“A variedade de imagens, lugares e referências torna Jóquei
um excelente caleidoscópio poético”
Matilde Campilho segue uma rota poética que une em sua
linguagem as diferenças entre o português falado de Portugal e o do Brasil,
esta duplicidade na verdade é muito mais uma complementaridade, uma ampliação
da voz poética de Matilde num campo próprio, uma caso raro de cosmopolitismo
lusófono, se utilizando de sua vivência pessoal, de sua biografia nômade, e
refletindo isto em sua escrita que produz uma poesia que abrange este espectro
amplo da língua portuguesa, de Portugal e do Brasil, e também dos países
africanos, uma vez que Matilde também esteve em Moçambique.
Neste amplo espectro da língua portuguesa que a poesia de
Matilde se produz e se multiplica, temos ainda o flerte com a língua inglesa,
eventualmente, e suas imagens cosmopolitas são um trânsito poético entre lugares
reais e imaginários, o Maracanã, New Jersey, o arrozal de Vang Vieng,
Itaparica, Tavizkam, Sevilha. Matilde tem sua biografia feita de viagens e sua
poesia é um espelho deste modo de vida.
Matilde estudou em Milão, trabalhou em Madri e Moçambique, veio
ao Rio de Janeiro para ficar apenas quinze dias e acabou ficando três anos, e
sua poesia opera na desconstrução dos modelos tradicionais e em uma cadência
musical que dá a característica de sua poesia como algo de leitura agradável. A
vivacidade de seus escritos justifica o título de seu livro, Jóquei, que evocam
movimento, como a cavalgada de um jóquei.
Entre Rio e Lisboa, que são cidades diferentes e com algumas
semelhanças, dependendo do que se vê, Jóquei é um livro que mistura as estações
portuguesas e brasileiras, e como escreve Pedro Mexia, os poemas deste livro são
sobre tudo o que se é capaz de imaginar: «botecos e viagens, Eliot e o
Financial Times, a vibração de um corpo humano e um emblema da Federação
Uruguaia de Esgrima». Na leitura do livro esta mistura não define onde está o
começo da versão brasileira ou de uma versão portuguesa destes poemas, Jóquei
opera muito mais como um híbrido cultural e poético, com uma amálgama sonora e
musical.
Os lugares são variados, vai desde o Brasil até o Brooklyn. A
variedade de imagens, lugares e referências torna Jóquei um excelente
caleidoscópio poético e um produto final polifônico e rico de amplitude
temática, num escopo que aqui toma como principal referência este diálogo vivo
entre Brasil e Portugal numa poeta que une sua biografia e escrita nestes dois
mundos.
.
POEMAS :
VERMELHO VIVO : O poema ostenta a cor vermelha em
seu trajeto, ela se mescla ao negro, e o poema é todo vivo, rascante, certeiro,
no que temos : “Fiquei longe de mim/entenda/sou um raging bull/quando você
aparece/ostentando/sua aorta transparente/sua válvula semilunar/seus septo
latejante/Quando você aparece/fazendo soar os guizos/vermelhos de sua clavícula/enquanto
caminha/sobre o pavimento/de Terrorland”. A musicalidade se junta aqui a uma
estranheza temática, um conjunto que flui com liberdade num traço e dicção
próprios, com a assinatura de Matilde, no que temos : “Retire seu timbre/feito
de B/F/Am/C#/da sala de cinema/onde por acaso/passou galopando/John Wayne/galopando
e gritando” (...) “Retire sua mão/do rosto do dervixe argentino/que há quatro
anos decidiu/dizer os 1.500 nomes/de Alá todas as manhãs”. A ordem de saída do
poema para seu interlocutor, um poema tenso, e logo evocatório de uma
esperança, própria da poesia, no que temos : “e quem sabe/nalgum momento/a
canção do deserto/soará mais aguda/mais prolongada/e quem sabe/nalgum momento/chegará
aos ouvidos/do traficante de joias/de New Jersey” (...) “Sim as pessoas mudam/Tente
retirar-se/nem que seja temporariamente/da figuração dos comerciais/que passam
no break/da novela das oito/faz muito tempo que/ninguém assiste/mas vai que
