“Gorki tinha conhecimento carnal do êxodo e da exclusão”
O AUTOR E A ESTREIA DE
PEQUENOS BURGUESES
Máximo Gorki é o pseudônimo de Aleksiéi Maksímovitch Pieshkóv,
que foi um escritor, romancista, dramaturgo, contista e ativista político
russo. Nascido em Nijni Nóvgorod, em 28 de março de 1868, morreu em Moscou no
dia 18 de junho de 1936. Gorki seguiu a corrente naturalista na sua forma de
escrita, e era a ponte mais importante na literatura e no teatro russo entre as
fontes de Tchekhov e Tolstói, e a nova geração de escritores soviéticos.
Um fato curioso se deu em Moscou, no ano de 1902, quando, diante
do Teatro Artístico de Moscou, uma multidão se juntou sob a vigília dos guardas
do czar, estes que estavam fortemente armados. Não se sabia ainda se a peça
emblemática da obra teatral de Máximo Gorki, Pequenos Burgueses, poderia de
fato ter a sua estreia. Embora o texto da peça, que fora editado alguns meses
antes, tenha sido muito bem recebido pelo público, tendo como resultado a venda
de 60.000 exemplares, o que representava um sucesso extraordinário para a
época. Só que, contudo, a censura czarista realizou inúmeros cortes na obra, o
que não agradou grande parte dos leitores da peça.
Pelo fato de, em 1901, Máximo Gorki ter sido preso pela
terceira vez, só conseguindo a libertação pela intervenção de Tolstói, e eleito
membro honorário da Academia de Ciências, mas tendo sua posse impedida pelo
czar, o que teve como resultado um protesto com a demissão de dois membros da
Academia, Tchekhov e Korolenko, a presença em massa dos espectadores na estreia
da peça era motivada para além do interesse cultural ou do conteúdo da peça, pois
representava nada mais que uma ação conjunta de promover um desagravo ao autor.
A representação de Pequenos Burgueses foi, portanto, um
enorme sucesso, e com esta peça se teve o início da linha político-social do
teatro russo e soviético, uma nova orientação que ganharia, também pelas mãos
de Máximo Gorki, ares panfletários e de combate ideológico.
MÁXIMO GORKI E A LUTA
SOCIAL
Máximo Gorki, quando se utilizava da prosa literária, ele se
servia do recurso naturalista, e neste exercício demonstrava os contrastes e os
antagonismos sociais, os deixava em evidência, e daí partia para a crítica
social e a fundamentação política de uma transformação social. No teatro, por
sua vez, Máximo Gorki o usava também como forma de luta, e aqui a obra do autor
ganha seu caráter panfletário e ideológico, toda a crítica ganhava agora uma
forma que no teatro era a ação direta de personagens e o retrato de situações
de conflito, muitas vezes tendo na exuberância do discurso um possível desvio
de foco da ação, mas que trazia à baila toda a luta social transformadora, que
também era discurso ideológico, panfleto político.
E mesmo asfixiada, a literatura russa se tornava, cada vez
mais, na grande tribuna política que visava combater a repressão czarista.
Gorki tornara-se, assim, o defensor dos bessiaki, um grupo social nômade que
ele tinha conhecido bem, e que era um grupo marginalizado pela Revolução
Industrial; e que formava a multidão que abandonava o campo, à procura de
empregos nas indústrias das cidades; e que se tornava a massa de desempregados,
o excesso de mão-de-obra que fugia dos cortiços, das condições subumanas, e que
errava pelo país à procura de um lugar.
No contraste entre autores russos, podemos exemplificar que,
à metafísica da dor – que na obra de Dostoiévski (1821-1881) atingiria suas
últimas consequências – e à caridade do agnóstico-cristão-socialista León
Tolstói (1828-1910), Gorki conseguiu opor uma alegria de viver, e que veio a
substituir a exaltação do sofrimento por uma raiva instintiva e uma violência justificada
ideologicamente, a luta social agora não era o sofrimento metafísico, mas o
conflito desperto por situações-limite de injustiças e sobrevivência no meio
social, um viés que era, ao fim, de conteúdo político e forma panfletária, e a
luta social, já longe do sofrimento dos indivíduos, ganhava a dimensão também
coletiva da visão social na sua totalidade.
