“A complexidade poética opera através de colagens, sobreposições, reiterações, criando este looping que dá voltas em si mesmo, num leitmotiv vertiginoso”
O trabalho poético de Marília Garcia tem um caráter híbrido
de uma prática formal bem elaborada e um instinto experimental, um misto de
domínio do código linguístico com um universo de colagens e transposições,
como, por exemplo, colocar notícias reais em perspectiva poética e realizar um
verdadeiro jogo com estes elementos tão objetivos.
Em Câmera Lenta, Marília retoma um acabamento estético
presente em seu livro inaugural, e mantém a pesquisa ou caminho teórico e
empírico de seus livros posteriores. Neste livro Câmera Lenta, agora, Marília
estabelece um diálogo intenso com referências internacionais, e ainda com a
escrita não criativa de Kenneth Goldsmith, e na poesia brasileira, seu diálogo
evidente é com Ana Cristina César, como disse em textos anteriores, tendo
também ecos de Manuel Bandeira.
Numa contemporaneidade que rompe com uma realidade constante
e homogênea, agora num espaço fragmentado e em que reina a descontinuidade, o
híbrido criado entre estas transições do mundo real e do mundo virtual, feita
numa velocidade vertiginosa, opera uma nova percepção da realidade que, na
poesia de Marília, aparece como a mediação dos dispositivos eletrônicos nesta
modificação da percepção e da velocidade dos acontecimentos.
Os poemas de Marília Garcia, em seu livro Câmera Lenta, tem
uma voz lírica que monta e remonta discursos próprios e de outros, operações de
colagens, deslocamentos, transposições, fazem uma geografia acidentada e
metódica, ao mesmo tempo, nesta construção poética deste livro, uma usina que
parece o mecanismo de uma indústria, imagens duplicadas, uma percepção da
realidade em modo vertiginoso e numa espécie de looping para ficar tonto.
Esta voz lírica de Câmera Lenta coloca repetições,
formulações inéditas de estrutura, reiterando a liberdade de pesquisa da poesia
atual, como nunca houve na História, e o mosaico criado em Câmera Lenta
reverbera, como uma câmara de ecos, rebatendo palavras e situações, recursos
heterogêneos de composição poética operando numa complexidade que tenta
espelhar de modo metódico e fragmentado, ao mesmo tempo, a realidade
contemporânea.
Nesta prática poética de Marília, portanto, além do tema das
máquinas e da velocidade, aparecem pequenas imagens obsedantes, como a hélice,
por exemplo. A complexidade poética opera através de colagens, sobreposições,
reiterações, criando este looping que dá voltas em si mesmo, num leitmotiv
vertiginoso. Um cenário particular ganha densidade de percepção, e as ideias de
lugar e de deslocamento também são os caminhos da obsessão temática de Marília
Garcia.
POEMAS :
EPÍLOGO
ESTRELAS DESCEM À TERRA
(DO QUE FALAMOS QUANDO FALAMOS DE UMA HÉLICE)
1. : Marília inicia este poema imenso,
feito em várias partes, já colocando em evidência o tema e a obsessão
particular que será demonstrada, a hélice, e tudo que isto implica, no que
temos : “queria terminar falando de uma hélice/que eu vi na semana passada”
(...) “era uma hélice grande demais/para o tamanho do avião e eu nunca/tinha
visto na vida um avião de hélice”. Marília objetiva a sua curiosidade, no que
vem : “uma hélice serve para deslocar/mas uma hélice pode paralisar” (...) “quando
vi a hélice na semana passada/eu pensei nas nuvens de verdade/e num poema do
carlos drummond de andrade”. A relação da hélice com a memória de Marília
remete a um poema de Drummond, no que a poeta segue em sua reflexão poética : “naquele
dia eu estava indo/para um festival em juiz de fora/e eu ia ler um poema
chamado/“malaysia airlines”. O poema que Marília irá ler remete a uma notícia,
aí é que começam as suas colagens e transposições, que vão dar o caráter de sua
dicção neste poema vertiginoso, no que temos : “ao chegar na pista do aeroporto/vi
a hélice e na mesma hora pensei :/“não posso entrar nesse avião”/eu congelei e
não podia mais/me deslocar” (...) “e eu queria essa hélice em movimento/cruzando
o céu e levando a gente/para a frente/mas nem sempre” (...) “então começo com
um trecho do poema/que eu ia apresentar em juiz de fora/chamado “malaysia
airlines””.