acontece/uma tragédia qualquer/o presidente interrompe/todas as emissões/e as
antenas de 36 MHz/mantêm de qualquer forma/a publicidade/isso pode acontecer/tudo
pode acontecer”. A importância do inaudito como leitmotiv deste poema aqui fica
evidenciada, no que vem : “Fique longe da padaria/Fique longe do ringue de
curling/Fique longe da cabina de controle/do aeroporto de Queensland” (...) “Fique
longe/porque entenda/Você é vermelho e negro/seu tórax tem maior diâmetro/que a
concentração/da torcida do Flamengo/toda metida no Maracanã/você é tudo
vermelho e negro/Fique longe/não se
chegue/Porque ninguém gosta/ninguém está a fim/de ver um touro enlouquecido/dando
marradas cegas/nos caixotes da mercearia/nas tabuletas de trânsito/nas
motocicletas estacionadas/Fique longe/ninguém gosta/de saber desperto/e à solta
na cidade/um touro bravo/a quem um dia enterraram/a espada de ouro/na linha
dorsal.”. Este último trecho deste poema é grandioso, na imagem indesejável da
violência cega de um touro indômito, que a poeta Matilde diz e avisa que
ninguém quer.
ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS
AMAR NESTE LUGAR : Este
poema tem uma escritura política, uma dicção que se move no mundo duro de uma
guerra e de uma luta revolucionária, no que vem : “Lembro-me muito bem do tal
cantor basco/que costumava celebrar a chuva no verão/Não ligava quase nada para
as conspirações/que recorrentemente se faziam ouvir/debaixo das arcadas
noturnas da cidade” (...) “Foi já depois do fascismo, um pouco antes/da
democracia enfaixada em magnólias/O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos/me
ensinaram que se deve aproveitar a época/de transição para destrinçar o brilho/As
revoluções sempre foram o lugar certo/para a descoberta do sossego :/talvez
porque nenhuma casa é segura” (...) “ou talvez porque depois de encarar uma
arma/finalmente seja possível entender/as múltiplas possibilidades de uma arma.”.
O tema da coragem, da luta, de se conhecer a face extrema da morte no estudo de
campo diante de uma arma e seus significados impressos quando seu próprio corpo
está exposto. O poeta aqui encara a arma, lhe depreende a face sinistra, suas
possibilidades.
PRINCIPADO EXTINTO : O poema aqui se desdobra, fala de si
mesmo, num ensaio de meta-poesia, e que nesta referência que coloca o poema tal
qual, em si mesmo, abre seu referencial múltiplo, se reafirmando como poema que
é, neste trajeto todo, no que temos : “Isto é um poema/fala de amor/ou do medo
do amor/Fala da morte/ou do fim da amálgama/rosto voz alma e cheiro/que é a
morte/Isto é um poema/tenha medo/Fala dos peregrinos/que atravessam avenidas”.
Temas universais do amor e da morte, fala também da devastação : “Isto aqui é
um poema/fala da permanência inútil/de um coração devastado/de uma floresta
devastada/de uma corrida devastada”. O poema segue, e faz novas digressões, no
que temos : “Isto é um poema/fala da aparição do inverno/fala da fuga dos
albatrozes/fala do punhal sobre a mesa”. O poema se reafirma, e tece novas
imagens de um cotidiano : “Fala do desaparecimento/Claro que é um poema/fala do
toque de saída/no colégio de Île de France/e das 39 saias das meninas/esvoaçando
sem vontade/na direção do cais de ferro”. Agora o poema vai do cotidiano e se
volta novamente para temas universais, flertando com a metafísica, na palavra
saudade, por exemplo, e o poema vem : “Fala da palavra saudade/ou da palavra
terremoto/fala do olho que tudo via”. O poema aqui está se estendendo, e chega
a seu extremo, que terá seu clímax e sua coda, um golpe seco que se encerra com
a palavra loucura : “Nada mais no mundo importa/Isto é que é poema/Fala do
cheiro das flores/e da injustiça da existência/das flores na cidade/Fala da dor
excruciante/meu bem excruciante/que faz até desejar/o fim do poema/o fim da
palavra amor/que após o disparo/se espelha apenas/na palavra loucura.”.
