Dr. Kurtz era
formado em medicina e psicologia, se especializou em Jung e Lacan. Mas partiu
para experiências com hipnose e alucinógenos, depois começou a colher
conhecimentos técnicos para construir sua máquina dos sonhos, foi um trabalho
de duas décadas até que ele tivesse o primeiro protótipo, só que no primeiro
dia de funcionamento, no qual ele se autoaplicou hipnose e uma dose de morfina
para se adaptar melhor ao mecanismo, a máquina pifou.
Então, um pouco
arrasado, ele teve mais cinco anos para desenvolver um programa para aplicar ao
novo hardware, nesse meio tempo ele recrutou três voluntários para suas
experiências artificiais com o mundo dos sonhos. Foram chamados estudantes de
psicologia, os três eram João, Fernando e Helena. Tal tentativa seria secreta,
o objetivo final era produzir isto para o mercado para servir como uma nova
droga sem os efeitos colaterais das naturais e sintéticas, e ao fim comprovar
experimentalmente o êxtase místico dos estados nirvânicos.
Dr.Kurtz conseguiu
finalizar o programa F22 e terminou de fazer o hardware Soft. Foi sorteado o
primeiro a ser testado na máquina, foi João. Dr.Kurtz recomendou a João ler
Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley antes da experiência, foi o que ele fez,
e depois teve que fazer doze horas de jejum. Dr.Kurtz tinha uma previsão x, y e
z. A x era do efeito positivo, a y do efeito negativo e a z do efeito nulo,
parecia que ele ainda não sabia ao certo qual das três ia ser mais provável,
mas a aposta era, obviamente, na previsão x, o que levaria ao desenvolvimento
do programa F23, com a base empírica colhida das experiências com o F22.
João entrou na
máquina, algo semelhante ao compartimento de ressonância magnética funcional,
pois o corpo inteiro do paciente ficava dentro da Soft. Os barulhos, diferente
da ressonância, não eram toscos, eram metálicos. João ficaria, se na primeira
hora houvesse o efeito x, mais duas horas, para ter tempo do recolhimento de
evidências cerebrais do eletro-encefalograma e da ressonância magnética
funcional embutidos no F22. Se fosse o caso do efeito y, a experiência seria
imediatamente interrompida, e o efeito z teria um acréscimo de mais três horas.
Os cálculos dos
escaninhos de Dr.Kurtz o levaram a esta base teórica prévia, com base na
neurociência, na hipnose e na experiência alucinógena que ele se auto-aplicara
em condições controladas antes de sua pesquisa para a máquina de sonhos. O
protótipo, que tinha pifado, tinha dado efeito z segundos antes do resistor
derreter, a máquina de então era menor e não tinha um HD potente ou uma memória
suficiente, a carga elétrica danificou tudo, e Dr.Kurtz redobrou os esforços
para realizar a Soft, com núcleos múltiplos e coordenados, e com um gerador de
energia potente para segurar as horas de sessão.
Segundo a parte
técnica de passes magnéticos, teria a indução alfa e a theta. Isso já embutido
no F22, tal era o processo para a introdução no que Dr.Kurtz chamou de essência
da mente ou simplesmente o desconhecido, nomeado tecnicamente por ele como
estado ômega, no qual a base empírica de sua pesquisa poderia ser finalmente
começada. A questão era se esse estado realmente existia, pois na teoria de
seus escaninhos estava prevista esta hipótese, e que seria a base de todo o
desenvolvimento para o F23, que seria a passagem do ômega para a transcendência
absoluta do estado zeta, também ainda só previsto na teoria. Se houvesse,
porventura, persistências do efeito z ou a suspensão do efeito y, tudo teria
que ter base somente, por hora, em alfa e theta, já bem conhecidos
empiricamente pela ciência standard. Dr.Kurtz chamava o estado zeta de “o olho
de Deus”.
João então entrou na
máquina, com o corpo nu e besuntado com uma pasta fluorescente e relaxante. Nos
dez minutos iniciais foi iniciada a transição de beta para alfa, já aos 45
minutos começou theta, João não poderia falar nada, por enquanto, e as análises
do eletro-encefalograma faziam suas escalas senoidais com frequência regular.
