PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

ENSAIO BEAT


“Neal Cassady já tinha roubado sete carros naquela noite de benzedrina”

  A rocha não teme toda a bruma que vem candente, o vinho ébrio traz a astúcia de todo poema, naufraga Rimbaud, desce ao inferno seu esplendor ao ato de suicídio literário, a viagem toma a tela da tempestade, vejo atônito passar por uma ruela Allen Ginsberg dando baforadas estupefatas com Peter Orlovsky. Neal Cassady já tinha roubado sete carros naquela noite de benzedrina, o adrenocromo ficava na mente de uma demência jornalística, seu mestre gonzo, o guru dos desajustados profissionais, Hunter Thompson. Não sobraria da nau bêbada do que restou de Rimbaud senão a peste assassina de um Villon em fuga para o paraíso do esquecimento. Acordava numa tarde de ressaca Jack Kerouac com sua datilografia para ofender com escrita automática os pruridos racionais e de espírito de coerência de um grande dos grandes Truman Capote. Neal pega uma ferrari em Las Vegas e chama Kerouac para um passeio a 180 Km/h até Denver para escutar Jazz em New Orleans e encontrar Burroughs descansando depois de um pico, num acumulador de orgones. Ginsberg então fica puto por não estar lá, por ter se perdido no caminho, em busca do “grande poema”, e teria que ser antes de fazer 23 anos, pois dos 30 para frente a fruição jovem dá lugar a uma dureza de expressão que tem muito de ritmada, mas não proclama mais as vísceras do tempo, do seu próprio tempo, o tempo do mundo dentro da cabeça e do tempo do artista, depois são ondas, ondas grandes, mas o grande maremoto, o poema do apocalipse, este só uma cabeça jovem poderia fazer, e nada mais restaria senão ecos desta grande hecatombe, o caos que Ginsberg percorria era “jazzy” e delirava como um cão fugido do cativeiro, mas “o cara” mesmo era Neal e sua jovem cabeça de poeta sem escrita, de poeta da vida e não da palavra, arranhando biografias inacabadas e morrendo num trilho depois de cair ébrio num colapso físico que lhe esperava com as mãos ansiosas.
   A tragédia remonta novamente na prosa beat, Kerouac morre no seio materno com delírios republicanos e sede alcoólica que lhe mata de tanto que ficou na frente da televisão. Ginsberg sobrevive, Ferlinghetti edita toda a loucura daquela América que vinha de Mark Twain e Thomas Wolfe, de onde Kerouac surgiu e depois desaguou na onda de um trompete de Dizzie Gillespie e no ritmo sincopado e frenético de outro trágico da heroína, mais um, o sax-alto Charlie Parker, que voava como Bird em seu horse que lhe envelheceu na casa dos trinta. A música sempre foi a grande aliada da literatura, a música é a grande arte, a literatura dos boêmios é só um reflexo dos tímpanos, a escrita precisa do delírio auditivo para eclodir, e a onda só vem no topo de gênios musicais.

                   Passava por Denver, encontro a rapaziada,
                   Todos bêbados, loucos para viajar,
                   Passava por New Orleans, Old Bull Lee
                   Ensinava o caminho para os novatos,
                   A estrada era longa, a metafísica da estrada!
                  O “conhece-te a ti mesmo” sobre rodas,
                  A poeira deixada pelo acelerador
                  Como a cosmologia fundamental
                  Que compõe o poema
                  Que nasce no reflexo de um trompete,
                  No frigir de um sax, no estalo
                  Do vento na cara e na luta por viver
                  De uma maneira louca, o modo dos
                 Corajosos, os idiotas que são espertos,
                 Os que contam o dinheiro que acaba
                 Antes do destino, a gasolina que se perde
                 Na velocidade do risco, Neal pilotando
                 Sua nau de quatro rodas e motor turbinado,
                 A navegação dá lugar à estrada,
                 A viagem de Rimbaud à África
                 Transmutada em raio cósmico
                  Na estrada rumo ao Oeste mítico,
                  No fim a vastidão do Pacífico,
                  Os olhos no horizonte sem fim,
                   A estrada dos olhos no fim da
                   Estrada de chão,
                   Ginsberg grita bêbado,
                   Kerouac toma benzedrina
                   Para acreditar no que via,
                   Neal cheira gasolina,
                   Burroughs sorri em sua casa
                   Depois de mais um pico
                   Para embarcar no horse místico,
                   A geração beat estava pronta,
                   Kerouac já estava em condições
                   De escrever a sua grande história,
                   Neal, o herói, Burroughs, o mestre,
                   Ginsberg, o poeta ideal em busca
                    Do grande poema que seria
                    A consumação de toda a metafísica
                    De todos os poemas e poetas do mundo
                    Num atingir infalível do “It” do Jazz.

   Eu passo pelas notas febris de On The Road, tudo brilha como fogo na montanha do miasma frenético dos poemas de Ginsberg, misturo O Uivo com Miles Davis e dá pura poesia nova! A guerra já se foi como tema, coisa de menino que fuma erva. A nota do It agora é a meta, não há o grande poema, o que tem mesmo é a festa da palavra, e tudo consuma para além da palavra, estrangulamento da linguagem no eletro-choque da música, o não-verbal do Jazz invadindo a palavra que vasa dos poros da mente à mão e daí ao papel, que importa! Vamos em frente! Vamos! Pela última nota que será sempre a primeira, por todas as palavras que sempre serão transcendência, magia e poesia totalizante, vamos deglutir os morfemas e trazer na sonora canção a flor revolta da paixão que sorri na tarde que brilha nos dentes, pois da estrada até a praia, do mar até o horizonte, tudo é poesia!
(POEMA EM PROSA)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :  http://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/ensaio-beat



      

 

 

 


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