2 . : Marília segue, e agora enuncia o poema que é uma notícia, no
que temos : “no dia 16 de julho de 2014,/um boeing 777 da malaysia Airlines/saiu
de amsterdam para kuala Lumpur/com 298 pessoas a bordo./ele estava em voo
cruzeiro/quando caiu na vila de grabovo/no leste da ucrânia.”. Marília segue
nesta notícia fria que irá se tornar uma ideia poética, no que vem : “os
enormes pedaços do boeing 777/da malaysia Airlines/se espalharam por um campo
de trigo.”. O acidente aéreo não é apenas uma notícia insular, aqui logo
aparece o contexto político, e a complexidade natural de todo fato, no que
temos : “o leste da ucrânia estava sob controle/de separatistas pró-rússia e
desde março/o espaço aéreo sobre a ucrânia estava fechado.” (...) “suspeita-se
que o boeing 777/tenha sido abatido por um míssil/quando atravessava em voo
cruzeiro/o espaço aéreo ucraniano.”. E, como fato, tem consequências, no que
temos : “a chanceler da alemanha disse/que era necessário um cessar-fogo/no
leste da ucrânia.” . E aqui entra o concurso de sua memória, Marília finaliza a
enunciação do que diz ser o começo de seu poema e se transporta para juiz de
fora, e o tema da hélice que aparece neste influxo do acidente aéreo, no que
vem : “esse era o começo do poema/que eu ia apresentar em juiz de fora/mas na
hora em que vi a hélice do avião/na pista do aeroporto viracopos” (...) “lembrei
do final do poema/que dizia assim :/“um dos comissários do voo MH 17/só estava
trabalhando naquele dia/porque tinha trocado de voo com um colega./a esposa
deste comissário/- também comissária da malaysia airlines –/tinha feito uma
troca parecida/alguns meses antes e tinha folgado/num dia em que deveria estar
voando/no voo MH370, desaparecido no oceano índico.” (...) “no momento da queda
do voo MH17,/um avião levava o presidente putin/do brasil para a rússia.” (...)
“a aeronave presidencial/fez uma rota semelhante/à do voo da malaysia airlines/e
as duas aeronaves cruzaram/o mesmo ponto e o mesmo corredor/com menos de uma
hora/de diferença.”. Os mistérios do acaso, e como ele evita uma tragédia e
provoca outras, eis o enigma do acontecimento, os deslocamentos particulares de
corpos e vidas neste mistério que envolve um acidente do qual uns escapam e
outros morrem, o jogo real do poema.
3 . : O poema evoca a hélice, o diálogo
com um amigo, e a ideia nevrálgica da impossibilidade de se deslocar, a
angústia de Marília em seu poema, no que vem : “quando vi a hélice/na semana
passada/me lembrei de uma pergunta/que um amigo tinha me feito/na véspera da
viagem/ele se referia a um poema em que eu contava/que não tinha conseguido
embarcar num voo/porque meu passaporte estava quase vencido/ele fez a seguinte
pergunta :/será que eu não estaria falando na verdade/sobre a impossibilidade
de deslocar?” (...) “ao escrever eu estava preocupada/com o deslocamento”. O
deslocamento evoca uma geografia, no que temos : “ao escrever é possível pensar/em
termos geográficos :/a gente constrói uma cartografia/e pouco a pouco/vai
desenhando e/descrevendo linhas/formas curvas montanhas acidentes/caminhos e
superfícies”. O deslocamento se faz na linguagem, poesia, no que temos : “o que
era de fato/deslocar/na linguagem?/será que eu estava deslocando/ou só falando
em deslocar?” (...) “nesse momento de superfícies abertas/como lidar com a impossibilidade/de
sair do lugar?” (...) “seria mesmo o mundo/plano? ou em vez disso/uma
superfície acidentada/cheia de barreiras/muros comportas fronteiras/e linhas
demarcadas/que podem conter/o fluxo?”. A impossibilidade de se deslocar aqui se
confronta com linhas de demarcação, fronteiras, a tentativa de movimento e suas
contingências fazendo o objeto de angústia deste poema.