Até então, nada de
errado, mas aos cinquenta minutos João começou a ter uma crise de soluços. A
máquina Soft já tinha sua carga elétrica do gerador triplicada na fração de um
minuto, o F22 resumia a atividade como “transição ômega irresoluta, código
3257-FG”.
O desconhecido de
Dr.Kurtz agora tinha uma base empírica, só que tecnicamente negativa, embora a
escala senoidal estivesse regular. Tecnicamente, código 3257-FG significava
erro de procedimento anterior não identificado, o que levaria Dr.Kurtz a
descobrir se tal se sucedeu em alfa ou theta, e apostou em theta, estado
próximo, o que ele confirmou teoricamente no escaninho. Mas, em seguida, teve
de fazer uma recarga magnética para anular o código de erro, e aí apareceu
código 11, isto é, processo normal em desenvolvimento harmônico, o que Dr.Kurtz
tinha apelidado de código suntuoso.
Agora, a partir de
uma hora de experiência, eureca, estado ômega confirmado, voo de cruzeiro,
código 11 reconfirmado, isto é, deu efeito x, a base empírica poderia ficar
pronta e os pressupostos dos escaninhos confirmados ou não. Das dez previsões
dos escaninhos, Dr. Kurtz confirmou todas as dez, pressupostos só baseados
então em especulações místicas de hipnoses sensacionalistas e de charlatães
natos, incluindo aí o truque da levitação, coisa que só monges tibetanos faziam
de verdade e com frequência.
Pressupostos
confirmados, efeito x com código 11 persistente, tudo dava certo. A Soft, então,
entra em mais uma carga, triplica de novo na fração de um minuto, a crise de
soluços de João volta, dá erro 3259-FG, só que no aspecto neurológico tudo
estava normal. Dr.Kurtz tentou corrigir o erro com sons metálicos específicos
dentro dos tímpanos de João, voltou o código 11, efeito x para mais duas horas
confirmado, depois disso, uma hora de sessão dialógica para descrição dos
sonhos, e agora todo o estado ômega poderia ser descrito oniricamente, ligando
a base empírica neurológica com a base empírica do relato do paciente.
Passaram mais duas
horas, código 11 persistente, mais o código 12 de recorrência interrompida,
isto é, os soluços, finalizado organicamente pelo corpo de João. E, de repente,
João falou a palavra frio, não estava prevista a verbalização antes de
finalizar as três horas de efeito x estabilizado, mas só foi isso, o F22 deu
código 3263-FG, desligado por novo código 11 sem intervenção do Dr.Kurtz.
A classe FG de erros
é abreviação de fiction genesis, isto é, a classe universal criada pelo
programa F22 para detectar erros e corrigi-los sem ou com a intervenção do
Dr.Kurtz. FG era uma classe regular de códigos de erros, que deveria ser
universal justamente para não sobrecarregar os núcleos da Soft, senão seria uma
progressão geométrica de códigos, impossível de um programa como o F22 e outros
mais desenvolvidos, ou qualquer processador, unir com racionalidade.
Dr.Kurtz estava
eufórico, as coisas finalmente estavam dando certo, o estado ômega tinha base
senoidal estendida, estado de relaxamento absoluto, a respiração de João seguia
regular, batidas cardíacas reduzidas, mas sem perigo de colapso. O código 11
continuava persistente, era a hora agora de ligar o microfone de João e
induzi-lo com o passe de toque das mãos.
Dr.Kurtz abriu o
capacete em que João sonhava, colocou os dedos indicadores sobre a testa de
João, apertou forte no meio, no terceiro olho, e depois deu um tapa na glândula
pineal, técnica tibetana para fazer sonhadores ficarem despertos ainda no
estado onírico.
