A vida áspera, desesperada, aqui na comunidade de Estrela do Norte, no morro do Genésio, tem a dor que é sofrida, não tem saída, água insalubre, bichada, com bicho nadando, arrisco dizer que toda gente desdentada come banha, assim que os mercados jogam aquilo na beira da calçada. Era assim no começo, o desespero vivo, a miséria extrema. A família do pai Balalão, chefe de família irascível, com a psiquê de uma jamanta, e a sensibilidade de um caco de vidro, mandava e desmandava nos seus.
Balalão era casado com Vera Rosa, uma mulher vinda de um
sertão agreste, de uma cidadezinha de nome Valinhos, e na cidadezinha vizinha
nasceu Balalão, no pequeno distrito de Calimã. Eles se casaram ainda em
Valinhos, e um ano depois partiram e construíram um barraco no que ainda era
dominado por um mangue, e que, em vinte anos, viraria a comunidade de Estrela
do Norte, reunindo o Morro do Genésio, o Parque Araripe, o Mangue Zemba, o
Trapeze e o Mangue Verde.
A família cresceu nos vinte anos de quando Balalão veio junto
com Vera Rosa para o mangue. Quando os dois subiram o morrinho, havia junto
deles apenas mais uns quinze barracos em construção, e foi o tempo do
surgimento do morro que seria batizado de Genésio, nome de um fazendeiro antigo
que mandava em todo mundo, um século antes, e que foi dono de terras ali perto,
e mandava seus jagunços matarem seus desafetos neste morro. Genésio, depois da
crise do café, morreu endividado e num sanatório para tratar a tísica.
Balalão era Balalão Maniçoba, Vera Rosa era Pontes, e virou Vera
Rosa Pontes Maniçoba. Balalão era Maniçoba por parte de mãe, não tinha registro
do nome do pai, que era um cachaceiro de Calimã, mulherengo, que morreu
envenenado anos depois do nascimento de Balalão, provavelmente por algum corno.
Balalão, portanto, deve ter alguns irmãos ou irmãs de pai que ele nem conhece,
pois teve mesmo dois irmãos mais novos de seu padrasto José, este que morreu
pouco antes de Balalão deixar Valinhos e o qual chamava de pai. Sua verve
violenta, no entanto, veio das amizades em Valinhos, e das bebedeiras que já
fazia por lá na juventude.
No Morro do Genésio, e pouco antes, em Valinhos, por fim,
Balalão e Vera Rosa geraram onze filhos, sendo que dois morreram, um ainda
bebê, de difteria, e um com três anos de desnutrição, e que foram o segundo
filho, Carla, que morreu bebê, e o quarto filho, Bento, que morreu desnutrido.
Dos que estão vivos, em ordem de idade, do mais velho para o mais novo, tinha
José Antônio, 22 anos, o Dendê, único filho nascido em Valinhos, Maria de
Fátima, a Fatinha, de 20 anos, que veio na barriga da mãe de Valinhos e nasceu
no Morro do Genésio, de parto natural. Depois tem Luís, o Luisinho, 19 anos,
gêmeo univitelino de Bento, este que tinha morrido, e ainda tinha Paulo, o
Paulinho, 18 anos, Gertrudes, a Pitica, de 16 anos, Ederson, o Edinho, de 15
anos, Reginaldo, o Bica, de 13 anos, e os dois mais novos, gêmeos, o João, e
Joana, os dois com 12 anos.
Balalão Maniçoba tinha cortado muita cana em Valinhos, e no
Morro do Genésio virou aprendiz numa oficina do Seu João, e lá ficou, herdando
a oficina, que ficava no pé do morro, já perto do Mangue Verde e do Parque
Araripe. Vera Rosa começou costurando para fora, depois virou cuidadora, mas
como não parava de engravidar, acabou virando dona de casa, uma vez que acabava
perdendo o emprego.
