A CIDADE-ROMANCE EM
BALZAC
Balzac, na visão de Ítalo Calvino, foi um romancista que
realizou a operação literária de transformar a própria cidade em romance, pois
o escritor tinha a capacidade e a intenção de colocar os bairros e as ruas como
verdadeiros personagens dotadas de caráter e diversos entre si, e que, para
Calvino, Balzac era capaz de “evocar figuras humanas e situações como uma
vegetação espontânea que germina do calçamento desta ou daquela rua ou como
elementos de tão dramático contraste com elas a ponto de provocar cataclismos
em cadeia;”, e que aqui é feito no momento em que Balzac começa a escrever
Ferragus, e que o escritor então faz com que a sua obra literária tenha como
protagonista a cidade viva, Paris em sua faculdade monstruosa, como algo
praticamente biológico.
E um fato curioso é que Balzac tem em mente, inicialmente,
fazer um ciclo romanesco que juntasse a ideia de sociedades secretas com a de
indivíduos à margem da sociedade que tivessem uma espécie de faculdade
onipotente, no que Balzac tinha a ideia de retratar o domínio que era efetivado
por personagens numa rede que se colocava invisível no contexto que era comum
às sociedades secretas. Só que tal plano muda de figura, e Balzac será, na
verdade, o inventor dos mitos que serão a forma própria da narrativa culta e
popular que lhe deverão o mérito por mais de um século.
Um desses mitos fundamentais do romance em Balzac e que dará
norte em parte das narrativas na literatura mundial subsequente é o do Super-Homem
que é prejudicado pela sociedade que o cerca e que retorna como um vingador
implacável, e que, com as feições proteiformes de Vautrin, a qual terá presença
nos tomos da Comédia humana, terá eco, como nos diz Calvino “em todos os
Montecristos, os Fantasmas da Ópera e talvez os Chefões que os romancistas de
sucesso hão de colocar em circulação.”
Em Ferragus ainda estamos sob influência do romantismo
byroniano, num enredo bem urdido que mantém o mistério e o suspense em doses
precisas, e isso entre cenas com golpes inesperados. O personagem Ferragus que
dá nome ao romance é um nome que tem em si este caráter de batalha, um ser
tenebroso com tal nome ariostesco, que tem papel central, e que é descrito por
Balzac em seu declínio.
Balzac tinha como fundo principal do cenário de seus romances
o poema topográfico de Paris, e coloca de forma inovadora a cidade como a
própria linguagem dos romances, e que tem ainda caráter de ideologia, ou ainda
como fonte que condiciona cada pensamento, palavra e gesto. E sua obra pode se
constituir como uma espécie de enciclopédia parisiense, e que tem dentro deste
pacote o registro fidedigno da fala de várias categorias sociais e de
personagens, com conhecimento do autor das afetações e neologismos da moda e
mesmo a entoação das vozes, e também em situações normais da declamação
habitual do cotidiano comum.
Balzac com A História dos Treze realiza o que podemos chamar
de atlas do continente Paris, e o escritor concluiu Ferragus, e nesse momento
escreve mais dois episódios para completar o tríptico que se configuram como
romances diversos entre si e do próprio Ferragus. Aqui nesses dois novos
episódios Balzac coloca um ponto comum, pois em ambas as estórias temos
protagonistas numa aura misteriosa, mas que tem como outro ponto mais relevante
a digressão de amplitude que cobre várias outras vozes do escopo que virá a ser
denominado por Calvino como a “enciclopédia parisiense” de Balzac: em La
duchesse de Longeais, que se trata de um romance de natureza passional que
ganha a verve de um transbordamento autobiográfico, e que no segundo capítulo
que se constitui como um texto que vai influenciar a cultura francesa que culmina em fenômenos
como Sade e tudo o que veio após este, com uma apresentação antropológica das
classes sociais parisienses.
Balzac não fica, no entanto, nesta base de digressões, pois
investe também na sua escritura na experiência psicológica intimista, e isso
sobretudo na relação conjugal, que é uma das colunas do autor. Aqui em Balzac
temos uma dupla função dentro de seu romance que se dá entre o meio psicológico
e a aventura, e tais duas frentes são a função romanesca completa da inspiração
balzaquiana.
