“a poesia e todos os poetas brasileiros levaram um chute na
cara”
O poeta Carlos Drummond de Andrade levou um chute na cara,
digo, sua estátua levou um chute na cara. Passo pelo calçadão de Copacabana
quase todos os dias para fazer a minha caminhada de oito quilômetros, e nesses
dias não fui, ainda não vi o resultado de mais um ataque contra o Drummond,
digo, a estátua, ou melhor, o Drummond. Tem um tal do fetiche pelos seus
óculos, suas hastes são tentadoras ao vândalo, o burro fundamental da nossa
espécie, que também pode ser brilhante com Drummond, mas que vive uma decadência
cultural enorme que tem como resultado um cara de madrugada chutar a cara do
Drummond.
Sua obra vastíssima é uma das mais abrangentes da poesia
brasileira, sem falar das crônicas, também valorosas. Drummond é o poeta do
boitempo, de alguma poesia e do claro enigma, conhece, vândalo? Vou te
apresentar o poeta da pedra no caminho e da quadrilha, ele é legal, não precisa
chutá-lo, a poesia não é um monstro incompreensível, e não é por você não
entender poesia que tem que chutá-la. Repito, meu caro vândalo, Drummond é
gente boa, mas você não o conhece, e ficou com raivinha de uma estátua estar
ali plena no seu banquinho contemplando a madrugada, fenômeno da noite que
você, vândalo, também não entende, pois você não entende nada.
Drummond, meu caro vândalo, recebe agora e sempre um grande
reconhecimento, um cara que foi funcionário público, pois poesia não dá
dinheiro, com exceção do Nobel que foi Pablo Neruda, é bem difícil um poeta
viver de poesia, poetas vivem de jornal ou de aulas, ou outra atividade inusitada.
Quer dizer, Drummond, meu caro vândalo, pode lhe explicar a noite e a
madrugada, e você pode melhorar as suas prioridades, pois não é porque você não
entende que não existe. Drummond existe, está aí, mas você não sabia. Meu caro
vândalo, vou te explicar uma coisa : bater em estátuas é burrice, elas não
sentem dor, são inanimadas, e bater numa estátua de uma pessoa que você não
sabe quem é, por favor, foi mais burro ainda.
Agora vivemos o paradoxo de uma obra que virou cânone,
ensinado nas escolas, um Drummond que a maioria ama, pois já vi uma moça
tirando selfie e beijando a estátua do Drummond, sim, esta estátua já recebeu
vários carinhos, vamos ser justos. Mas, não sei, tem gente que tem problemas
com hastes de óculos e estátuas, um ódio primal, filho da burrice, um ódio
gratuito contra a cultura, que em sua manifestação, sem falar apenas do
vandalismo, vai pela rota conhecida do anti-intelectualismo e do recalque
contra a imaginação dos escritores e artistas.
Vivemos cercados por um ódio contra a cultura que, no caso do
vandalismo, é uma burrice tonta e voluntária. E temos também, falando da
burrice voluntária, o caso da anti-literatura dos que gostam de dizer que são
fodões da vivência, certamente regada a álcool, isto depois de ficar enfurnado num
escritório, e achando um pintor, um youtuber, um ator, uma atriz, um cineasta,
um poeta, todos vagabundos, que não trabalham, isto é, não lambem as botas de
um sistema que sempre foi anti-intelectualista e que sempre fechou as portas
para artistas e sobretudo poetas, que o diga os inéditos, estes que mandam
livros para editoras que não respondem, o que é um hábito já de muitos anos, o
fenômeno espetacular do editor mudo, do editor esnobe que só trabalha com
indicação, do editor blasé que não gosta de inéditos.
Pois sim, Drummond levou um chute na cara, ou melhor, a
poesia e todos os poetas brasileiros levaram um chute na cara. Somos
sistematicamente subestimados, poetas sempre foram a poeira do cocô do cavalo
do bandido, já passou da hora da sociedade acordar e respeitar todo o processo
histórico inexorável da produção literária, o mundo hostil contra o que é
literário tem que ter um fim, não gostamos de levar chute na cara, ninguém gosta,
não gostamos de editoras que não leem nossos inéditos, nem que seja para dizer
que foram recusados.
Não gostamos de levar chute na cara, Drummond quer seus
óculos de volta, roubar seus óculos é exatamente a miopia existencial de um
cegueta que não tem lente e nem sabe quem foi Drummond, ele não sabe, ele não
sabe de nada, e de outro lado a decadência e o ódio à cultura nos leva a um
mundo aparentemente funcional que censura a criatividade, que sabota, limita,
mente, ignora, finge que não vê, e nos dá mais um chute na cara.
Drummond e sua estátua estão expostas ao fracasso cultural e
intelectual de uma sociedade e de um mundo que deveria respeitar estes poetas,
poetas não escrevem para levar chute na cara, nem bomba e nem tiro, um cientista
não trabalha pelo progresso humano para ser assassinado na esquina, como foi
meu irmão, uma pessoa brilhante que partiu e que sei que um dia vou rever.
A cultura tem que estar na frente, ela é o veículo nobre do
conhecimento, urbano ou acadêmico. O respeito às manifestações artísticas são a
chave de mudança de uma parte da sociedade que vê a arte como coisa pouca, de
gente que não trabalha, acha que poetas fazem sabonete de hotel, souvenir, e
não trabalho sério, parte de um processo histórico cada vez mais necessário e
que deve ser encarado como tal, numa sociedade que não fecha as portas para
seus artistas, poetas, pensadores e cientistas, uma sociedade do conhecimento
que supere a decadência cultural, do ódio anti-intelectual, do modelo
pragmático que nunca entendeu metáfora ou alegoria, que nunca entendeu nada que
não seja funcional, isto na concepção deles.
A decadência cultural é aquela que não entende arte e poesia,
e resolve chutá-la, ou varrer os escombros de um monstro para debaixo do
tapete, pois isto também, para variar, eles não entendem. E quem não entende,
passa a odiar, e aí chuta. A decadência cultural tem este resultado, uma
estátua que já foi vandalizada onze vezes. Meu caro vândalo, eu sei que você
não vai entender isto que estou lhe dizendo, pois você não vai ler esta
crônica, vai estar chutando a cultura que você não lê, não conhece, e que vai
morrer sem entender. E uma das coisas mais tristes do mundo é um homem ou
mulher viver e morrer sem ter entendido nada, triste.
Mas, o poeta levar chute na cara, os artistas, intelectuais e
cientistas, todos nós, diante da decadência cultural, levamos chute e tiro por
sermos assim, livres, pois quem é preso é o vândalo, prisioneiro de sua
estultícia, o bandido que tem um ódio contra uma estátua que ele nem faz ideia
do que se trata, a única ideia brilhante dele foi chutar a estátua, mas nem
assim foi original, roubou as hastes que foram roubadas por outros com o mesmo
tino para a criatividade da ignorância. Os vândalos de Drummond são mais
inanimados do que uma estátua.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36404/14/a-estatua-de-drummond
Nenhum comentário:
Postar um comentário