Da família Maniçoba, inicialmente, todos eles moravam no
mesmo barraco erguido vinte anos atrás, um cômodo, cozinha, e do lado de fora
um quintal caótico, amarrotado de coisas, e não havia banheiro, pois tudo era
feito na beira do valão, e o banho era num pequeno clube, no pé do morro, com
fila de manhã, mas pequena, pois ampliaram os banheiros públicos, com chave, e
gratuitos, feito pelo caixa da comunidade do Morro do Genésio, que era a área
mais pobre de Estrela do Norte, junto com o Parque Araripe, melhorando um pouco
para Mangue Verde e o Mangue Zemba (que já tinha sido uma área completamente
miserável), e o local melhor da região era o Trapeze, pois ficava na saída para
a cidade, na avenida principal.
“Presta atenção! Que eu não vou repetir! A janta tem que ter
todo mundo porra! Cadê a porra do Dendê? Paulinho não aparece mais, parece que
se mudou para a casa da mulher lá, como é o nome dela? Ela não era puta?”
Resmungava na mesa antes de servir a janta um irascível Balalão. “Puta não,
modelo, disse o Paulo”, respondeu Vera Rosa. “Ô meu bem, como é que é esse
negócio? É puta!”. “Você sabe que esses meninos tão se perdendo, eu falo com o
pastor César todo dia, ele me disse que os dois estão endemoniados, é o diabo
que leva tudo embora e que não devolve, eu falei para você Rosa, e você finge
que não tem nada, e esses meninos de cá, os mais novos, não vão pro mesmo
caminho não, a gente leva pra igreja, tem a sessão de libertação e o cacete que
for”.
Vera Rosa responde então : “A janta tá pronta, não tem carne,
não tem frango, no quilo tem esse ovo cozido, um para cada um, arroz, feijão,
tomate, alface, tem repolho também, mas é um ovo só para cada um, lembra que
anos atrás não tinha bolsa do governo, e a gente caçava pelanca por aí, então
vamos orar agradecendo.” “Vocês tem que lembrar de não brigar, no Natal era um
bombom para cada um, mais os da visita, e deu confusão, tô pensando em comprar
nada mais não.” Reclamou Vera Rosa.
“Essa porra de chocolate no Natal foi uma merda, esses
meninos tão pirados, faltou respeito, cacete!” Disse Balalão. “Calma, paizão,
tu tá lembrado que agora vc bebia e não sabe mais se bebe ou vai pra igreja
virar coroinha de pastor” disse Vera Rosa. “É paizão, tu bebe lá fora e depois
vai orar de ressaca” disse Luisinho, que levou um tapa na cara de Balalão.
“Cala a boca, moleque! Quem manda aqui sou eu, seu merda!”
E o esporro sobrou para toda a mesa. “Eu sou o dono dessa
joça, e a banda toca com o meu apito porra!”.E continua : ”Tu tá um largado
Luis! Só come, dorme e vê TV. É um zé que não faz nada! Eu te chamo para a
oficina e nada. E tua mãe não fala nada, ela fica te dando guarita. Quando foi
que vc parou de estudar? Nem sabe. Eu sei! Foi nem terminar a sexta série, já
matava aula, ia soltar pipa e jogar bola, e nem para tentar trabalhar porra,
nem o que te ofereço serve, parece um viciado em televisão e sofá, é um cacete
essa porra!”. Reclamou Balalão. “E eu sei que o Dendê é outro malandro, e tá
metido em coisa errada há muito tempo, e você, Rosa, que finge que não vê.”
Dendê tava com 22, começou com 15 de avião do tráfico, se
mudou para um barraco no Mangue Verde, com uma funkeira que veio do Mangue
Zemba, já tava com 3 filhos meninos e pequenos. Sua função no crime subia de
importância, e já tinha matado até polícia em troca de tiros. Paulinho, como
disse Balalão, era um sumido, diziam que vivia nas costas de uma família de
classe média alta, da tal modelo, que tinha pai dono de hotel, e ele ficava no
quarto do hotel de graça, vivia com uns trocados, não se sabe como se virava
com o resto, pelo visto sempre tinha alguém para ser o mecenas da porra toda. A
modelo, que Balalão achava que era puta etc, realmente era modelo, e já tinha
passado dois anos no Japão etc.
Fatinha trabalhava de empregada doméstica há alguns anos e já
morava num outro barraco perto do da família, mas jantava lá, pois Balalão
sempre queria todo mundo lá na janta, depois da fome que passaram caçando
pelanca na rua, com sobras de supermercado e açougue. Pitica estava no segundo
ano do ensino médio e queria fazer enfermaria ou farmácia, ainda ia decidir.