Máximo Gorki sente-se, por fim, irmanado com essa multidão de
“ex-homens”, como os chamaria em Ralé (1902), e com os operários. A visão do
autor sobre o proletariado era, contudo, possuidora de uma tendência à
romantização, e que com uma defesa apaixonada de suas virtudes, ganhava no
texto literário e teatral de Gorki um arrebatamento e exaltação que tinha um
caráter grandiloquente, pois, ao estar vociferando contra os burgueses, por
exemplo, o texto de Gorki era prejudicado em sua fluência narrativa, e a luta
para ver os burgueses vencidos e acabados, submersos na hipocrisia de uma vida
medíocre e mesquinha, era no discurso uma fala de estado exaltado própria da
pregação política e panfletária, o texto se tornava, ao fim, hiperbólico numa
parte da obra de Gorki.
Essa tendência ao manifesto panfletário tornou-se mais
evidente em sua obra teatral, e Gorki se esforçou por atingir maior
autodomínio, posteriormente, passando a considerar detestáveis algumas de suas
peças, como Os Filhos do Sol (1905) e Os Veranistas (1905), nas quais o
discurso interfere no fluir espontâneo da ação. Ou seja, Gorki tomou
consciência teatral do comedimento discursivo e não mais foi autor de uma luta
social que virava estridência e barulho no texto teatral, mantendo a ideologia
política, mas deixando o caráter hiperbólico de panfleto para trás.
BIOGRAFIA DE MÁXIMO
GORKI
Filho de artesãos, nascido num meio social muito pobre,
Aleksiéi, órfão de pai, foi criado pelo avô materno, um tintureiro. Com a morte
da mãe, em 1878, o menino teve de deixar a casa do avô, para ganhar a vida.
Inicia assim uma peregrinação pelas mais diversas ocupações: sapateiro,
desenhista, lavador de pratos num navio que percorre o Volga. Nesta última
atividade, Aleksiéi dá seu primeiro passo em direção à consciência política e à
literatura. O cozinheiro do navio empresta-lhe alguns livros e desperta nele o
interesse pelos problemas políticos. Aleksiéi começa a sentir que seus
horizontes se alargam e, a partir de então, nunca mais se separa dos livros.
Por volta de 1884, apaixonado pela cultura, muda-se para
Kazan, onde imagina poder cursar gratuitamente a Universidade. Mas isso é um
privilégio de poucos, dos que têm dinheiro para pagar. E Aleksiéi não pertence
a esse círculo de eleitos. Acossado pelas dificuldades econômicas, emprega-se
como vigia num teatro. Desiludido com sua vida de privações, torna-se pescador
no mar Cáspio e vendedor de frutas em Astrakan. Vai para Odessa com uma turma
de marginais nômades que erra de cidade em cidade, à procura de emprego.
Trabalha como estivador, auxiliar de escritório, jardineiro, cantor de coro,
padeiro. Percorre o Cáucaso, a Crimeia, a Ucrânia. Sofre a miséria, o frio, a
fome, a revolta: este é seu curso universitário, batizado mais tarde por ele
como Minhas Universidades.
Aos 19 anos, quando estava em Kazan, Gorki tenta o suicídio.
Sobrevive à bala que lhe penetra um dos pulmões, mas contrai uma tuberculose
que o acompanhará para sempre. A propósito desse gesto, Gorki escreve: “A culpa
de minha morte deve ser atribuída ao poeta alemão Heinrich Heine; inventou o
coração que tem dor de dentes. Junto a este bilhete meus documentos de
identidade, que tirei expressamente para essa ocasião. Quanto aos meus restos
mortais, peço que o submetam a autópsia, a fim de descobrirem de que diabo
estava eu possesso nestes últimos tempos”. Dessa experiência, resulta o
material utilizado em Um incidente na Vida de Makar (1892) e Como Aprendi a
Escrever (1912).
