porém nas roucas ruas da cidade/A nítida pupila
se alucina/Cães se miram no vidro da retina/E ele vai naufragando como um barco”.
E a vida urbana e decadente toma a poesia de Cesário, por fim : “Amou vinhas e searas e campinas/Horizontes
honestos e lavados/Mas bebeu a cidade a longos tragos/Deambulou por praças por
esquinas” (...) “Fugiu da peste e da melancolia/Livre se quis e não servo dos
fados/Diurno se quis – porém a luzidia/Noite assombrou os olhos dilatados”
(...) “Reflectindo o tremor da luz nas margens/Entre ruelas vê-se ao fundo o
rio/Ele o viu com seus olhos de navio/Atentos à surpresa das imagens”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-poesia-ultramarina-de-sophia-de-mello-breyer-andresen
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