A VOLTA NO CADILLAC DE
BILLY J. : O poema
em prosa de Matilde, com dicção própria, aqui aparece mais uma vez, e com sua
fluidez usual, no que temos : “O que acontece é que tenho vindo a guardar
alguns poemas. Enterro-me noutras clareiras para que assim possa escapar-me da
minha própria ideia de amor. É que eu tenho, como alguém disse, um amor
descrito a garatujas sobre folhas de amendoeira.”. Matilde reflete sobre poemas
mais organizados, longe de seu caos, no que temos : “Acontece que os poemas dos
outros são tão direitinhos, tão justamente metidos no interior das linhas de
separação, canções tão perfeitas, que em nada remetem para o nível real do
acontecimento. Não sei se alguém terá reparado que numa tarde de dezembro eu
pisquei o olho a J. Alfred Prufrock.”. A referência aqui em T.S.Eliot, e a
prática de guardar poemas, no que temos : “É, um homem guarda poemas porque
sabe que em qualquer momento vai ter que fazer-se à corrida : subitamente tudo
arde e então a única possibilidade é o desvio.”. Matilde aqui se debruça, e a
imagem familiar ganha uma riqueza inaudita : “Fico empoleirado no parapeito da
janela nortenha, atirando os dados de uma mão para outra, pedindo por favor o
número seis. As criancinhas passam jogando no corredor, folhos de camisa
esvoaçando muito mais depressa que seus cabelos, e eu ali de testa encostada no
vitral. Quando me sair o número seis eu sei que Lázaro nunca mais morrerá. Sim,
o amor veio e fez sua saudação.”. Matilde guarda alguns poemas, e tece em
metáfora rica sua vida e seu cotidiano, no que temos : “O que acontece é que
tenho vindo a guardar alguns poemas, resmas de papel de arroz empilhadas na
sala nortenha. A casa está sossegada porque tem que estar. Pergunto-me se
alguém possui uma pedra. Se alguém acredita verdadeiramente no verão.”.
Referência musical, e a reflexão sobre um novo tempo, uma nova realidade, no
que temos : “Penso na canção que diz que a saudade é o revés de um parto, ó
metade amputada de mim. Haverá tempo, haverá tempo. O fumo amarelo de janeiro
fica esfregando suas costas nas janelas desta casa. Haverá tempo para cometer
um crime, haverá tempo para a procriação. Tempo para lembrar a rede onde
descansou o índio apaixonado, aquele que fica arrancando o pó das entranhas das
unhas do leopardo. Tempo para encher a taça do filho de Deus e tempo para
discernir o amor do que já é costume. Da janela eu vejo as ondas rebentando no
olho do Vesúvio. Peço a meus filhos que se preparem para a estalada na cara,
para o fechar brutíssimo da porta do automóvel, para o vômito que vem do
fígado, para o rosto escancarado na decepção. O que importa é ouvir a voz que
vem do coração – seja o que vier, venha o que vier.”. O preparo para a vida,
aos que já enfrentam esta e a vão enfrentar, o preparo necessário do poeta e
dos seus, o enfrentamento necessário da verdade da vida, a intempérie, e a
esperança, aqui condensada na palavra verão, no que temos : “Sim, alguém
acredita verdadeiramente no verão. Se vires tua mãe diz-lhe que ainda sou o
rapaz de calças arregaçadas, e que a traição foi apenas o destino da fuga.
