PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

A TRAGÉDIA FAULKNERIANA TRAÇA SEU CAMINHO EM SANTUÁRIO

“Santuário é um romance faulkneriano que se conduz, também, como uma tragédia moderna” 


Santuário foi um dos romances mais bem conceituados escritos por William Faulkner, este que foi um dos grandes escritores do século XX, pairando ao lado de Marcel Proust, Virgínia Woolf, James Joyce e Franz Kafka. O condado de Yoknapatawpha, por sua vez, no universo romanesco de Faulkner, tem um caráter de terra arrasada que revela toda a degradação sulista dos Estados Unidos de sua época.  

Um tipo de desespero espiritual, de desamparo existencial, de sensação de terror dentro da alma toma conta dos cenários e personagens do condado, em diversos pontos do universo romanesco de Faulkner, as coisas acontecem sob o influxo de um desencanto completo e nos limites éticos de uma vida pulverizada em demandas ásperas e fora de qualquer perspectiva auspiciosa.   

Santuário é publicado em 1931, e também retrata o condado de Yoknapatawpha, e conta a trajetória de Temple Drake, que passa por um processo progressivo de degeneração, Popeye tem uma presença forte durante o romance, e Horace Benbow passa por uma luta inglória por justiça. Um cenário de brutalidade se descortina neste romance sulista de Faulkner que, junto com o romance Absalão! Absalão! é considerado por alguns como o grande momento da obra de Faulkner. 

A narrativa conta a realidade inglória dos desvios de rota e das desrealizações, o material romanesco produzido por Faulkner em Santuário é um desenvolvimento sobre a realidade sulista e mais um giro pelo condado de sua ficção, o romancista coloca estas voltas ao mesmo ponto em diferentes romances e parece que seu leitmotiv ou tema-valise se metamorfoseia em diferentes romances, com diferentes estórias e um mesmo fundo comum existencial, a vida nestes romances giram no mesmo ritmo de desamparo, e isto perpassa toda a obra faulkneriana, diferentes gradações de uma mesma realidade de fundo comum a todos estes romances. 

O universo romanesco de Faulkner, que revela realidades terríveis, envolve tanto uma tradição romanesca norte-americana como da literatura universal, que podem vir das tragédias de Shakespeare, dos cenários desoladores de Joseph Conrad, e nos Estados Unidos, da vida degradada em Fitzgerald. A invenção humana em Faulkner é convincente, mesmo sendo produto ficcional absoluto, o romance de Faulkner, aqui também em Santuário, realiza os Estados Unidos sulista na versão própria do romance faulkneriano, a narrativa serve a si própria, mas cria este clima de uma realidade palpável do sul norte-americano. 

O prosaísmo das situações e as caracterizações de seus personagens tornam esta realidade romanesca faulkneriana bem convincente e bem semelhante à vida real, como ela se sucede dentro de certos limites, mas a riqueza da escrita e a produção ficcional ganham seu matiz próprio. Faulkner se serve de suas situações e personagens para a realização de sua literatura e, ao fim, ele é um romancista propriamente dito e não um documentarista social ou cultural. Seu retrato fiel dos Estados Unidos sulista aparece em perspectiva própria a um escritor, a serviço da imaginação criadora. 

William Faulkner é um escritor e romancista que herda a tradição literária norte-americana e ocidental, e ele cria Yoknapatawpha como um herdeiro de um ambiente sulista que se encontrava em decadência, e seu estilo e método se moldam no fluxo de consciência, e os preceitos deste fluxo são desenvolvidos na ficção romanesca faulkneriana com personalidade própria, de um escritor original, que criou o seu próprio universo de situações e personagens, e que é laureado também por estas razões. O romance moderno, aqui em sua versão norte-americana, ganha musculatura e solidez no caminho literário faulkneriano. A solução de seu fundo comum, por fim, será sempre Yoknapatawpha. 

O hibridismo de técnicas no romance de Faulkner é tributário de diferentes fontes e tradições, quando falamos que o romance tradicional e linear, com o tempo, se revestiu de elementos polifônicos, estamos falando do surgimento do romance moderno, e que em Faulkner reúne uma tragédia grega modernizada, paráfrase da novela gótica, alegorias bíblicas, a vida industrial sulista norte-americana em versão romanesca, o que mudou nesta cultura que entrou em decadência, e diversos outros elementos laterais e seu elemento novo do fluxo de consciência, que foi a grande transformação empreendida pelos principais romancistas do século XX. 

A polifonia do romance faulkneriano quebra normas estabelecidas, a fluência de Faulkner não faz concessões ou obedece rigorosamente a tradições e ideias preestabelecidas, e não fazer concessões é uma virtude literária que cria uma produção original e nova, que leva a literatura a um novo patamar crítico e de atuação, o fato de Faulkner ter sido laureado em vida é fruto desta sua ousadia formal e temática. Santuário é um romance que não segue normas, Faulkner é um escritor livre. 

Santuário tem um foco especial nos personagens, e esta é uma característica do romance faulkneriano, o privilégio de cada personagem em seus romances tem um grande peso, Faulkner normalmente trabalha bem e se aprofunda no universo de seus personagens que, embora prosaicos e rústicos, vítimas de uma realidade áspera e pobre existencialmente, em suas descrições ganham nuances que nunca tornam tais personagens unidimensionais do ponto de vista estritamente literário. 

A intercalação de personagens em Santuário tem um caráter cruzado, pois personagens descrevem personagens, a perspectiva podendo ser tendenciosa ou justa, portanto, criando a versão que se faz deste personagem visto por um outro olhar, o olhar externo, com todos os seus juízos. Estes personagens são observados e julgados, o prisma é intersubjetivo sobre subjetividades que são circunscritas por juízos de outros personagens. 

Como consequência desta narrativa cruzada de perspectivas, temos as elipses que vão e retornam embaralhando as percepções que perpassam Santuário, uma ambiguidade de enredo, o resultado polissêmico é fruto destas perspectivas montadas e remontadas através de seus capítulos, e a desorientação do fluxo de consciência advém aqui justamente de seus dizeres e desdizeres, sem um eixo de verdade absoluta para estes personagens, que se contradizem entre si o tempo todo. 

Temple Drake, que foi violentada por Popeye, retrata essa casa que representou na verdade um santuário do mal, e nisto temos um hibridismo com diferentes aspectos interpretados pelas personagens do mesmo lugar, diferentes versões narrativas dentro da narrativa total do romance Santuário, em que podemos ter a metalinguagem como esta interpolação de narrativas que se podem se sobrepor umas às outras, com uma Temple que pode se apresentar aterrorizante, e Popeye como uma ambiguidade e uma incógnita. 

Santuário, por fim, não se funda apenas como um tipo de tragédia, é uma fábula do triunfo do mal, e Temple Drake ganha este aspecto sob influxo de Popeye. Popeye vira um trágico em que Temple Drake o conduz ao abismo faulkneriano que o próprio Popeye se propôs a explorar, Santuário é um romance faulkneriano que se conduz, também, como uma tragédia moderna.  


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.


Link da Século Diário : https://www.seculodiario.com.br/cultura/a-tragedia-faulkneriana-traca-seu-caminho-em-santuario


  

 


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