João falou a palavra
frio de novo. Código 11 persistente, estável, agora com frequência do código 7
ainda intermitente, código que significava “desperto”. Dr.Kurtz deu mais um
tapa na pineal, apertou agora o terceiro olho com a ponta do dedão. Código 7
agora ficou pré-regular, mais um tapa na pineal, código 7 estável com harmonia
estável com o código 11. Agora, João diz a palavra urso. Dr.Kurtz pergunta:
“Polar?”. João responde : “Sim.” Dr.Kurtz pergunta então: “Por isso o frio?”
João responde: “Sim.” Entra código 8, “desperto para logorreia”. Dr.Kurtz então
sorri, dá mais um tapa na pineal de João, e faz um movimento em espiral com o
dedão direito no terceiro olho de João, passe hipnótico para estabilizar os
códigos 7 e 11 com o código 8, feito.
Dr.Kurtz diz a João:
“Comece a falar, aonde você está agora?” João começa: “É um lugar lindo, sinto
uma paz imensa, não quero sair daqui.” “Por quê?” “Não vou embora daqui, o frio
é bom, o urso polar fala e é meu amigo.” “O que ele diz?” “Que o mundo é uma
girândola, é só ter olhos pra ver.” “E você vê o que o urso vê?” “Ainda não, mas tá uma paz boa por aqui.” “Pergunte
ao urso aonde está o tesouro.” “Ele disse que está em volta, no ar.” “E o que
mais você vê?” “E o que você sente da paz? É sensorial?” “Sim, é sensorial.” “E
aí toca alguma música?” “Sim.” “Boas?” “Sim.” “Pergunte ao urso quem toca a música.” “ Ele
disse que é o sol.” “Mas aí não é frio?” “Mas o sol brilha o tempo todo.” “E sua visão
do sol, é sensorial?” “Com a música e a luz parece uma massa sonora de prazer.”
“Me fale do prazer, é durável?” “Sim.” “Então, achou o tesouro?” “Acho que sim, está
na massa sonora e de luz.”
Dr.Kurtz anotava
tudo em um caderno, junto com os pressupostos e cálculos dos escaninhos
confirmando teses, e faria disso um relatório das experiências sob o prisma de
uma psicologia particular criada por ele, que comportava uma tese cósmica (ou
cosmológica) da mente para além dos aspectos neurológicos.
A descrição de seu
paciente da massa sonora e de luz para o Dr.Kurtz esclarecia a predominância do
sensorial quando em estado onírico, e a tese cósmica passava necessariamente
por estas interpretações práticas do mundo onírico. Muito para além do processo
psicanalítico, Dr.Kurtz queria explorar ao máximo suas mentes cobaias para
alcançar o Graal em que se esconde o êxtase místico.
O uso tecnológico já
se inteirava, a propósito, de uma larga experiência de realidade aumentada já
no ano de 2025. Só que no caso de Dr.Kurtz, ele não estudava as interações
virtuais e informacionais de óculos scanners, mas sim a tese antiga do mundo
onírico em seu estado literal, sem a mediação a posteriori como se fazia no
tempo de Freud. A tese cósmica ou cosmológica da mente para Dr.Kurtz era uma
verdadeira obsessão e uma certeza absoluta, já que no Budismo ele tinha a intuição
perfeita destas evidências.
A realidade
aumentada, para o Dr.Kurtz, não passava de uma corruptela se comparada aos
estados alterados e oníricos da mente, seu estudo era comprovar
experimentalmente a conexão cosmológica que existe entre a mente humana e a
Mente do Universo como nas histórias tibetanas e afins. Seu arcabouço passava,
então, pelo conceito de harmonia, como se a mente humana, que também tem uma
essência espiritual, fosse um instrumento de afinação em função do gozo final
do êxtase nirvânico. O Nirvana, para Dr.Kurtz, era uma realidade, e seu
trabalho era comprovar em experimentos tecnológicos de indução de que tudo é
possível.
