“Neal Cassady já tinha roubado sete carros naquela noite de
benzedrina”
A rocha não teme toda
a bruma que vem candente, o vinho ébrio traz a astúcia de todo poema, naufraga
Rimbaud, desce ao inferno seu esplendor ao ato de suicídio literário, a viagem
toma a tela da tempestade, vejo atônito passar por uma ruela Allen Ginsberg
dando baforadas estupefatas com Peter Orlovsky. Neal Cassady já tinha roubado
sete carros naquela noite de benzedrina, o adrenocromo ficava na mente de uma
demência jornalística, seu mestre gonzo, o guru dos desajustados profissionais,
Hunter Thompson. Não sobraria da nau bêbada do que restou de Rimbaud senão a
peste assassina de um Villon em fuga para o paraíso do esquecimento. Acordava
numa tarde de ressaca Jack Kerouac com sua datilografia para ofender com
escrita automática os pruridos racionais e de espírito de coerência de um
grande dos grandes Truman Capote. Neal pega uma ferrari em Las Vegas e chama
Kerouac para um passeio a 180 Km/h até Denver para escutar Jazz em New Orleans
e encontrar Burroughs descansando depois de um pico, num acumulador de orgones.
Ginsberg então fica puto por não estar lá, por ter se perdido no caminho, em
busca do “grande poema”, e teria que ser antes de fazer 23 anos, pois dos 30
para frente a fruição jovem dá lugar a uma dureza de expressão que tem muito de
ritmada, mas não proclama mais as vísceras do tempo, do seu próprio tempo, o
tempo do mundo dentro da cabeça e do tempo do artista, depois são ondas, ondas
grandes, mas o grande maremoto, o poema do apocalipse, este só uma cabeça jovem
poderia fazer, e nada mais restaria senão ecos desta grande hecatombe, o caos
que Ginsberg percorria era “jazzy” e delirava como um cão fugido do cativeiro,
mas “o cara” mesmo era Neal e sua jovem cabeça de poeta sem escrita, de poeta
da vida e não da palavra, arranhando biografias inacabadas e morrendo num
trilho depois de cair ébrio num colapso físico que lhe esperava com as mãos
ansiosas.
A tragédia remonta
novamente na prosa beat, Kerouac morre no seio materno com delírios
republicanos e sede alcoólica que lhe mata de tanto que ficou na frente da
televisão. Ginsberg sobrevive, Ferlinghetti edita toda a loucura daquela
América que vinha de Mark Twain e Thomas Wolfe, de onde Kerouac surgiu e depois
desaguou na onda de um trompete de Dizzie Gillespie e no ritmo sincopado e
frenético de outro trágico da heroína, mais um, o sax-alto Charlie Parker, que
voava como Bird em seu horse que lhe envelheceu na casa dos trinta. A música
sempre foi a grande aliada da literatura, a música é a grande arte, a
literatura dos boêmios é só um reflexo dos tímpanos, a escrita precisa do
delírio auditivo para eclodir, e a onda só vem no topo de gênios musicais.
Passava por Denver, encontro a rapaziada,
Todos bêbados, loucos para viajar,
Passava por New Orleans, Old Bull Lee
Ensinava o caminho para os novatos,
A
estrada era longa, a metafísica da estrada!
O
“conhece-te a ti mesmo” sobre rodas,
A
poeira deixada pelo acelerador
Como a cosmologia fundamental
Que
compõe o poema
Que
nasce no reflexo de um trompete,
No
frigir de um sax, no estalo
Do
vento na cara e na luta por viver
De
uma maneira louca, o modo dos
Corajosos, os idiotas que são espertos,
Os que
contam o dinheiro que acaba
Antes
do destino, a gasolina que se perde
Na
velocidade do risco, Neal pilotando
Sua
nau de quatro rodas e motor turbinado,
A
navegação dá lugar à estrada,
A
viagem de Rimbaud à África
Transmutada em raio cósmico
Na
estrada rumo ao Oeste mítico,
No fim a vastidão do Pacífico,
Os
olhos no horizonte sem fim,
A
estrada dos olhos no fim da
Estrada de chão,
Ginsberg grita bêbado,
Kerouac toma benzedrina
Para
acreditar no que via,
Neal
cheira gasolina,
Burroughs sorri em sua casa
Depois de mais um pico
Para
embarcar no horse místico,
A
geração beat estava pronta,
Kerouac já estava em condições
De
escrever a sua grande história,
Neal, o herói, Burroughs, o mestre,
Ginsberg, o poeta ideal em busca
Do
grande poema que seria
A
consumação de toda a metafísica
De
todos os poemas e poetas do mundo
Num
atingir infalível do “It” do Jazz.
Eu passo pelas notas
febris de On The Road, tudo brilha como fogo na montanha do miasma frenético
dos poemas de Ginsberg, misturo O Uivo com Miles Davis e dá pura poesia nova! A
guerra já se foi como tema, coisa de menino que fuma erva. A nota do It agora é
a meta, não há o grande poema, o que tem mesmo é a festa da palavra, e tudo
consuma para além da palavra, estrangulamento da linguagem no eletro-choque da
música, o não-verbal do Jazz invadindo a palavra que vasa dos poros da mente à
mão e daí ao papel, que importa! Vamos em frente! Vamos! Pela última nota que
será sempre a primeira, por todas as palavras que sempre serão transcendência,
magia e poesia totalizante, vamos deglutir os morfemas e trazer na sonora
canção a flor revolta da paixão que sorri na tarde que brilha nos dentes, pois
da estrada até a praia, do mar até o horizonte, tudo é poesia!
(POEMA EM PROSA)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/public/jornal/artigo/ensaio-beat
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