4 . : O poema opera novamente com
deslocamentos e as obra do acaso, no que vem : “na semana passada/eu ia para um
festival em juiz de fora/e tinha de me deslocar :/no aeroporto de congonhas/eu
tomaria um ônibus rosa/da empresa azul/para ir até o aeroporto de campinas/em
campinas eu tomaria um avião/para o aeroporto zona da/mata/que fica a uma hora
de juiz de fora”. As constatações, no que segue : “antes de sair de casa olhei
no mapa/para ver onde tomar o ônibus em são Paulo/cheguei lá em cima da hora/e
o ônibus estava vazio/depois de dez minutos nada” (...) “fui ao guichê da
empresa/dentro do aeroporto/e descobri que o lugar onde eu estava/não era o
ponto de ônibus/e sim o estacionamento de ônibus/e que o ônibus que eu ia pegar
já tinha/saído”. O lapso de Marília, que opera aqui como um tipo de gancho
poético, no que segue : “disse para o funcionário da empresa/que o mapa do site
estava/errado” (...) “o funcionário abriu o mapa no site/e me mostrou que não
tinha/nada errado/eu me enganara ao ler o mapa/o ponto ficava no lugar oposto/ao
que eu tinha imaginado”. A desorientação, produto de um erro de percepção
cartográfica, eis o jogo de Marília e tudo o que isto implica na geografia
intensa deste poema, no que vem : “ele me disse/que eu estava achando/que o
leste era o oeste – ou o norte era o sul/já não fazia diferença/eu tinha
perdido o ônibus” (...) “porque não soube ler o mapa” (...) “mas naquele
momento/eu ainda não sabia que o avião tinha hélice”. E a pergunta obsedante
sobre a hélice, como o leitmotiv deste poema imenso dividido em várias partes.
5 . : O poema, a imagem da hélice, e
novamente um poema de Drummond vem à memória da poeta Marília, no que vem : “quando
vi a hélice/na semana passada/lembrei de um poema/do drummond chamado/“a morte
no avião””. A ideia de movimento e sua relação direta com ação, a poeta Marília
coloca a sua reflexão dentro do poema, no que vem : “eu queria falar/sobre
movimento e ação :/queria pensar em como o deslocamento/da linguagem/caso da
colagem e da citação/poderia nos levar a ver as coisas de forma diferente”. A
colagem e a citação também como deslocamentos e transposições do poema, o
movimento aqui numa operação de linguagem, no que temos : “eu queria falar aqui/sobre movimento/mas só
consigo pensar na hélice que paralisa” (...) “eu queria contar/de um sonho
recorrente” (...) “que era assim :/eu estava voando numa/máquina voadora/e de
repente ela caía/como no poema do drummond". A queda da máquina voadora e
esta imagem evocando mais uma vez um poema de Drummond, no que temos : (...) “despencava do alto/furando as nuvens/na
vertical” (...) “ a cada sonho/era capaz de uma hora/furar o chão/e provocar
uma catástrofe”. A catástrofe da queda, furando em vertical o ar, eis o
encerramento desta parte do poema sobre a hélice.