Dr.Kurtz se
incomodava com a predominância do paradigma neurocientífico dos estudos da
mente nas últimas décadas. Lhe aporrinhava o saco só de imaginar uma tese tão
reducionista ser a palavra final sobre a existência e sobre a essência da mente
humana, pois um órgão como o cérebro provava todas as teses autorreferidas,
fechando o campo para uma conexão mais ampla, e Dr.Kurtz sabia que não poderia
abrir mão do método experimental para enfrentar tais limites, pois dos
paradigmas, a ciência inescapável ainda era o experimento, e não uma ideia
intuitiva de um conceito metafísico puro. A metafísica não teria poderes de
subverter tais teses da neurociência. Dr.Kurtz só tinha uma alternativa: fazer
dos experimentos oníricos a ponte que vai à essência espiritual da mente, e com
a descrição de suas pesquisas comprovar a existência do estado místico do
Nirvana.
Dr.Kurtz estudava,
enquanto fazia as experiências do Soft com o F22, a criação de um novo programa
que plasmaria imagens oníricas na tela do computador de acordo com as
descrições dos pacientes, e criar um indicador de sensações como um termômetro
mental. O Nirvana passa além do limite até aqui de suas possibilidades
experimentais, mas Dr.Kurtz jamais desistiria de dar a boa nova um dia.
A experiência com
João durou mais duas horas, efeito x estável pelo resto do tempo, voo de
cruzeiro. Dez minutos antes de terminar, Dr.Kurtz deu o passe longitudinal e
dois transversais, fez movimentos circulares, e deu um tapa na pineal de João, e
conseguiu, com isso, encerrar a sessão em estado alfa a um minuto do fim. Dez
segundos, e beta retorna, o Soft desliga automaticamente com a detecção.
Dr.Kurtz se deu por
satisfeito, e sorteou o segundo paciente: Helena. Ele teria que usar um pouco
de hipnose desta vez, mas com uma técnica criada por ele mesmo, baseada em
experiências de desobsessão ainda em suas viagens no Tibete. Ele sabia que o
sistema nervoso central inadequado para as interações mediúnicas poderia
facilmente transgredir da incorporação ou manifestação para a pura sugestão,
sendo reservada tais ações a pessoas aptas psiquicamente para tais eventos, já
que se tornou muito comum uma difusão do fenômeno mediúnico que nem sempre é
verdadeiro, isso passando ao largo das necessariamente rígidas recomendações do
Espírito da Verdade na seleção das informações do além. Mas, Dr.Kurtz era
cientista, e sabendo disso, ele queria restringir o escopo de suas experiências
ao aspecto mental e onírico, e não para uma expansão da consciência no sentido
mediúnico. Sua técnica ele apelidou de “sugestão lemniscata”.
Helena entrou na
Soft, a técnica de “sugestão lemniscata” seria aplicada, esta consistia na
hipnose de indução mística e de êxtase, um passe magnético conduz o paciente
por palavras-chave para o estado simulado de Nirvana. A sugestão lemniscata
trabalhava experimentalmente com bases paradoxalmente metafísicas, e era uma
operação da linguagem para efeitos empíricos na mente humana.
No Tibete, Dr.Kurtz
conseguira abrir uma exceção com um monge, e teve a oportunidade de aprender a
técnica, que depois ele recriou com o nome de lemniscata. Tudo começava pela
operação de palavras-chave na língua do paciente, e depois de mantras tibetanos
já na onda theta. Helena entrou em theta pela sugestão lemniscata em 15
minutos, o efeito x se deu, e o código 11 era estável. Dr.Kurtz sentia que
agora o trabalho com Helena seria mais fácil do que com o de João, e que seus
escaninhos receberiam confirmações inumeráveis de seu mapeamento obsessivo da
mente espiritual, só que em bases de experimento, sendo a Soft seu prisma para
esta luz interior.
O código 7 de
desperto e o 8 de desperto para logorreia entraram em harmonia, e a sugestão
lemniscata já depois dos mantras entrou na fase de passes magnéticos levemente
agressivos sobre a glândula pineal de Helena. Dr.Kurtz conseguiu uma rápida
condução à ômega e começou uma entrevista surreal com Helena: “O que você vê e
ouve?” “Não sei, vejo mandalas coloridas e sons psicodélicos, parece que estou
num festival dos anos 60.” “E quem é o cantor?” “Uma voz influenciada pelo
blues, mas me parece que é rock.” “Em que língua ele canta?” “Inglês, sim, eu
sinto, estou numa regressão!” (A esta altura Dr.Kurtz ficou extremamente
confuso e preocupado, não tinha nada de seus escaninhos que previra episódios
de regressão, ele não tinha colocado o viés reencarnacionista como previsão
empírica em suas hipóteses com o uso racional do F22).