Edinho ainda só queria saber de pipa, futebol, e ficar na rua até de noite. Já
cabulava aula, e parecia distante da escola, estava na sétima série, que
repetiu duas vezes. O Bica estudava e tava na mesma turma do Edinho. João e
Joana estavam na sexta série sem reprovar. Parecia que estes mais novos iam dar
em boa coisa, pois eram de temperamentos mais pacatos.
Edinho acabou sendo salvo por um olheiro que o viu jogando
bola e o levou para um teste, ele passou e foi para o juvenil de um time médio
do interior, onde passou a morar, na sede daquele clube. Lá ele ganhou um outro
tipo de disciplina e mudou rapidamente de conduta. Acontecia que, por sua vez,
houve a invasão da facção Caveira no Parque Araripe, e depois eles ocuparam o
Mangue Zemba.
Um grupo de criminosos conhecido como Os Sete, que fazia
assaltos pela cidade, e que começou a também fazer tráfico de drogas, resolveu
rivalizar com o Caveira e ocupou o Mangue Verde e o Morro do Genésio. Dendê,
que pertencia a um grupo chamado Os Pistoleiros, se juntou a este Os Sete, e
uma guerra entre facções começou. O Trapeze ficou livre, pois tinha uma
delegacia e um batalhão na entrada da comunidade. Foi feita uma fusão de Os
Sete com Os Pistoleiros, e mais um grupo chamado Armada Livre, e mais a
cooptação de jovens do Mangue Verde e do Morro do Genésio, para formar o
Comando Solar. Dendê ficou em quinto na hierarquia da facção recém-batizada.
Ele era bom de conta e bom de tiro, sendo bem útil para o então proclamado
líder da facção, o Cobra. Na Caveira se destacavam o chefão Marcinho, e tinha o
segundo na hierarquia, o Paulo Doidão.
Quando chegou a notícia Balalão deu um escândalo, duas
notícias, a primeira foi a atuação de Dendê no Comando Solar, pois agora ele
desfilava de moto, rádio e uma AK-47 no ombro pelo Morro do Genésio, no que
chamava de ronda, e parava para filar boia de almoço da Vera Rosa, e que
Balalão acabou autorizando para não dar problema na ronda, uma vez que o morro
tava dominado pela facção. E teve a notícia da gravidez da tal modelo que o
Paulinho tinha caso, no que Balalão ficou puto, pois Paulinho era um boa vida e
não tinha emprego fixo.
Rosa já até sabia de outro caso dele, uma grã fina mais velha
que dava tudo para ele, amor de pica. Por sua vez, Dendê queria deixar picanha,
maminha e peixe no barraco de Rosa e Balalão, mas Balalão rechaçou, disse “que
não queria coisa de roubo etc na casa dele, senão Dendê ia ter que desaparecer
dali, filar boia na puta que pariu etc”, e Rosa acatou. Os meninos mais novos
reclamaram, mas logo levaram esporro de Balalão. O almoço lá podia ter frango,
o ovo cozido ficava para de noite, a carne de Dendê ele teve que preparar num
barraco tomado pela facção, onde ficava um menor tomando conta e armazenando
armas e drogas. Lá tinha um terraço e teva tendo churrasco direto, com som
alto, tiros para o alto, fogos de artifício etc.
Balalão logo proibiu qualquer filho de ir para lá, pois
aquilo era problema do Dendê, que ele “ia se foder e o caralho” etc. Luisinho
acabou indo em um desses churrascos, voltou bêbado para o barraco e apanhou de
cinto de Balalão, e que agora ele tava obrigado a aparecer na oficina para
“virar homem” etc, e que a vida boa tinha acabado. Depois de uns dias, finalmente
Paulinho aparece, Balalão ameaça bater nele, mas Rosa consegue dissuadi-lo.
Paulinho conta que a tal modelo tava grávida e que ele ia assumir o filho e que
tava fazendo uns bicos por aí. Balalão não se convenceu e já sabia que tudo
ficaria nas costas da outra família, que tinha um irmão mais novo em Valinhos
que era igualzinho, tinha três filhos com três mulheres e ele levava a vida na
flauta, não sustentava nenhum deles.