A densidade romanesca em Balzac ainda tem rostos particulares
na escritura que se configura como mitologia da metrópole, pois ainda não foi
alcançada a multidão anônima que veremos em Baudelaire, por exemplo, já que em
Balzac temos a psicologia individual ainda em relevo. E os mistérios ainda
rondam o romance urbano de Balzac, tal que nos conduz num emaranhado de coisas,
em que a análise das personagens é de tal riqueza descritiva que as revela em
suas singularidades. E Balzac faz tal
revelação de mistérios com uma verve sociológica, psicológica e por fim com um
lirismo que o coloca no clímax dos grandes autores.
CHARLES DICKENS, “OUR
MUTUAL FRIEND”
Dickens tem aberturas de romances marcantes, e isso ganha
grande relevo no seu primeiro capítulo de Our mutual friend, que é o penúltimo romance
que ele escreveu, e último que concluiu. Aqui temos o barco do pescador de
cadáveres, e no segundo capítulo há uma mudança brusca, pois já estamos no
contexto de uma comédia de costumes e de caracteres, e eclode o mistério de um
homem afogado que iria herdar uma fortuna e que recompõe a tensão do romance.
E Calvino nos esclarece: “A grande herança é a do falecido
rei do lixo, um velho avarento que deixou na periferia de Londres uma casa ao
lado de um terreno cheio de grandes monturos de lixo.” E o herdeiro é seu
ex-burro de carga, Boffin, que é uma das grandes personagens cômicas de
Dickens, e que é um simplório de uma ignorância infinita, e que de súbito está
rico, e passa a querer a adquirir cultura, mas sem base nenhuma para tal, no
que é ensinado por Silas Wegg, um vagabundo com perna de madeira que ele
contrata, e então o analfabeto Boffin junta oito volumes do Declínio e queda do
Império Romano de Gibbon e depois vai atrás da vida de avarentos famosos na
ânsia de não perder a sua fortuna.
Em meio ao ambiente de lixo, em que circulam figuras de
caráter de clown ou ainda que atuam como espectros, temos que Dickens antecipa
de certo modo o que virá a lume na obra de Samuel Beckett, sobretudo quando se
trata da verve de humor negro que já vemos em Dickens. No autor Dickens temos o
contraste entre luz e sombra, em que se confrontam a escuridão e a virtude, e
também na qual esta virtude está imersa numa situação trevosa. Mas temos que
tal virtude em Dickens para nós, modernos, nos parece um tanto postiça.
Temos que, na análise do romance em Dickens, o domínio da
mentalidade vitoriana ganha fidelidade e também um fundo que cria toda uma
mitologia. Uma vez conhecido bem o típico Dickens modernamente considerado, que
é o do humor negro de personagens calcados na maldade e também como caricaturas
grotescas, não nos tira isto a apreciação analítica e necessária de suas personagens
inundadas de angelitude e que podem atuar como grandes consoladores, pois são
estas presenças da virtude que dão sentido ao bem e ao mal no romance de
Dickens, no equilíbrio que fazem no jogo com o lado escuro.
Em Our mutual friend temos também a trama urbana e de comédia
de costumes e que, por outro lado, guarda espaço também para personagens complexos
e trágicos, tal como vemos na figura de Bradley Headstone, que nas palavras de
Calvino “ex-proletário que uma vez tendo se tornado professor se deixa dominar
por uma ânsia de ascensão social e de prestígio que se transforma numa espécie
de possessão diabólica.”
Para nós, Our mutual friend se configura como uma das
obras-primas de Dickens e da literatura mundial, tanto no seu quesito criativo,
como também pelo fato de se encontrar como exercício de escrita no topo do
conceito literário. E temos neste romance a riqueza descritiva dos grandes
cenários urbanos com grandeza e profundidade que podem figurar em qualquer
antologia de paisagem urbana. E a obra de Dickens, Our mutual friend, também
ganha seu caráter de grande obra por conter nela o cenário complexo de um
quadro social em que aparecem as classes em conflito.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/34644/17/italo-calvino-por-que-ler-os-classicosij5
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