6 . : Marília fala de seu poema sobre a
empresa de aviação novamente, e a notícia aciona de novo o leitmotiv, o
deslocamento todo do poema se dando pela hélice, tema obsedante deste poema
imenso, e a colagem de uma notícia de acidente aéreo e suas inúmeras relações
temporais e de lugares com todos os seus enigmas, no que temos : “o poema
“malaysia airlines voo MH 17”/tinha sido escrito a partir de notícias/tiradas
do site G1/assim recortei o texto do site/inseri quebras de verso/excluí informações/trocando
algumas coisas de lugar” (...) “durante o processo/tentava entender o acidente/a
partir do tom frio das notícias” (...) “também queria ver algo/que para mim/não
estava claro/queria olhar de outro lugar/mudar o foco”. As colagens da notícia,
feitas por Marília, agora a levam à reflexão do próprio poema e sobre a
linguagem, no que vem : “seria possível deslocar as palavras/de modo a produzir
alguma coisa/que eu não estava vendo?”. Este deslocamento da linguagem como um
deslocamento da própria percepção, no que temos : “eu tentava reaprender a ver
:/recortar e colar selecionar/uma palavra para colar em outro ponto/como numa
ilha de edição”. E a poeta Marília se debruça sobre o poema, e se coloca a
escrever, no que vem : “ao escrever o poema/tentava repetir os gestos que
fazemos/ao escrever nas várias telas hoje :/deslocar com a mão” (...) “e eu
fiquei tentando escrever um poema/com a mão e eu fiquei tentando
pensar/no que vai acontecer” (...) “com esses deslocamentos de agora/entre tantas telas”. O
deslocamento aparecendo em seu caráter obsedante aqui para Marília, produto de
toda a sua reflexão poética.
7 . : A poeta Marília evoca agora um livro
sobre a poesia, e este coloca o tema da fala-aventura, aqui, para Marília, mais
um mote dela para seu grande poema sobre o deslocamento, sobre a hélice e o
movimento, encarado aqui no mundo real e no mundo da linguagem, isto é, como
tema poético, no que temos : “lendo um livro da silvina rodrigues Lopes/anotei
uma citação que dizia o seguinte : “para a poesia continuar/é preciso construir
falas-aventuras/que abram caminho através do desconhecido”. Tais modos da
fala-aventura serve para abrir caminhos, a respiração aqui se dá como poesia e
ação, no que vem : “um dia fui falar este texto que vocês estão lendo/em um
evento chamado/poesia e ação/depois fui falar este mesmo texto/em um evento
chamado/cinema-ao-vivo/e depois em outro evento chamado/em obras”. Os eventos
se sucedem e seus temas estão interligados numa mesma ideia, a ideia de Marília
para o seu grande poema, no que segue : “e eu não sabia como desenvolver a
tópica da aventura/esqueci de dizer que quando apresento/este texto ao vivo vou
projetando/várias imagens enquanto leio” (...) “vocês podem pensar na imagem
que quiserem/enquanto prosseguimos/mais ou menos assim :/cada pedaço de texto
como este/deve ter uma ou mais imagens número/correspondentes”. E a notícia do
acidente aéreo, aqui como proposta de tema para a poesia, ideia da poeta
Marília, no que temos : “para o acidente/da malaysia Airlines/basta digitar no
google o número do voo/e pegar alguma imagem” (...) “de todo modo/depois dessas
apresentações/encontrei enfim o texto da silvina rodrigues Lopes/e voltarei a
ele na parte 14”.
8 . : Marília reflete então se esta
notícia sobre um acidente aéreo tinha produzido de fato um poema, no que temos
: “quando enviei o poema da malaysia airlines/para uma revista que tinha me
encomendado/um texto não consegui chamá-lo de “poema”/expliquei aos editores
que era/uma “aventura”/o tema da revista era o amor fati/amor que se tem ao
fado ao destino/e a pergunta
que eu queria fazer sobre o acidente era :/como aceitar na vida o imponderável?”.