O que Balalão fez foi levar Paulinho para ter uns conselhos
com o pastor da igreja, o que o satisfez, mas tudo tinha passado por um ouvido
e saído pelo outro, pois Paulinho saiu do Morro do Genésio rumo a um bairro
nobre onde ia jantar com a tal grã fina que era uns quinze anos mais velha do
que ele e ele era o fodião no qual ela tava viciada. A modelo ficou sabendo
deste caso e de outros e acabou perdendo a paciência e terminou com Paulinho.
Edinho volta de sua temporada no interior, ia entrar para o
juniores e faria testes em quatro clubes médios e um grande, ele ainda tava
pensando em um clube maior e melhor, mas neste clube do interior morava e comia
bem, dividia um beliche com outro jogador do juvenil e tinha conhecido uma
menina e tava de caso há uns quatro meses. Lá no Morro do Genésio ele voltou
para passar férias e fazer testes em dois clubes da capital. Ele é reprovado no
primeiro, um clube grande, e passa no teste de um clube médio da capital e iria
morar num bairro de classe média baixa, o Coqueiral, num quarto e sala, e
depois de conversar com um cara do CT junto com Balalão, descolaram uma vaga de
vigia para Luisinho, que Balalão disse que “tinha que deixar de ser vagabundo”.
Luisinho ia continuar morando com Balalão, Rosa e os outros filhos no barraco,
pois “o apartamento era de Edinho, coisa dele” etc.
Bica também começa a fazer testes, mas reprova em todos e
acaba desistindo e arruma um estágio de jovem aprendiz na indústria de
cosméticos e depois começa a estudar para trabalhar como auxiliar
administrativo, ganha vaga num escritório de advocacia e começa a sonhar com
uma graduação em Direito em faculdade pública. João agora queria fazer Educação
Física e Joana sonhava com Veterinária. Pitica passa para Farmácia, e Fatinha
continuava como doméstica, agora num casarão em local privilegiado da cidade.
Bica, por outro lado, foi quem gravou e preparou o portfolio
de Edinho, ele tentou um clube grande de outro estado, mas reprovou. Começou o
profissional num novo contrato num clube de série B do estadual. Seu sonho de
jogar em clube grande não se concretizava, e ele acabou depois indo para
Portugal, China e República Tcheca, terminou depois num clube de terceiro
escalão da Áustria, e acabou ficando por lá, depois trabalhando de garçom e de
métrie quando se aposentou do futebol.
Bica, que terminou o estágio e o curso de Direito, depois se
mandou também para a Áustria, trabalhando como garçom onde Edinho estava já
como métrie. Os dois então foram dividir apartamento em Viena. Lá eles ficaram
e raramente vinham para o Brasil, levavam uma vida de classe média baixa, na
periferia de Viena, se casaram, tiveram filhos austríacos etc, mas tudo com um
regime espartano de bens e lazer, sem muitas chances de mobilidade.
Nesse meio tempo, quando Edinho ainda tentava a carreira de
boleiro no Brasil e Bica cursava Direito, Dendê fazia a sua ascensão no crime
organizado, até se tornar o chefão do Comando Solar. Fatinha ficou trabalhando
durante anos neste mesmo casarão. Pitica começou a trabalhar como farmacêutica,
casou, teve um filho, e alugou um quarto e sala com o marido, também
farmacêutico. Balalão bateu muito nos filhos, mas não encostava em Rosa, ele
tinha um moralismo muito rígido, só que era um louco em áreas como bebedeira e
criar filho na base da porrada. Sua relação com a igreja era ambígua, pois
nunca largou a bebida.