Dr.Kurtz tentou
rabiscar na hora uma solução técnica para o episódio, mas a regressão se
aprofundou em Helena. Os escaninhos de Dr.Kurtz naquele momento de nada
serviam, e nem em ômega ele contaria com tal peça pregada por estruturas
desconhecidas da mente humana.
Mas, agora ele não
tinha nada mais a fazer além de continuar esta entrevista insólita e agora
perigosa: “Em que ano você está?” “Acho que em 1967, estou no Festival de
Monterrey, tomei LSD.” “O efeito é bom?” “Por enquanto é, mas estou lembrando,
terei uma bad trip!” Nesta hora Dr.Kurtz gelou, como poderia lidar com um
efeito duplo de regressão e alucinógeno. Nada do que ele tinha anotado com suas
experiências auto-induzidas com drogas tinha associação com um efeito
regressivo de uma encarnação prévia.
E Helena gritou: “Meus
braços estão derretendo, quero arrancá-los!” Dr.Kurtz viu um código 15 que
definia “estado de pesadelo”. Dr.Kurtz então pergunta: “Como termina a
história?” “Eu sou internada numa clínica, fiquei em surto.” “Qual é seu estado
mental no festival?” “O som da música passou a me dar náuseas e paranoia.” “Que
tipo de paranoia?” “De estar sendo observada por investigadores disfarçados.” “Quanto
tempo durou esta viagem? Lembra?” “Eu só saí do surto depois de 2 anos, perdi
20 quilos.”
“Ainda está em 1967?”
“Perdi a noção do tempo, só sinto horror, e continuo querendo arrancar meus próprios
braços, eles viraram tentáculos de polvo, o horror!” “Quem te levou embora do
festival?” “Uma ambulância.” “Ainda vê coisas irreais no caminho?” “O rosto do
enfermeiro não é deste mundo.” “Como sabe?” “Eu vejo!” “E o que você vê?” “Seu
rosto é de um assassino!” “Seu delírio persecutório é grave, achas que vai ser
assassinada?” “Não.” “Mas o enfermeiro não vai te matar? Ele não é um
assassino?” “É!” “Mas por que ele não te matou?” “Por que me deram sonífero e
apaguei, não vi mais nada, acordei num quarto branco sem nenhum objeto.”
“Continua sendo
observada?” “Sim, pelo panóptico!” “E quem está por trás do panóptico?” “Gente
ruim.” “E como você sabe que eles são maus?” “Por que são todos assassinos,
todos querem me matar!” “E por que ainda está viva? Será que eles são maus
mesmo, ou apenas estão te tratando?” “Não sei, só quero arrancar meus braços.” “É
o efeito da droga, o LSD?” “Mais ou menos.” “E o que é, além disso?” “Artimanhas
do demônio.”
“Você tem religião?”
“Fui criada em família luterana.” “Já foi exorcizada alguma vez nesta sua
encarnação prévia?” “Sim, dois dias depois de minha internação um padre entrou
na clínica com autorização de meu pai para exorcizar-me” “Mas luteranos acreditam
nisso?” “Alguns.” “E o que aconteceu no exorcismo?” “Um espírito de nome Azael
entrou em mim.” “Era um demônio?” “Um obsessor.” “E o que ele disse?” “Que ia
me levar à loucura.” “E ele conseguiu?” “Por dois anos.” “Mas não foi o
tratamento que te curou? Ou o exorcismo funcionou?” “As duas coisas
contribuíram.”