De volta à vida, Aleksiéi começa seu engajamento na luta
política, o que o leva, já na Geórgia, a entrar em contato com algumas
organizações, quando lê Marx e segue os passos de Lênin (1870-1924). Em 1890,
Gorki é preso em sua cidade natal, sob a suspeita de exercer atividades
subversivas. O relatório policial descreve-o como “um homem extremamente
suspeito; leu muito, maneja bem a pena; atravessou quase toda a Rússia (na
maior parte do tempo a pé); esteve mais de um ano em Tífilis, sem ocupação
certa, e saiu de lá sem saber para onde ir”. Posto em liberdade, Aleksiéi passa
dois anos vagando pelas estepes, e faz parte do êxodo para o sul; quando caminha
milhares de quilômetros com a massa de indigentes, vítimas da fome de 1891-92. E ainda em 1892, publica seu primeiro conto,
Makar Tchudra, na revista Kavkas, usando pela primeira vez o pseudônimo de
Máximo Gorki (Máximo, o Amargo). É saudado com entusiasmo por Romain Rolland
(1866-1944), que vê nele “o homem que, como Dante, voltou do Inferno, mas não
sozinho, trazendo consigo seus companheiros de tormento e seus camaradas de
salvação”.
Makar Tchudra desperta a atenção dos intelectuais russos por
seu estilo vigoroso, e Vladimir Korolenko (1853-1921), que havia acabado de
cumprir uma pena na Sibéria, interessou-se imediatamente pelo jovem autor. É
por Korolenko que Gorki consegue um emprego num jornal de Samara, o Samarskaia
Gazieta, no qual Gorki se projeta rapidamente como jornalista e escritor. E, em
1898, aparecem suas primeiras coletâneas, os pequenos temas de Ensaios e
Narrativas, os quais alcançam grande êxito e deixa Gorki na posição de um dos
melhores escritores da época. Um ano depois, Gorki publica dois romances: Romá
Gordiéiev e Os Três. O primeiro é a história de um indivíduo exuberante, cuja
vitalidade é tolhida pelo ambiente mesquinho de uma cidade provinciana; e o
segundo é uma reelaboração de Crime e Castigo, de Dostoiévski.
MÁXIMO GORKI COMO AUTOR
DE TEATRO
Em 1901, depois de se livrar da prisão, à qual havia sido recolhido
por participar de um movimento estudantil em Kazan, Gorki começa, enfim, a
escrever para o teatro. Numa carta a Anton Tchekhov (1860-1904), diz ele:
“Escreverei um ciclo de dramas, esteja certo. Um sobre os ‘inteligentes’. Um
grupo de pessoas sem ideais (...). Um outro com um operário proletário citadino
semi-‘inteligente’. Absolutamente aceitável pela censura (...). Um terceiro
sobre o campo (...). Um outro ainda: os sem teto, um tártaro, um judeu, um
ator, a dona de um albergue noturno, um policial, prostitutas (...). Será
terrível? escuto as vozes, as falas. Os motivos são claros, tudo é claro
(...)”.
E, mesmo com o sucesso de Pequenos Burgueses, a censura czarista
proíbe que a peça seja montada em teatros populares ou traduzida para línguas
de outros povos do Império. Mas o autor não se deixa intimidar e escreve outra
peça. A 19 de julho desse mesmo ano, Gorki recebe uma carta de Tchekhov: “Li
sua peça Ralé. É nova e, sem dúvida, excelente. O segundo ato é muito bom: é o
melhor e mais forte, e, quando eu lia, especialmente o final, quase dancei de
alegria. O tema é escuro e opressivo; talvez a plateia, não acostumada com
essas coisas, saia do teatro e você tenha que dar adeus à sua reputação de
otimista”. Porém, a plateia não abandonou o teatro, porque mesmo que a visão de
Gorki seja amarga, ela está carregada também de otimismo, até mesmo quando
trata de “criaturas que uma vez já foram homens”, como em Ralé. Pois Gorki, com
esta peça, cumpre a promessa feita a Tchekhov de escrever uma peça sobre os
“sem teto”.
