Na família Stevens tinha um ar aristocrático de tradição
milenar, uns ingleses misturados com alemães e austríacos, e que agora, num núcleo
particular, na cidade de Viena, em pleno século XX, mais exatamente em 1922, se
desenrola a trama de um pai e de uma mãe de 12 filhos, dez homens, duas mulheres.
O pai de nome Joseph, a mãe, agora grávida de mais um menino,
de nome Lia. Os dez homens: Richard, 30 anos, Selton, 29 anos, Douglas e Mark,
gêmeos, 27 anos, Martin, 24 anos, Theo, 22 anos, Philip, 15 anos, Dan, 12 anos,
Ludwig, 10 anos, Dagliev, 5 anos. As duas mulheres: as gêmeas Stephanie e Lea,
25 anos. Lia estava com 45 anos, Joseph, com 60 anos.
A família Stevens, abastada, era uma família de músicos,
todos eles. Joseph tocava piano, sabia fazer partituras para concerto e
orquestra, tinha uma obra reconhecida, embora nada que se aproximasse de um
virtuose ou de algo que ficasse na História de Viena e do mundo da música
erudita, era mais conhecido por apreciadores. Lia tocava flauta doce, dentro de
casa, escreveu algumas partituras, mas era algo conhecido apenas dentro da
família. As gêmeas Stephanie e Lea tocavam violino em orquestras de Viena, não
faziam composição, as duas eram especialistas em Bach.
Richard era compositor com o piano, também fazia partituras
para concerto, com um pouco mais de vulto que seu pai, quase um dos grandes,
mas reconhecido apenas na Áustria. Selton era membro de orquestra e solista de
violino, não compunha. Douglas tocava piano solo e para concerto, também não
compunha, e junto com Selton e seu gêmeo Mark, especialistas em Beethoven.
Martin, fanático por Brahms, mas também especialista em Liszt
e Chopin, aonde era um executor virtuose e um dos melhores intérpretes, tentava
compor, mas não com a mesma desenvoltura de suas execuções de Liszt e Chopin ao
piano. Theo era um bon-vivant, tocava violino por prazer, mas não quis se
envolver no mundo da música, vivia da renda da família, assim como Philip, que
era um amador no violino e no piano, e tentava arranhar algo no violoncelo, não
tinha muito foco ou perseverança, o mais fraco dentre os filhos de Lia e Joseph
na música.
Dan, outro pianista, seguia a trilha de Martin em Liszt e
Chopin, com bom rendimento. Ludwig, com nome forte, honrava a herança na
orquestra como flautista solista, não compunha, mas executava brilhantemente
Beethoven, seu astro principal e seu estudo detido, já aos dez anos. E Dagliev,
por fim, aos cinco anos, começava a aprender piano, e ia bem com Mozart, seria
o primeiro especialista em Mozart da família.
Lia, com sua intuição, achava que o temporão que ia nascer
seria então o esteio musical desta história familiar, todos eram muito unidos,
e Richard também tinha a mesma sensação de que algo muito importante iria
acontecer para eles, Lia era mística, e tinha sonhos de um menino virtuose
compondo febrilmente, mas também, nestes sonhos, via sangue, mas não entendia o
que aquilo significava.
O menino nasce em 1923, Lia aos 46 anos, um parto difícil, em
que Lia delirava e dizia que via um espírito de um ancião todo de preto, com
uma barba branca até os pés, e um cajado, e que se esvaneceu ao primeiro choro
de vida do rebento, que levou o nome de Wolfgang, em homenagem a Mozart.
Wolfgang Stevens nasce, e Lia tinha um anseio que sabia que
era real, o primeiro Stevens a romper o círculo austríaco e despontar para
ventos mais amplos, algo que Joseph, o pai, via com ceticismo, pois não
entendia aqueles delírios de grandeza de Lia e de Richard em relação a alguém
que ainda era um bebê. O ceticismo de Joseph estava ligado a sua formação
sólida no positivismo, algo que confrontava diretamente com o misticismo
messiânico de Lia e da fé luterana de grande parte dos filhos, com exceção de
Martin, que ganhou uma influência brutal do pai e era também da fé de Comte. Só
que a verdade era a de que o sonho de Lia e a fé de Richard se tornariam,
terrivelmente, algo real.