Daqui desta janela nortenha eu vejo o reflexo da água que se alojou em minhas
rugas, e nem por isso eu sigo chorando. Venha o que vier, fico guardando alguns
poemas. Certas formas nos pertencem muito para além da memória.”. Matilde
guarda alguns poemas, se prepara para o inverno e para o verão, o que importa é
reconhecer o inaudito e o esperado, sentir os gostos opostos da desdita e do
sucesso, venha o que vier, e crer verdadeiramente no verão e a esperança que é
um tipo de sol ou verão que teima em brilhar.
POEMAS :
VERMELHO VIVO
Fiquei longe de mim
entenda
sou um raging bull
quando você aparece
ostentando
sua aorta transparente
sua válvula semilunar
seus septo latejante
Quando você aparece
fazendo soar os guizos
vermelhos de sua clavícula
enquanto caminha
sobre o pavimento
de Terrorland
Veja se desocupa
as linhas telefônicas
que desde há 20 anos
vão de Girona a Sant Jaum
eu quero fazer a ligação
Retire seu timbre
feito de B/F/Am/C#
da sala de cinema
onde por acaso
passou galopando
John Wayne
galopando e gritando
suado como o javali
que foi oferecido
a sua família
em vésperas de
ressurreição
do menino crucificado
de cabeça para baixo
Retire sua mão
do rosto do dervixe argentino
que há quatro anos decidiu
dizer os 1.500 nomes
de Alá todas as manhãs
se você o deixar em paz
daqui a poucos meses
teremos 5.000 invocações
da palavra santa
no Boulevard Las Heras
isso pode muito bem ser
a salvação
do glaciar Perito Moreno
pode muito bem ser
um empurrão às partículas
arenosas do Sahara
e quem sabe
nalgum momento
a canção do deserto
soará mais aguda
mais prolongada
e quem sabe
nalgum momento
chegará aos ouvidos
do traficante de joias
de New Jersey
que at last assumirá
sua vocação de profeta
Sim as pessoas mudam
Tente retirar-se
nem que seja temporariamente
da figuração dos comerciais
que passam no break
da novela das oito
faz muito tempo que
ninguém assiste
mas vai que acontece
uma tragédia qualquer
o presidente interrompe
todas as emissões
e as antenas de 36 MHz
mantêm de qualquer forma
a publicidade
isso pode acontecer
tudo pode acontecer
então evite
Evite enterrar
seus pés
no arrozal de Vang Vieng
claro que é muito gostoso
o ondular líquido
das plantações
se roçando nos tornozelos
o corpo tem memória
e água é igual a corpo
então é gostoso
mas convém ter em mente
que um objeto estranho
se entrosando com outro
sempre vai perturbar
o contínuo curso da natureza
Fique longe da padaria
Fique longe do ringue de curling
Fique longe da cabina de controle
do aeroporto de Queensland
Fique longe das lonas
dos painéis que anunciam
a nova marca de tabaco de seda
Fique longe da prancha
da piscina de sete metros
por oito no último dia de maio
Fique longe
porque entenda
Você é vermelho e negro
seu tórax tem maior diâmetro
que a concentração
da torcida do Flamengo
toda metida no Maracanã
você é tudo vermelho e negro
Fique longe
não se chegue
Porque ninguém gosta
ninguém está a fim
de ver um touro enlouquecido
dando marradas cegas
nos caixotes da mercearia
nas tabuletas de trânsito
nas motocicletas estacionadas
Fique longe
ninguém gosta
de saber desperto
e à solta na cidade
um touro bravo
a quem um dia enterraram
a espada de ouro
na linha dorsal.
ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS
AMAR NESTE LUGAR
Lembro-me muito bem do tal cantor basco
que costumava celebrar a chuva no verão
Não ligava quase nada para as conspirações
que recorrentemente se faziam ouvir
debaixo das arcadas noturnas da cidade
naquela época do intermezzo lunar
Foi já depois do fascismo, um pouco antes
da democracia enfaixada em magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume e os disparos
me ensinaram que se deve aproveitar a época
de transição para destrinçar o brilho
As revoluções sempre foram o lugar certo
para a descoberta do sossego :
talvez porque nenhuma casa é segura
talvez porque nenhum corpo é seguro
ou talvez porque depois de encarar uma arma
finalmente seja possível entender
as múltiplas possibilidades de uma arma.
PRINCIPADO EXTINTO
Isto é um poema
fala de amor
ou do medo do amor
Fala da morte
ou do fim da amálgama
rosto voz alma e cheiro
que é a morte
Isto é um poema
tenha medo
Fala dos peregrinos
que atravessam avenidas
de sobretudo e óculos
carregando flores invisíveis
e chorando mudos
Isto aqui é um poema
fala da permanência inútil
de um coração devastado
de uma floresta devastada
de uma corrida devastada
logo depois do disparo
da arma de 40 peças
que soltou a bandeirinha
e assim mesmo se desfez
Isto é um poema
fala da aparição do inverno
fala da fuga dos albatrozes
fala do punhal sobre a mesa
e do absurdo do punhal
feito de madeira e pedra
sobre a mesa do jantar
Fala do poder da erosão
que afinal incide sobre
pele e nervo e osso e olho
Fala do desaparecimento
Fala do desaparecimento
Claro que é um poema
fala do toque de saída
no colégio de Île de France
e das 39 saias das meninas
esvoaçando sem vontade
na direção do cais de ferro
Fala do pânico do corpo
que esbarra em si mesmo
no espelho pela manhã
e do urro silencioso
que nenhum vizinho
escuta mas que ainda
assim reverbera sem dó
até a hora final
fala do vômito que advém
dos gestos repetidos
prolongados assim ad astra
até que o sono apague tudo
Fala da palavra saudade
ou da palavra terremoto
fala do olho que tudo via
deixando lentamente de ver
até mesmo a cara de Jack Steam
o porteiro da loja de discos
onde toca a canção de Chavela
Nada mais no mundo importa
Isto é que é poema
Fala do cheiro das flores
e da injustiça da existência
das flores na cidade
Fala da dor excruciante
meu bem excruciante
que faz até desejar
o fim do poema
o fim da palavra amor
que após o disparo
se espelha apenas
na palavra loucura.
A VOLTA NO CADILLAC DE
BILLY J.
O que acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas.
Enterro-me noutras clareiras para que assim possa escapar-me da minha própria
ideia de amor. É que eu tenho, como alguém disse, um amor descrito a garatujas
sobre folhas de amendoeira. Um amor estremunhado que não sabe nem fritar seus
próprios ovos no começo da manhã. Acontece que os poemas dos outros são tão
direitinhos, tão justamente metidos no interior das linhas de separação,
canções tão perfeitas, que em nada remetem para o nível real do acontecimento.