“Mas quem era de
fato Azael?” “Alguém que queria se vingar de mim.” “Por quantas encarnações?” “Desde
o século XVIII.” “E ele se achou vingado?” “Quando eu tive a bad trip ... acho
que sim.” “E o que você sente e vê neste seu surto? O que é o principal?” “Meus
braços derretem e viram tentáculos, nascem cobras de minha barriga.” “E pra
você é real?” “Sim.” “Mas não é um surto?” “Me parece que as coisas não são tão
definidas como se nos apresenta.” “E por que você acha isso? Se explique.” “Eu
flertei com o zen-budismo meses antes do festival, e aprendi que no koan as
coisas são contraditórias.” “E qual é a lógica disso? Constitui paradoxo? São
duas realidades numa só?” “Sim e não.” “Portanto é.”
“O surto resulta de
minha irresponsabilidade com as drogas, mas tem a vingança de Azael também.” “E
depois da manifestação com o padre, ele se foi?” “Sim.” “Então, depois de dois
anos seus membros e sua barriga voltaram ao normal?” “Sim.” “E as cobras que
saíam de sua barriga, para onde elas foram?” “Voltaram e entraram pela minha
garganta e saiu uma tênia na minha evacuação.” “Teve diagnóstico de cisticercose
também?” “Um mês depois, sim.” “Mas sumiu por milagre? Poderia ter ficado louca
para sempre!” “Os ovos sumiram sem explicação, os médicos do tratamento não
entenderam nada.” “E o LSD? Que papel teve no seu acidente psíquico?” “As
alucinações com os membros e as cobras.” “E Azael?” “As vozes e o delírio
persecutório.”
“Volta ao festival.
O que veio antes da bad trip?” “Sensação de união mística com a música.” “Quantos
papéis de LSD você tomou?” “No começo do show tomei um tablete, depois de uma
hora tomei outro, e dez minutos depois do segundo tablete deu a bad trip,
exagerei.” “Então o sonho hippie virou pesadelo?” “Ah, minhas mãos estão
derretendo!” “O quê?” “Meu corpo está sangrando, estou sendo crucificada!” “Mas
...”.
Deu código 15
novamente, e dois códigos de erro simultâneos, 3260-FG e 3270-FG, em conjunto
significam “falência irrefreável de lucidez.” Dr.Kurtz não sabia o que fazer,
Helena se encontrava, agora, numa combinação maléfica de regressão e surto
psicótico.
Dr.Kurtz percebera,
ali, que seus escaninhos e pressupostos tinham virado farelo. Ele apertou o
botão de emergência para desligar o Soft, tudo apagou, o gerador de energia
quase deu pane, Helena saiu da Soft em surto, a experiência de Dr.Kurtz tinha
seu primeiro revés, e Helena saiu correndo com medo de ter seu corpo derretido.
Parecia que Dr.Kurtz, num átimo, se tornara seu carrasco, Helena ficou com medo
dele, e saiu correndo feito louca pelas ruas. Foi encontrada desacordada, dois
dias depois, perto de um lago. Dr.Kurtz ficou com medo de ser denunciado por
Helena, mas ela teve um colapso nervoso e perdeu a memória.
Dr.Kurtz, então,
ficou aliviado de não ter sido descoberto, e resolveu insistir na experiência
com o Soft e o F22, desta vez com seu terceiro paciente, Fernando. Enquanto
isso, João se preparava para voltar à carga após Fernando.
Dr.Kurtz foi vencido
pela curiosidade que já havia dado sinais trocados com Helena. Se ocorresse
mais algum imprevisto, ele teria grandes e graves problemas. Desta vez, com
Fernando, ele não daria a “sugestão lemniscata”, e nem trabalharia com estado
ômega, faria algo mais superficial, como uma indução onírica puramente verbal,
sem passes magnéticos, e como base de uma análise estritamente experimental
para colher dados do eletro-encefalograma e da ressonância magnética funcional.
Com João, logo após,
ele apostaria todas as suas fichas, pois seu paciente tinha se mostrado
positivo e receptivo às induções que tinham tido sucesso com efeito x em seu
caso. Agora, o procedimento deu ganho estável em theta, por duas horas, código
7 com 11, Fernando também se mostrou positivo às intervenções, mas logo o
Dr.Kurtz se iludiria, pois tudo não passava de aparências, ele teria grande
tribulação horas depois, tanto com João, como com Fernando. E Helena, enquanto
isso, estava mais uma vez internada numa clínica psiquiátrica, sem lembrar nem
do próprio nome.