Nos primeiros anos, Wolfgang foi treinado no piano, e na
leitura de partituras, mas logo começou a ter hábitos estranhos aos 3 anos,
como o de brincar de morder seus irmãos e os cachorros do grande quintal da
casa. E o choque foi quando Lia viu um pombo dentro da boca de Wolfgang, no que
ela bateu nele e disse para ele parar com aquela “brincadeira”.
Algo acalmou por um tempo, e Wolfgang avançou velozmente na
composição já aos cinco anos, nas cordas e no piano, no órgão, ele abarcava
tudo num galope de dar calafrios, e seus hábitos noturnos aos seis anos já eram
tolerados por Lia, que depois viria a descobrir que ele caçava pombos pelo
quintal e os mordia arrancando-lhes a cabeça, o que Lia via como maldade
infantil e não como um distúrbio hematófago de que a criança sofria.
Ao sete anos, Wolfgang, pela sua precocidade, já compunha
concertos para o piano e entrou como intérprete solista de Mozart ao piano e
membro de orquestra, e ele priorizou o piano e órgão na sua composição, com
músicas sinistras, que não eram de muito agrado ao gosto médio, mas que tinham
um grau de virtuosismo incomuns. Wolfgang passou então para os cuidados de
Richard, o irmão mais velho, que começou a compor junto com ele, mas logo não
teve fôlego para acompanhá-lo, deixando-o seguir a sua própria intuição, o que
valeu para Richard como uma licença para a glória, Wolfgang era voraz, mas
sabia o que estava fazendo, não se perderia, tanto que suas composições
tétricas de início passaram a composições doces e suaves, como numa viagem ao
paraíso.
Mas o inferno estava dentro de Wolfgang, e ele iria no rastro
de Strauss e Stravinski, depois aos dez anos virou um vanguardista, mas um
certo dia chegou esbaforido na direção de Richard e lhe disse que precisava de
muita ajuda, no que Richard descobriu o distúrbio de Wolfgang por sangue, que
até então só era conhecido por Lia.
E Wolfgang disse para Richard manter segredo em relação a
isso, e convenceu Richard a roubar sangue num banco de doação em Viena, o que
Richard conseguiu de um jeito mais fácil, subornando os enfermeiros de uma casa
de saúde, o que virou algo sistemático, pois Wolfgang passou a beber dois
litros de sangue por dia, o que em dois anos passou para três e quatro litros
diários, e Richard descobriu que aquilo aumentava a produção criativa de
Wolfgang, no que teve certeza de que aquele segredo entre ele, Wolfgang e Lia era
muito importante, vital para o trabalho que estava em realização.
E os enfermeiros, que eram dois, já chamavam Wolfgang de o “vampirinho”
que Viena tinha como músico. A vanguarda de piano agora virava partituras de
sinfonia, dez em dois anos, Wolfgang com quinze anos, com algo que iria explodir na
sua puberdade. Aos dezesseis foi atrás de uma moça para mordê-la, mas esta fez
um escândalo, e Wolfgang declinou da ideia de atacar virgens por um tempo, mas
sabia que sua voz interior dizia que o sangue de virgens o fariam um novo
Beethoven ou um novo Mozart, algo que ele ainda almejava, e que era um sonho
impossível, mas não para ele.
Aos dezessete, Wolfgang tem uma ideia, vai atrás de sangue
jovem no próprio banco de sangue, e decide priorizar o sangue O negativo, que
para ele era um néctar. Mas logo ele não se contém e realiza o seu primeiro
ataque a uma menina de quinze anos, mordendo-lhe o pescoço e as nádegas, mas
sem matá-la ou violá-la, e ela sai correndo com as saias empapadas em sangue, e
o pescoço roxo, sem atingir, no entanto, veias ou artérias vitais.