Não sei se alguém terá reparado que numa tarde de dezembro eu pisquei o olho a
J. Alfred Prufrock. Aquele restaurante todo coberto de serradura, suspenso numa
escarpa, está comigo até hoje. Thomas Stearns pediu ostras e depois descreveu
as ostras e eu ainda estou brincando com os pedacinhos de conchas. Quando veio
o lacaio eterno, todo vestido de negro e branco, sugeri-lhe que por favor me
atasse os cordões dos sapatos. É, um homem guarda poemas porque sabe que em
qualquer momento vai ter que fazer-se à corrida : subitamente tudo arde e então
a única possibilidade é o desvio. Para além das ostras, dos hotéis baratos, do
universo todo espremido dentro de uma bola de boliche, para além das xícaras de
chá e da cabeça de Lázaro sobre a bandeja de ouro, veio ainda aquele alsaciano
esfomeado, uivando como uma parada militar. Nesse dia alguém tocou Mahler num
serrote e acho que estou chorando até hoje. Fico empoleirado no parapeito da
janela nortenha, atirando os dados de uma mão para outra, pedindo por favor o
número seis. As criancinhas passam jogando no corredor, folhos de camisa
esvoaçando muito mais depressa que seus cabelos, e eu ali de testa encostada no
vitral. Quando me sair o número seis eu sei que Lázaro nunca mais morrerá. Sim,
o amor veio e fez sua saudação. Não foi cortês nem bruto, não se apresentou
como uma mudança de estação. Foi qualquer coisa como a entrada do fantasma de
Platão no esqueleto de Aristóteles. O q ue
acontece é que tenho vindo a guardar alguns poemas, resmas de papel de arroz
empilhadas na sala nortenha. A casa está sossegada porque tem que estar.
Pergunto-me se alguém possui uma pedra. Se alguém acredita verdadeiramente no
verão. Pergunto-me sobre o estado do tigre bengalês ali perto da região de
Hyderabad e repito o nome Rikki-Tikki-Tavi até a exaustão. Sei que todo
peregrino é poupado, principalmente se for daqueles que fritam um ovo pela
manhã. Desta janela eu vejo a esposa do mouro indeciso e vejo como ela fica
bordando os nomes dos profetas no manto encardido – tudo para esquecer o
caminho das possibilidades na cabeça de seu amor. Vejo as notas crípticas
deixadas à sorte nas margens do Corão, recados de paixão há muito tempo
abandonados. Vejo grafias escritas a vapor no muro que um dia dividiu Berlim, e
nalgumas horas me pergunto sobre o cachorro que foi deixado do lado de lá.
Penso na canção que diz que a saudade é o revés de um parto, ó metade amputada
de mim. Haverá tempo, haverá tempo. O fumo amarelo de janeiro fica esfregando suas
costas nas janelas desta casa. Haverá tempo para cometer um crime, haverá tempo
para a procriação. Tempo para lembrar a rede onde descansou o índio apaixonado,
aquele que fica arrancando o pó das entranhas das unhas do leopardo. Tempo para
encher a taça do filho de Deus e tempo para discernir o amor do que já é
costume. Da janela eu vejo as ondas rebentando no olho do Vesúvio. Peço a meus
filhos que se preparem para a estalada na cara, para o fechar brutíssimo da
porta do automóvel, para o vômito que vem do fígado, para o rosto escancarado
na decepção. O que importa é ouvir a voz que vem do coração – seja o que vier,
venha o que vier. Meus queridos filhos com cara de curumins, essa cicatriz que
se enterrou em vossas testas é um fogo que não para de brotar. Que ninguém vos
diga que um pai sabe de tudo – vosso pai andou pelo sertão da monotonia e
depois achou a mulher de carvão e fez a tempestade nascer do peito do anjo mais
brigão da aldeia. Foi a tarefa mais árdua que um escavador vestido de
suspensórios poderia ter atravessado – e ele ainda faz perguntas. Alguém possui
um vaso? Alguém enterra o arroz na praia de São Teotónio para ver depois de
nascer o carvalho? Alguém distingue o ocre do surgimento do vermelho? Mova-se
com calma, Tomé. Segure-se, Benjamin. Veja se ama seu homem, veja se nunca trai
a família de seu homem. Reze a novena das irmãzinhas que vão em fila até
Sevilha. Sim, alguém acredita verdadeiramente no verão. Se vires tua mãe
diz-lhe que ainda sou o rapaz de calças arregaçadas, e que a traição foi apenas
o destino da fuga. Daqui desta janela nortenha eu vejo o reflexo da água que se
alojou em minhas rugas, e nem por isso eu sigo chorando. Venha o que vier, fico
guardando alguns poemas. Certas formas nos pertencem muito para além da memória.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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