O poema era, na verdade, uma aventura, e o amor fati tem seu confronto com o
imponderável, o senhor das situações, no que temos : “de um jeito ou de outro/eu
estava tentando explicar e justificar/o que estava fazendo/sentia um
desconforto duplo :/um pouco pelo texto um pouco pela expectativa/que temos
do que é um poema”. A expectativa de um poema nem sempre dá em um poema, e a
pergunta que aparece, enfim, é do que se trata um poema : “afinal/do que
falamos quando falamos de poesia?/ela me perguntou/e eu paralisei”.
9 . : Marília apresenta publicamente o poema
sobre o acidente aéreo, e uma pessoa presente no público confunde seu nome por
duas vezes, no que temos : “apresentei este texto pela primeira vez/em 2014 depois
que terminei a leitura/uma pessoa levantou da plateia e veio me fazer/uma pergunta”
(...) “ele foi até o microfone/que ficava em frente ao palco/e perguntou :/qual
é o seu nome?/e eu disse/marília/e ele disse como?/e eu repeti/e ele falou/maria”
(...) “mas voltando à
pergunta/mesmo sem poder se dirigir a mim pelo nome/ele seguiu no microfone/e
falou :”. O questionamento se dá então em torno da hélice, no que vem : ““você
disse que quando vê uma hélice/sente medo/queria saber o que você sente/quando
vê uma turbina””. O poema de Drummond aparece, e segue : “eu olhei para ele e
fiquei sem ar/eu pensei na hélice do drummond e paralisei” (...) “depois me
contaram/que aquele era o ernesto neto um artista plástico/do rio que gosta de
pendurar bolas de chumbo/em tules de lycra” (...) “na saída/encontrei a
veronica stigger/e ela me disse :/mas a turbina é uma hélice coberta” (...) “e
eu fiquei me perguntando/se não ver a hélice fazia alguma diferença”. O que era
uma hélice, afinal, encerra o questionamento desta parte do poema.
10 . : O poema segue agora um périplo
histórico e o que isto implica na ideia motora do poema de Marília, no que
segue : “Em 1912 o artista francês/marcel duchamp foi ao salão de tecnologia
aeronáutica/na frança e ficou deslumbrado/quando viu uma hélice contam que ele
chegou no salão/olhou para o objeto e disse :” (...) ““a pintura acabou/quem
poderia fazer uma hélice assim com mais perfeição?”” (...) “no ano seguinte ele
fez o seu/primeiro ready made roda de bicicleta”. O ready made e seu mote, de
novo, que se volta para a hélice, no que vem : “e eu fiquei imaginando/como
deveria ser a hélice que o marcel duchamp/viu no salão de aeronáutica” (...) “e
então eu mesma fui ao salão de aeronáutica/de paris que existe até hoje/e
passei um dia andando/entre hélices e drones e máquinas voadoras/e enquanto
olhava para os dispositivos de/deslocamento fiquei tentando imaginar/como seria
a hélice do duchamp/teria sido uma hélice como aquelas do salão?/uma hélice
natural como a da wikipedia?/ou uma estrutura helicoidal como a dos dnas?”. O
salão de aeronáutica e a especulação insana em torno da hélice de Duchamp
encerram esta parte do poema.
