PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

domingo, 25 de junho de 2017

POR QUE LER OS CLÁSSICOS – ÍTALO CALVINO – PARTE V

A CIDADE-ROMANCE EM BALZAC

Balzac, na visão de Ítalo Calvino, foi um romancista que realizou a operação literária de transformar a própria cidade em romance, pois o escritor tinha a capacidade e a intenção de colocar os bairros e as ruas como verdadeiros personagens dotadas de caráter e diversos entre si, e que, para Calvino, Balzac era capaz de “evocar figuras humanas e situações como uma vegetação espontânea que germina do calçamento desta ou daquela rua ou como elementos de tão dramático contraste com elas a ponto de provocar cataclismos em cadeia;”, e que aqui é feito no momento em que Balzac começa a escrever Ferragus, e que o escritor então faz com que a sua obra literária tenha como protagonista a cidade viva, Paris em sua faculdade monstruosa, como algo praticamente biológico.
E um fato curioso é que Balzac tem em mente, inicialmente, fazer um ciclo romanesco que juntasse a ideia de sociedades secretas com a de indivíduos à margem da sociedade que tivessem uma espécie de faculdade onipotente, no que Balzac tinha a ideia de retratar o domínio que era efetivado por personagens numa rede que se colocava invisível no contexto que era comum às sociedades secretas. Só que tal plano muda de figura, e Balzac será, na verdade, o inventor dos mitos que serão a forma própria da narrativa culta e popular que lhe deverão o mérito por mais de um século.
Um desses mitos fundamentais do romance em Balzac e que dará norte em parte das narrativas na literatura mundial subsequente é o do Super-Homem que é prejudicado pela sociedade que o cerca e que retorna como um vingador implacável, e que, com as feições proteiformes de Vautrin, a qual terá presença nos tomos da Comédia humana, terá eco, como nos diz Calvino “em todos os Montecristos, os Fantasmas da Ópera e talvez os Chefões que os romancistas de sucesso hão de colocar em circulação.”
Em Ferragus ainda estamos sob influência do romantismo byroniano, num enredo bem urdido que mantém o mistério e o suspense em doses precisas, e isso entre cenas com golpes inesperados. O personagem Ferragus que dá nome ao romance é um nome que tem em si este caráter de batalha, um ser tenebroso com tal nome ariostesco, que tem papel central, e que é descrito por Balzac em seu declínio.  
Balzac tinha como fundo principal do cenário de seus romances o poema topográfico de Paris, e coloca de forma inovadora a cidade como a própria linguagem dos romances, e que tem ainda caráter de ideologia, ou ainda como fonte que condiciona cada pensamento, palavra e gesto. E sua obra pode se constituir como uma espécie de enciclopédia parisiense, e que tem dentro deste pacote o registro fidedigno da fala de várias categorias sociais e de personagens, com conhecimento do autor das afetações e neologismos da moda e mesmo a entoação das vozes, e também em situações normais da declamação habitual do cotidiano comum.
Balzac com A História dos Treze realiza o que podemos chamar de atlas do continente Paris, e o escritor concluiu Ferragus, e nesse momento escreve mais dois episódios para completar o tríptico que se configuram como romances diversos entre si e do próprio Ferragus. Aqui nesses dois novos episódios Balzac coloca um ponto comum, pois em ambas as estórias temos protagonistas numa aura misteriosa, mas que tem como outro ponto mais relevante a digressão de amplitude que cobre várias outras vozes do escopo que virá a ser denominado por Calvino como a “enciclopédia parisiense” de Balzac: em La duchesse de Longeais, que se trata de um romance de natureza passional que ganha a verve de um transbordamento autobiográfico, e que no segundo capítulo que se constitui como um texto que vai influenciar  a cultura francesa que culmina em fenômenos como Sade e tudo o que veio após este, com uma apresentação antropológica das classes sociais parisienses.
Balzac não fica, no entanto, nesta base de digressões, pois investe também na sua escritura na experiência psicológica intimista, e isso sobretudo na relação conjugal, que é uma das colunas do autor. Aqui em Balzac temos uma dupla função dentro de seu romance que se dá entre o meio psicológico e a aventura, e tais duas frentes são a função romanesca completa da inspiração balzaquiana.  
A densidade romanesca em Balzac ainda tem rostos particulares na escritura que se configura como mitologia da metrópole, pois ainda não foi alcançada a multidão anônima que veremos em Baudelaire, por exemplo, já que em Balzac temos a psicologia individual ainda em relevo. E os mistérios ainda rondam o romance urbano de Balzac, tal que nos conduz num emaranhado de coisas, em que a análise das personagens é de tal riqueza descritiva que as revela em suas singularidades.  E Balzac faz tal revelação de mistérios com uma verve sociológica, psicológica e por fim com um lirismo que o coloca no clímax dos grandes autores.