O procedimento com
Fernando foi rápido e indolor, os escaninhos subvertidos por Helena agora davam
encaixe perfeito em pressupostos compatíveis com os dados senoidais, tudo
funcionou. Logo, entrou João na Soft, o F22 em uma hora, com a prática
temerária, novamente, da “sugestão lemniscata”, deu pane, código 0 era o
episódio neutro, efeito y, deu tudo errado com João, ele teve de sair da
máquina Soft com asfixia e estado de catatonia, também perdera a memória. Saiu correndo
pelas ruas, assim como Helena, e foi encontrado por um pescador em alto mar. Pois
João nadou sem parar e sem destino, e foi encontrado com hipotermia a três
quilômetros da costa.
Como João também
tinha perdido a memória, o Dr.Kurtz escapou mais uma vez de ser denunciado. Com
Fernando, depois de uma noite de sono, ele acordou num estado de fantasismo extremo,
teve um surto de licantropia, tinha, na sua viagem, virado um lobisomem, e
tentou matar o Dr.Kurtz com uma faca.
Os dois tiveram uma luta
corporal, e o Dr.Kurtz acabou matando Fernando com a mesma faca, saiu com seu
carro, e foi enterrar o corpo de Fernando num pântano. Só que, durante a ação,
ele foi avistado por um matuto de um sítio que perguntou o que ele fazia ali.
O matuto viu o corpo
de Fernando, e então sacou uma arma, e rendeu o Dr.Kurtz. Este foi, então,
levado até o fazendeiro, chefe do matuto, e este pediu que o Dr.Kurtz
explicasse o que ele fazia ali, e se tinha matado aquela pessoa.
Neste ínterim,
Helena recobrou a memória na clínica, e disse que era tudo culpa do Dr.Kurtz
que, por coincidência, era conhecido do dono da clínica, o psiquiatra Adônis. Este
sabia que o Dr.Kurtz era um louco imprudente, e resolveu denunciá-lo ao
colegiado de ética médica da cidade, e logo foi enviada uma força-tarefa para
prender o Dr.Kurtz.
A força-tarefa
recebeu uma ligação do fazendeiro, e então, o Dr.Kurtz foi preso por
manipulação de pacientes e homicídio, e foi responsabilizado pelo surto de Helena, Fernando
e João. Adônis, então, passou a tratar dos dois sobreviventes, Helena e João, e
o Dr.Kurtz foi preso por quatro anos de condenação.
A força-tarefa foi à clínica clandestina de Dr.Kurtz, e destruiu a Soft com marretadas. Um mês
depois da prisão, Dr.Kurtz entrou em surto depressivo. Adônis processou o mesmo,
e a carteira médica do Dr.Kurtz foi cassada.
Dr.Kurtz conseguiu
resistir às tentações do suicídio nos quatro anos de prisão, mas passou a viver
como indigente pela ruas, depois de sua libertação. E os dois pacientes que sobreviveram
aos delírios de grandeza do famigerado Dr.Kurtz,, Helena e João, espezinhavam
dele toda vez que o viam como pedinte no centro financeiro da cidade.
João dizia que nunca
deveria ter confiado nele, Helena gritava para ele fazer o F23 e se enfiar na
sua nova Soft como um caracol enjaulado. E então, o Dr.Kurtz gritou por perdão,
que tinha sido um erro a Soft. Mas, agora ele era um pária da sociedade, e
Helena se recuperou junto com João. Os dois resolveram terminar os estudos de psicologia,
e começaram a refutar todas as teses dos escaninhos que sobraram dos arquivos
do ex-Dr.Kurtz, agora apenas Daniel Kurtz, psicólogo cassado, pedinte de rua,
com um cachorro louco por companhia.
28/08/2015 Contos Psicodélicos
(Gustavo Bastos)
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