Assim que Edinho se firmou em Viena, na Áustria, Balalão
descobriu que estava com cirrose hepática e foi fazer tratamento, um enfisema
pulmonar lhe atingiu logo em seguida, pois além de beber cachaça, fumava dois
maços de Marlboro por dia há décadas. Vera Rosa ficou inconsolável, e podia
contar com João, Joana, que ainda moravam no barraco, não tanto com Luisinho,
que era muito preguiçoso, e empurrava seu emprego de vigia no CT ao longo do
tempo, quanto a Edinho, este já tinha saído dali há tempos. Luisinho ainda
morava no barraco e gastava seu salário com cerveja e caça níquel, era o mais
acomodado da família. Fatinha morava há muito tempo em outro barraco e fez
melhoramentos nele, com uma laje para churrasco e banho de mangueira. Dendê
tinha um casarão no topo do Morro do Genésio e liderava a tropa do Comando
Solar. A essa altura, além dos três meninos, que tinham virado três rapazes,
ele arranjou duas filhas pequenas com uma nova esposa, que era agora a dama do
Comando Solar.
A atuação de Dendê no Morro do Genésio preocupava Vera Rosa,
pois Balalão tava doente, e ela tava com medo do futuro. João e Joana ainda
estudavam e Luisinho era uma mala sem alça. Fatinha era quem fazia as compras
para o barraco, e como era vizinha de uma escadaria diferente, começou a ter
mais presença para ajudar Rosa e auxiliar nas idas e vindas de Balalão do posto
de saúde, que também ficava na entrada da comunidade do Trapeze.
O posto de saúde vivia lotado e Balalão não tinha disciplina
para o tratamento, foi piorando, e depois de seis meses teve que ser internado
no posto de saúde, em que Fatinha e Vera Rosa ficaram revezando, Pitica foi
para o barraco para tomar conta de João e Joana, e o inútil do Luisinho vivia
num universo paralelo em que trabalhava de vigia no CT, depois bebia e jogava caça
níquel, levando uma existência pálida. Depois de um tempo ele foi demitido,
ganhou seguro desemprego, mas logo o dinheiro acabou e ele ficou encostado no
barraco de novo, pois fingia que ia buscar emprego, mas ia para o caça níquel
gastar o que agora era um tipo de mesada que Vera Rosa dava para ele. Por sua
vez, na guerra do Comando Solar contra o Caveira, a facção de Dendê consegue
invadir o Parque Araripe e deixar o Caveira apenas com o Mangue Zemba, e na
invasão do Parque Araripe, Marcinho foi capturado, e acabou executado num
descampado depois do topo do Morro do Genésio, numa passagem de desova que dava
para o Mangue Verde, também dominado pelo Comando Solar. Marcinho foi para o
microondas e virou cinzas, tudo de madrugada, com tiros para o alto e fogos de
artifício. Paulo Doidão vira o novo chefão do Caveira e jura vingança.
A guerra continua, e o batalhão que ficava na entrada do
Trapeze não se mexia para nada. Havia um esquema de suborno comandado antes de
Dendê virar chefão do Comando Solar, desde quando ele contava a grana da facção
na secretaria executiva, e agora ele queria “otimizar o bagulho” e conseguiu
trazer um paraguaio especialista em armamentos e balística e tinha um detetive
infiltrado na delegacia da civil que também ficava na entrada do Trapeze.
Contudo, com a troca de sub-comandante no batalhão do
Trapeze, a polícia militar começou a fazer incursões sistemáticas no Mangue
Verde e no Morro do Genésio, com troca intensa de tiros com o Comando Solar.
Com esta presença do batalhão nas redondezas, o Comando Solar desistiu de
invadir o Mangue Zemba e expulsar o Caveira de Estrela do Norte, com eles
ficando lá como último bastião de facção inimiga na região.
Por sua vez, o plano de vingança de Paulo Doidão tava de pé,
e a convocação de menores para formar um sub-grupo do Caveira no Mangue Zemba
fazia parte desse plano. Dendê, contudo, ficou sabendo, e mandou uns caras
encapuzados, de moto, metralhar a menorzada que ficava na rua do Mangue Zemba,
matando uns oito menores, uma chacina. Paulo Doidão então resolveu contratar um
pistoleiro que não era da região para matar Dendê. Dendê acaba pego fora do
Morro do Genésio, no balneário de Ilha Formosa, quando esse pistoleiro dá oito
tiros em Dendê, que morre na hora, e deixa a dama do Comando Solar em choque,
com duas meninas chorando que o pai tinha morrido, as três sendo testemunhas do
crime, mas sem identificar o pistoleiro, que estava de máscara.