11 . : Segue Marília em suas descrições
históricas, agora com o clássico helicóptero do renascentista Leonardo Da
Vinci, no que segue : “Em 1480 leonardo da vinci/começou a fazer uma série de
desenhos/para máquinas voadoras/uma delas era um protótipo de helicóptero/feito
de madeira e tela/ele tinha uma hélice que deveria ser impulsionada/por duas
pessoas pedalando juntas”. O questionamento em torno da hélice ganha uma
proporção épica, este grande poema é um percurso imenso, e aqui se torna uma
vertigem histórica, no que temos : “os helicópteros não têm hélice/o que gira
neles se chama rotor/mas a máquina voadora de da vinci/era um helicóptero de
hélice/e se chamava “la hélice””. Marília segue, aqui, agora como uma espécie
de poeta-historiadora, no que segue : “os helicópteros ainda levariam séculos/para
sair do papel e só nos anos 1940/alcançariam a estabilidade/com fins militares”
(...) “de todo modo/o primeiro voo de helicóptero bem-sucedido/ocorreu nos anos
1910 na frança/e foi na mesma época/em que marcel duchamp/viu aquela outra
hélice/no salão da aeronáutica”. E a coda desta parte faz um arremate histórico
retomando Duchamp e o salão de aeronáutica.
12 . : Aqui, nesta parte do poema, Marília
opera com o acaso um mistério cheio de significado, uma lógica desconhecida que
provoca e evita desastres, dividindo a fronteira entre a vida e a morte, e a
poeta Marília se torna, aqui, uma agente deste deslocamento de corpos, e de
conservação da vida, no que vem : “Em 2009 eu estava na frança/e minha mãe foi
me visitar/meu padrasto comprou a passagem para ela ir/no voo 447 da air france”
(...) “ele me ligou/para confirmar os dados do voo :/minha mãe sairia do rio de
janeiro/no domingo 31 de maio/e chegaria em paris na segunda-feira 1° de junho”.
Eis uma ação pontual, aparentemente banal, mas que opera um deslocamento de
sobrevivência e de salvamento, no que segue : “mas eu preferia que ela chegasse/no
domingo e não segunda/para ir ao aeroporto buscá-la/então perguntei ao meu
padrasto/se ele poderia trocar a passagem por outra/que saísse na véspera”
(...) “meu padrasto trocou a passagem/que tinha comprado pra ela no voo 447 da
air france/por uma passagem pela TAM saindo do/rio de janeiro na véspera” (...)
“minha mãe saiu do rio de janeiro no sábado 30 de maio/e chegou no aeroporto
charles de gaulle/no domingo 31 de maio” (...) “o voo 447 da air france/saiu do
rio de janeiro como previsto/no domingo 31 de maio/e caiu no meio do oceano
atlântico/na madrugada do dia 1° de junho”. O acidente aéreo acontece, e um
pequeno milagre do deslocamento coloca o acaso de uma ação na sua misteriosa
confluência com forças desconhecidas, a imagem poética aqui coloca o
deslocamento, também, como agente de ações milagrosas, no que segue : “dia 1°
de junho era feriado na frança/e eu não tive compromissos de trabalho/como
imaginei que teria quando pedi/ao meu padrasto para trocar a passagem/da minha
mãe”. Uma ação simples da poeta Marília operando na linha demarcatória entre a
vida e a morte.
13 . : Marília coloca em dúvida, de novo, o
estatuto de poema, este que foi escrito sobre o acidente aéreo, no que vem : “quando
enviei para uma revista o poema/sobre o acidente da malaysia airlines/senti um
desconforto/porque havia um desencontro entre o que era o texto/e a ideia que a
gente tem do que é um poema”. Ela descreve como fez este poema, dá detalhes, no
que temos : “durante a escrita/tinha tentado justapor as cenas/de acaso e
engano/me fazendo algumas perguntas : engano/será que o avião tinha sido mesmo
abatido/por engano? como lidar com o/acaso/como nesta história do comissário
que decide voar/num dia em que deveria folgar?/seria possível escrever sobre
isso?”. A questão do acaso como uma questão filosófica nevrálgica aparece aqui
no poema como um marcador de toda a sua reflexão, junto com esta ideia
obsedante sobre o deslocamento, e o fetiche deste grande poema, a hélice, no
que temos : “ao ver a hélice no avião que ia para juiz de fora/não podia deixar
de pensar/na explosão do avião da malaysia airlines/e no acidente da air france/do
qual minha mãe tinha escapado”. Marília propaga suas ideias fixas, e as coloca
numa oficina, dando isto ao mundo, no que temos : “dois meses depois de fazer esse poema/dei uma
oficina em salvador e pedi como exercício/um poema feito a partir do recorte/das
mesmas notícias tiradas do site do G1”. O exemplo do poema de um aluno de sua
oficina literária opera aqui mais um looping, o deslocamento se aprofunda aqui,
criando uma nova camada, aqui, em um poema dentro de outro poema, no que temos
: “o saulo moreira fez um poema/misturando essas notícias com a morte da carol/prima
dele que tinha sofrido um acidente/de carro na semana anterior :/para carol”.