CHARLES DICKENS, “OUR MUTUAL FRIEND”

Dickens tem aberturas de romances marcantes, e isso ganha grande relevo no seu primeiro capítulo de Our mutual friend, que é o penúltimo romance que ele escreveu, e último que concluiu. Aqui temos o barco do pescador de cadáveres, e no segundo capítulo há uma mudança brusca, pois já estamos no contexto de uma comédia de costumes e de caracteres, e eclode o mistério de um homem afogado que iria herdar uma fortuna e que recompõe a tensão do romance.  
E Calvino nos esclarece: “A grande herança é a do falecido rei do lixo, um velho avarento que deixou na periferia de Londres uma casa ao lado de um terreno cheio de grandes monturos de lixo.” E o herdeiro é seu ex-burro de carga, Boffin, que é uma das grandes personagens cômicas de Dickens, e que é um simplório de uma ignorância infinita, e que de súbito está rico, e passa a querer a adquirir cultura, mas sem base nenhuma para tal, no que é ensinado por Silas Wegg, um vagabundo com perna de madeira que ele contrata, e então o analfabeto Boffin junta oito volumes do Declínio e queda do Império Romano de Gibbon e depois vai atrás da vida de avarentos famosos na ânsia de não perder a sua fortuna.
Em meio ao ambiente de lixo, em que circulam figuras de caráter de clown ou ainda que atuam como espectros, temos que Dickens antecipa de certo modo o que virá a lume na obra de Samuel Beckett, sobretudo quando se trata da verve de humor negro que já vemos em Dickens. No autor Dickens temos o contraste entre luz e sombra, em que se confrontam a escuridão e a virtude, e também na qual esta virtude está imersa numa situação trevosa. Mas temos que tal virtude em Dickens para nós, modernos, nos parece um tanto postiça.  
Temos que, na análise do romance em Dickens, o domínio da mentalidade vitoriana ganha fidelidade e também um fundo que cria toda uma mitologia. Uma vez conhecido bem o típico Dickens modernamente considerado, que é o do humor negro de personagens calcados na maldade e também como caricaturas grotescas, não nos tira isto a apreciação analítica e necessária de suas personagens inundadas de angelitude e que podem atuar como grandes consoladores, pois são estas presenças da virtude que dão sentido ao bem e ao mal no romance de Dickens, no equilíbrio que fazem no jogo com o lado escuro.  
Em Our mutual friend temos também a trama urbana e de comédia de costumes e que, por outro lado, guarda espaço também para personagens complexos e trágicos, tal como vemos na figura de Bradley Headstone, que nas palavras de Calvino “ex-proletário que uma vez tendo se tornado professor se deixa dominar por uma ânsia de ascensão social e de prestígio que se transforma numa espécie de possessão diabólica.”  
Para nós, Our mutual friend se configura como uma das obras-primas de Dickens e da literatura mundial, tanto no seu quesito criativo, como também pelo fato de se encontrar como exercício de escrita no topo do conceito literário. E temos neste romance a riqueza descritiva dos grandes cenários urbanos com grandeza e profundidade que podem figurar em qualquer antologia de paisagem urbana. E a obra de Dickens, Our mutual friend, também ganha seu caráter de grande obra por conter nela o cenário complexo de um quadro social em que aparecem as classes em conflito.  

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/34644/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicosij5

           

    

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