Balalão já estava nas últimas, Vera Rosa decidiu não informar
Balalão da morte de José Antônio, o filho mais velho, mas a morte de Dendê
acabou virando notícia no jornal local e uma semana depois, com os três
rapazes, as duas meninas, a ex-mulher, mais a mulher atual, junto com Vera Rosa
e Fatinha, Balalão ficou sabendo, ele tava à base de morfina e recebeu a
notícia meio abstratamente. Só que uma depressão profunda lhe acometeu durante
um mês, até que um infarto matou Balalão, em meio ao tratamento contra o
enfisema pulmonar e a cirrose hepática. Paulinho apareceu num dia no hospital
com uma loira queimada de sol a tira colo, sua filha com a modelo que agora era
ex-namorada e ainda pegou Balalão vivo, nas últimas. Edinho tinha vindo umas
semanas antes, nessa época ele tava jogando na China, portanto, gastou os tubos
para se despedir do pai. Por fim, depois da morte de Dendê, todos os filhos
vivos puderam se despedir de Balalão antes de sua morte.
Vera Rosa tinha levado duas pancadas em pouco tempo. As
mortes de Dendê e de Balalão deixavam um vazio. Fatinha resolve chamar Vera
Rosa para morar com ela no barraco maior para ela ficar livre de tarefas
domésticas, pois Fatinha dava conta do casarão durante a semana e de seu
barracão no fim de semana. Fatinha e Pitica procederam para a venda do barraco
em que ficava Vera Rosa, mas Luisinho implorou para ficar lá, pois não tinha
que pagar nada etc. Depois de muito chororô, Luisinho ficaria lá sozinho,
recebendo o que ele conseguiu de assistência social. João e Joana iam começar a
faculdade de Educação Física e Veterinária, na federal pública,
respectivamente, e também foram para o barracão da Fatinha, que agora tinha
dois andares e uma laje. Fatinha decidiu não se casar e lá estava com espaço
para a mãe e os irmãos mais novos ficarem.
Depois da morte de Dendê, Paulo Doidão lidera o Caveira e
retoma o Parque Araripe depois de uma guerra sangrenta. Paulo Doidão exerce uma
liderança bem mais cruel que a de Marcinho, que ainda vinha de uma época mais
romântica, tendo começado como ladrãozinho pé de chinelo, roubando mercadinhos,
quitandas e bares, era conhecido como Dedé, morando num barraco com os irmãos e
a mãe solteira, no Mangue Zemba. Quando começou a se formar a gangue da
Caveira, ele entrou, até virar facção, sob a liderança de Orlando, que depois
que morreu, deu lugar à ele, Marcinho, o antigo ladrão Dedé.
Paulo Doidão, por sua vez, era o menor Paulinho Pemba, também
do Mangue Zemba, e que depois se radicou no Parque Araripe e ascendeu no crime
de roubo e assalto a bancos. Entrou para o Caveira e mudou seu codinome para
Paulo Doidão. O antigo menino Pemba agora ostentava a chefia criminosa mais
violenta da região, com o plano de dominar toda Estrela do Norte, expulsando o
Comando Solar de uma vez, desde o Mangue Verde, até seu centro nervoso, o Morro
do Genésio.
João e Joana pleitearam vagas nos alojamentos da federal,
para fazerem suas graduações longe dos problemas do Morro do Genésio. Os dois
irmãos conseguiram vaga no alojamento do campus e podiam almoçar no bandejão de
graça, pois viraram bolsistas universitários. Lá eles fizeram muitos amigos e
já planejavam, junto com eles, dividir o aluguel de uma casa no bairro de Santa
Mônica quando já estivessem trabalhando.
Parecia que o caminho dos gêmeos era colar com a galera
alternativa de Santa Mônica e se libertar da vida áspera que tiveram no Morro
do Genésio, e para isto mantiveram notas brilhantes durante toda a graduação,
cumprindo iniciação científica e estágios supervisionados para já saírem
empregados da universidade. João acabou saindo da Educação Física, depois de
dois períodos, e foi fazer Geografia no mesmo campus, mantendo os direitos de
bolsista. Joana, por sua vez, queria abrir uma clínica veterinária assim que se
formasse na universidade.