Este poema, contudo, é sobre o mesmo tema dominante, mas opera dentro de seu
próprio entorno, misturando fatos, no que temos : “carol caiu na ucrânia perto
da fronteira com a Rússia/carol ficou sozinha durante quase 17 horas quase 24
horas/numa estrada próxima da casa da minha mãe/minha mãe mora em Itapetinga”
(...) “carol amava minha mãe/carol voava normalmente,/sem registros de
problemas, até desaparecer do radar/carol não morava em Itapetinga/minha mãe
mora em Itapetinga”. A descrição se torna chocante, ao fim : “carol quebrou/o
pescoço/ninguém ouviu o barulho dos ossos” (...) “há fatos difíceis de analisar/154
holandeses 43 malaios incluindo tripulantes e 2/Crianças 27 australianos 12
indonésios incluindo uma/Criança 9 britânicos 4 belgas 3 filipinos 1 canadense
e/carol”.
14 . : Marília retorna a seu habitat e
evoca a hélice em toda a sua intensidade, que é o tema do poema, para além da
ideia de deslocamento, no que temos : “apresentei este texto uma vez/em
guarulhos cidade ao lado de são paulo/onde fica o maior aeroporto do país”
(...) “deve ser um dos lugares com mais hélices e turbinas/do continente essas
hélices todas/servem para fazer a gente se deslocar/e esse lugar serve para
receber/as pessoas que se deslocam”. O aeroporto de Guarulhos e sua profusão de
hélices, lugar que opera deslocamentos brutos e intensos, tanto dos grandes
aviões como do som ensurdecedor de suas turbinas, no que temos : “estou
querendo falar de guarulhos/para lembrar que há cinco anos eu mesma/cheguei
naquele aeroporto para morar/em são paulo e nessa época nunca tinha visto/um
avião de hélice”. O enigma do fio invisível que conduz todas as coisas e o
deslocamento feito pelas hélices, tudo interligado, e temos : “eu queria falar
da hélice quando gira/e produz ação e eu queria falar do caminhão/se deslocando
com a mudança/e eu queria falar do poema/caminhando junto com esse fio
invisível/que faz mover as coisas”. A ação faz mover as coisas, atuar neste
deslocamento é a participação e a ação direta da poeta e de sua poesia, de sua
vida, a poeta Marília avança, se movimenta, e reflete sobre estes movimentos
brutais de um aeroporto, no que vem : “e do céu repleto de zepelins/em
movimento e das ondas
sonoras/que atravessam o ar”. E retoma a ideia poética da fala-aventura, no que
temos : “buscando diferenciar as falas-aventuras/das outras falas/a silvina
rodrigues lopes escreve :” (...) ““se aceitarmos que há na vida das pessoas/e
na cultura dos povos/aquilo de que não se pode falar/e aceitando que o
poemático é uma das manifestações disso/devemos admitir que há uma fala que não
fala de” (...) “eu queria que fosse uma fala que fala com/talvez uma fala de
aproximação e de encontro”. A fala-aventura encontra e se encontra, o poema se
faz como uma coda final deste deslocamento que chega ao seu destino, feito de
ação, movimento e hélice.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/marilia-garcia-em-seu-deslocamento-poetico-1
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