Mas, Wolfgang recua de seu ímpeto, e decide ficar um tempo
com o sangue O negativo do banco de sangue, que era raro, se contentando,
macambúzio, com AB muitas vezes. Richard sabia que aquela loucura uma hora
seria descoberta e que isso seria um escândalo, pois Wolfgang já era famoso
como compositor, e os enfermeiros, dito e feito, começaram a chantagear Richard
atrás de mais e mais dinheiro, no que ele pediu ajuda a Lia, que se desesperou,
e disse que Wolfgang não era mais problema dela, ele só poderia contar com
Richard, que ainda tentava manter um castelo em ruínas.
Depois de dois anos vivendo de banco de sangue, a coisa estourou
para todos os lados, Wolfgang entra esbaforido no banco de sangue para matar os
enfermeiros chantagistas com mordidas, mas é contido e internado imediatamente
num hospício, o que dura três meses, pois lá ele se contém e bebe sangue de
pombos escondido no pátio para sobreviver sem pirar ou ficar deprimido, e
fazendo o jogo certo de manter as aparências, é liberado e volta para as mãos
de Richard, que não sabe o que fazer, e decide pedir ajuda a Selton, que fica
chocado com a descoberta de um irmão hematófago.
Mas Selton hesita um pouco, dizia que aquilo tinha que ir aos
ouvidos de Joseph, mas Richard começa a chorar e explica que o trabalho todo de
Wolfgang dependia, infelizmente, de sangue. Lia já tinha abandonado o barco e
se degradava progressivamente nas trevas da loucura, com as visões do tal
ancião perturbando-lhe diariamente de dia e de noite. E ela dizia que o ancião
não falava nada, e Joseph não entendia absolutamente nada do que se passava, e a
realidade, neste contexto, poderia ultrapassar tudo o que um positivista convicto
como ele poderia conceber, mas logo o choque viria, com direito a trovoadas.
O ancião assediou tanto Lia que ela ficou catatônica, sendo
alimentada por sondas, no que num espaço de seis meses a levou para a morte. E,
então, desesperado, Richard revela o segredo para Joseph de que Wolfgang era
hematófago, o que é recebido com ceticismo por Joseph, que só depois de algumas
provas cabais é convencido, no que Joseph, ambicioso do trabalho de Wolfgang,
também decide guardar aquele segredo, agora junto com Selton e o guardião de
Wolfgang, Richard.
Mas tudo estoura num escândalo de graus colossais, pois
Wolfgang, finalmente, mata uma moça de sua idade com uma mordida no pescoço, à
luz do dia, numa praça com pessoas passando, no que ele é preso, e seu trabalho
interrompido talvez para sempre, o escândalo do vampiro vira o caso de polícia
que a imprensa passa a tratar como o caso “Baby Nosferatu”, que era a
idealização do enfant-terrible com uma obra de vulto para vender. Tudo ao gosto
do espetáculo, mas que resulta na abstinência de Wolfgang por sangue numa cela
de solitária, onde não havia pescoços e nem pombos, só uma sopa de vegetais servida
duas vezes ao dia.
Wolfgang quase enlouquece, treme e delira por sangue, mas
ganha um processo gigantesco, pois o caso do banco de sangue também é
descoberto, já que os enfermeiros dão com a língua nos dentes, pois já não
temiam ser atacados por Wolfgang, que estava preso, condenado para três anos de
reclusão. E os enfermeiros são processados por corrupção junto com Richard,
pois o que fez os dois enfermeiros falarem, apesar de serem punidos, era o de
tentar imputar prisão perpétua para Wolfgang por ameaçá-los, o que não ocorreu
até o dia do ataque, pois quem buscava o sangue era Richard e não Wolfgang.
E, embora o escândalo tomasse proporções avassaladoras em
Viena, as composições de Wolfgang já eram quase standard no universo conhecido
da música erudita, criando um imbróglio ético que muitos apreciadores decidiram
ignorar, pois aquilo já estava no gosto deles, Wolfgang, o prodígio, era um
paradoxo ambulante de arte e crime.
Até que Richard consegue convencer o juiz do caso de que
Wolfgang sofria de um distúrbio, o que foi comprovado depois por um psicólogo,
e Wolfgang passou o resto da pena num manicômio judiciário, onde ele podia
morder pombos escondido, saindo da abstinência que para ele era semelhante a de
um heroinômano.