João também se envolveu com grupos de músicos de Santa
Mônica, colegas de campus, e foi também pegar umas aulas de violão, como
amador, sem montar banda ou compor. Joana, enquanto fazia Veterinária, aprendeu
a fazer artesanato com algumas amigas de campus e ganhava um extra com venda de
miçangas, artigos de artesania, colares, pulseiras, enfeites e objetos lúdicos,
o que também era vendido numa lojinha que ficava no próprio campus universitário.
Edinho, na sua ida para Portugal, e depois sua morada na
República Tcheca, avisou que quando desse o Bica iria ficar na Europa com ele.
Bica não tinha se dado bem nos testes de futebol nos clubes, estava na
graduação de Direito, mas ficou empolgado com morar fora. Edinho, quando deixou
o país, começou num clube de segunda divisão de Portugal, onde ele foi morar no
CT do clube, em Sagres, e lá ficou por dois anos.
Em seguida foi para um clube da primeira divisão da China,
ficou na reserva, jogou alguns jogos do campeonato chinês, mas, depois da
temporada, foi emprestado para um clube da segunda divisão da República Tcheca,
onde ficou como titular por mais dois anos, indo para um clube da série C do
campeonato austríaco, da capital, Viena, onde ficou como titular por três anos
e, depois de uma contusão no joelho, acabou se aposentando dos campos e indo
trabalhar de garçom no restaurante de um amigo austríaco de Viena, onde fez
curso de métrie e foi promovido para métrie deste mesmo restaurante, e foi quando
ele chamou o Bica, que pegou passaporte e visto para morar com Edinho em Viena,
com Bica indo trabalhar de garçom neste restaurante do amigo austríaco de
Edinho.
A facção da Caveira, depois de retomar o Parque Araripe,
invade o Mangue Verde, e depois de um tempo, começa uma guerra contra o Comando
Solar, no Morro do Genésio. O novo chefão que entrou no lugar de Dendê não
conseguiu organizar a facção diante das investidas da Caveira, sob a chefia de
Paulo Doidão, e toda a cúpula do Comando Solar, durante uma madrugada, num
total de seis pessoas, incluindo o novo líder, Magrão, foram capturados no
Morro do Genésio e executados no Mangue Zemba, tudo no microondas, com a
participação de Paulo Doidão.
No dia seguinte, a facção da Caveira ocupou o Morro do Genésio,
expulsando o Comando Solar de Estrela do Norte, ocupando agora o Morro do
Genésio, Mangue Verde, Mangue Zemba e Parque Araripe. O Trapeze continuava com
a delegacia civil e o batalhão na entrada. Paulo Doidão meio que deixou de lado
ali, pois lá já tinha surgido uma milícia de ex-PMs de nome Sindicato Cop, e
havia um acordo de que o Trapeze ficaria sempre sem facção.
O que ocorreu foi que o sub-chefe que ocupou o Morro do
Genésio, de apelido Seixas, com uma tropa que ficaria por lá, sob ordens de
Paulo Doidão, estava com a missão, dentre outras, de expulsar a família de
Dendê do Morro do Genésio, e foi quando a tropa invadiu o barraco em que ficava
Luisinho e o expulsou do Morro do Genésio, na base de chutes na bunda e na
cabeça, saindo o coitado com uma mão na frente e outra atrás. Luisinho levou um
monte de chutes, pois a tropa sabia que Luisinho era um faz nada, um pobre
coitado. O barraco de dois andares, que tinha o terraço, de Fatinha, como era
local de família, foi expulso verbalmente, sob a mira de submetralhadoras, e a
família foi autorizada a pegar todos os pertences e arrumar outro lugar para
morar o mais rápido possível. Por sua vez, o barraco em que ficava Luisinho foi
ocupado por dois membros da tropa para a contabilidade e despachos de drogas.
Fatinha, junto com a mãe, Vera Rosa, alugou um barraco menor
que ficava na Vila Clotilde, bem distante de onde ficavam as comunidades que
formavam a Estrela do Norte, e nesta Vila dominava uma milícia de nome Justiça
Final. Lá elas não foram incomodadas, e a esta altura tanto João, como Joana,
os gêmeos, já estavam numa casa alugada no bairro de Santa Mônica, com outros
universitários como eles. Pitica, por sua vez, depois que o pai Balalão e o
irmão Dendê morreram, tentava juntar a família toda para o próximo Natal.