O psicólogo tenta um tratamento alternativo com sangue de
porco para “salvar” Wolfgang, e consegue a liberação da justiça para amenizar o
sofrimento de Wolfgang, que já não aguentava pombos, e que, para sua sorte,
ainda tinha a ajuda de Richard, que levava bolsas de sague humano escondido
para ele no manicômio, o que ele conseguiu no mesmo banco, subornado agora o
diretor-executivo e médico de lá.
Wolfgang não teria paz por muito tempo, pois entre doses
extáticas de O negativo, ele se contentava com a receita de porco medicinal e
terapêutica, numa tentativa do psicólogo de reverter seu distúrbio hematófago
paulatinamente, pois tinha percebido que o consumo de sangue para Wolfgang era
como uma droga, da qual ele tinha que se libertar. Richard viu aquilo como a
luz no fim do túnel, pois pensou: “Isso é só uma droga para ele, é só
desintoxicá-lo!”.
E o exame de raiva dá negativo, Wolfgang poderia estar caminhado
para a sua liberdade, seja da prisão, seja do consumo de sangue. O psicólogo,
de nome Arnold, já tinha certeza que aquilo era como uma droga, e teria que
trabalhar para que a criatividade de Wolfgang não esvaísse sem aquele sangue.
Ele tem a ideia de dar transfusões, duas, para equilibrar o PH de Wolfgang, e
tem sucesso. Logo, em dois meses, o sangue de porco é suspenso, e Richard,
aconselhado veementemente por Arnold, suspende o sangue humano.
Wolfgang passa a aprender a viver sem o distúrbio, e lhe são
ministrados calmantes para suportar os sinais semelhantes a de heroinômanos por
sangue, Wolfgang queria agora se redimir e leu a Bíblia inteira na sua
reclusão, queria agora compor músicas sacras para salvar a própria alma e toma
aversão pela cor vermelha, o distúrbio logo se inverte, e Arnold sorri e diz
que o tratamento é um sucesso, pois Wolfgang passa agora a ter aversão pela cor
vermelha e tem náuseas ao sentir cheiro de sangue, sua dependência hematófaga é
invertida e superada, Wolfgang começa a compor novamente, mas já tomando
distância dos temas tétricos, e uma nuvem mística de benevolência lhe toma o
coração, e ele passa a bendizer sua arte, de que seu passado estava enterrado,
e de que seu distúrbio tinha sido uma provação para ele e Richard se unirem na
causa da arte, a qual agora já não dependia nem de sangue humano e nem de
pombos. Sua vida eterna seria garantida por seu novo protestantismo e não pela
lenda de vampiro.
Aliás, a má fama de Wolfgang já se invertia também, pois o
exagero da imprensa no caso se voltou contra si mesma, e a execração pública de
Wolfgang logo é debelada por declarações contundentes de Richard, acabando com
aquele circo dos horrores. Wolfgang era doente, e estava curado, um distúrbio tão
grave foi combatido por um psicólogo que entrou na hora certa para entender que
a droga leva pouco tempo para fazer efeito, e quando viu o sorriso extático de
Wolfgang depois de uma dose de O negativo, entendeu tudo de súbito, matou a
charada.
E a fama de Wolfgang ficou dividida entre apreciadores e
detratores, mas a moral da imprensa tinha sido destruída pelo sensacionalismo,
a guerra de Richard contra ela tinha sido vencida, não havia mais surtos de
moralismo por onde ele rondava, Richard era de fato o guardião do trabalho de
Wolfgang, que depois de sair do manicômio, ainda era chamado de assassino,
vampiro, morcego e quejandos no meio da rua, mas tinha no meio de apreciadores
da música erudita uma romantização de sua história, que agora se redimia longe
do espetáculo midiático, numa cultura refinada de concertos e sinfonias, e o
tempo foi passando, e a formação de Wolfgang foi ficando sólida, ele se tornou
também pastor luterano, sem renegar o passado, ainda ouvindo piadas da imprensa
marrom sobre o “vampiro crente que toca piano”, às vezes.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
22/02/2016 – Contos Psicodélicos.
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