Por sua vez, depois de uns dias na rua, Luisinho apareceu na
porta do barraco em que ficava Fatinha e a mãe, Vera Rosa, e ele só foi
admitido lá sob a condição de trabalhar com alguma coisa, senão continuaria na
rua. Ele acabou vendendo balas e doces, entrando nos ônibus da cidade, coisa
que agora lhe ocupava as manhãs e as tardes de segunda a sexta. O caso era que
Fatinha não tinha a mesma paciência que a mãe Vera Rosa tinha com as
malandragens de Luisinho, ainda mais agora que ele já estava mais velho.
Pitica mantinha contato constante com os irmãos de Viena,
Edinho e Bica, e eles já estavam se organizando para vir ao Brasil para passar
o Natal, que seria, provavelmente, no apartamento de Pitica. Não era barato
eles virem de Viena, o que tinha ocorrido duas vezes num espaço já de cinco
anos, mas este Natal seria o primeiro da família reunida depois das mortes de
Balalão e Dendê. Dessa vez os irmãos de Viena não poderiam ficar de fora. E a
organização do Natal começou já com esta garantia da vinda de Edinho e de Bica.
E, nesse meio tempo, Paulinho, que tinha uma filha com uma modelo, ex-namorada,
agora tinha engravidado uma outra moça, e nasceria dessa vez um menino. Parecia
que, desta vez, o relacionamento era estável, ao contrário da piranhagem que
ele tinha feito a vida toda, como um mulherengo inveterado. Paulinho tinha dado
uma sossegada com esta moça, só não estava casado no papel, mas era uma união
estável, já de dois anos.
Passam-se seis meses e chega o dia em que se faria a noite da
ceia de Natal. Pitica, o marido, o filho adolescente, e agora uma filha
pequena, num apartamento de dois quartos de classe média baixa, organizam a
ceia,a árvore e os presentes. Todos chegam entre oito da noite e dez da noite.
A saudade de alguns era imensa. Alguns irmãos, entre si, eram mais próximos,
outros mais afastados, e a dor do luto ainda ecoava, sobretudo para a matriarca
Vera Rosa.
“Eu sinto ainda pelo Balalão, o homem da minha vida, e muito
por José Antônio, que a gente sabe foi para o lado errado da vida. Ainda bem
que meus outros filhos não foram para o crime. Que bom.” Disse Vera Rosa. “Eu
acho que a vida pode ser sempre melhor, esse apartamento é melhor que o outro,
que era melhor que o barraco no Morro do Genésio. Agora você e Fatinha tão na
Vila Clotilde, parece que aquele lugar, a Estrela do Norte, virou um inferno
para sempre.” Disse Pitica. “Morar na Áustria é mais seguro, não realizei todos
os meus sonhos como jogador de futebol, mas meu trabalho hoje no restaurante me
deixa cada vez mais interessado em crescer na profissão de métrie. Descobri uma
segunda vida depois de um sonho lindo que ficou em clubes medianos.” Disse
Edinho.
Luisinho não fala nada, fica comendo os canapés e doces,
acomodado como sempre. Bica não diz nada, pois ouvia tudo o que Edinho falava e
assinava embaixo. João falou sobre a universidade e sobre Santa Mônica e Joana
sobre a sua clínica veterinária, que finalmente ela inaugurou um mês antes.
Paulinho, agora casado informalmente, disse que finalmente tinha achado o amor.
Um milagre. Vera Rosa falou as palavras finais, antes da distribuição dos
presentes. “A gente era a ralé, e ainda de certa forma somos a ralé. Mas a
coisa melhorou. Não tinha peixe e carne na mesa, agora tem. Não tinha gente na
universidade, agora tem. Que os filhos de seus filhos não sejam mais a ralé!”
Finalizou Vera Rosa. Sete meses depois ela teve um derrame e veio a óbito,
agora a família que veio da ralé, saía de lá, e o luto também iria passar.
Conto novo : Pronto em 15/12/2023
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com
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