Gorki participou ativamente da encenação de Ralé, levada a
cabo pelo grupo do Teatro Artístico de Moscou, sob a direção de Stanislavski
(1863-1938). Por sugestão do autor, os atores visitaram o mercado de Khitrov,
para conhecer mais intimamente as personagens que iriam encarnar. Gorki sugeriu
que se contratasse uma prostituta para auxiliar Olga Knipper, mulher de
Tchekhov, a compor a personagem de Nastia. O papel do ator Sátin foi
interpretado pelo próprio Stanislavski.
AS LUTAS DE MÁXIMO GORKI
E NOVAS OBRAS
E, em 1905, Gorki é detido por subversão e encarcerado na
prisão de São Pedro e São Paulo, em São Petersburgo, de onde sai pouco tempo
depois, graças à interferência de outros intelectuais. Organiza o jornal Nóvaia
Jizni (Vida Nova), mas é obrigado a abandonar a Rússia logo após o malogro da
rebelião operária de dezembro.
Vai para os Estados Unidos, onde sua permanência é
dificultada pelo embaixador russo. Gorki tenta levantar fundos para a revolução
soviética, mas Randolph Hearst, dono de uma grande cadeia de jornais,
dificulta-lhe os passos, acusando-o de imoralidade pública, pelo fato de Gorki
ter se casado pela terceira vez. O escritor refugia-se com sua mulher, Maria
Budberg, em Staten Island, onde escreve o romance Mãe (1907), e uma peça de
teatro, Os Inimigos (1906).
Pouco tempo antes, em Filhos do Sol, ele fez a denúncia da
facção da intelectualidade russa que não se alinhava na luta revolucionária. E
em Os Inimigos, Gorki aborda o problema da relação entre patrões e empregados. O
romance Mãe, por sua vez, é considerado um de seus trabalhos mais importantes, e
também é tido como a primeira obra do realismo socialista. Está impregnado de
humanismo, como toda a obra de Gorki.
Na sua obra e na sua vida, Gorki não sente a menor compaixão
pelo mundo dos pequenos burgueses, a qual o autor vê como uma multidão cinza e
entediada. “Alguns deles”, considera o escritor, “tecem vagos sonhos sobre a
beleza da vida há duzentos anos atrás, mas ninguém se coloca a simples
pergunta: o que a tornará bela se nos limitarmos apenas a sonhar?”. E em fins
de 1906, Gorki fixa residência em Capri, onde funda uma escola para imigrantes
revolucionários, que funciona até 1914. Durante o exílio, escreve Os Bárbaros
(1906), Os últimos (1908), Gente Esquisita (1910), Vassa Aheleznova (1911), Os
Kykov (1912) e a trilogia autobiográfica: Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas
Universidades (1912-13).
Com o início da Grande Guerra, em 1914, Gorki retorna à
Rússia. Dirige um jornal mensal, Liétopis (Crônica) e se alinha com Lênin e os
bolcheviques, ajudando a preparar a revolução. Quando esta triunfa, em 1917,
Gorki é considerado herói. Ressuscita o diário Nóvaia Jizni e escreve um ensaio
sobre Tolstói (1919). Em 1921 adoece gravemente dos pulmões e vai para a
Itália, permanecendo em Sorrento durante vários anos. Ali escreve Recordações
sobre Lênin (1924). Os Artamonov (1925) e começa uma grande epopeia, A Vida de
Klim Samgin (1927-36).
Em 1933, Gorki decidiu estabelecer-se na União Soviética,
apesar de sua saúde precária. Escreve então Yegor Bolychov, retratando o fim da
classe média por meio da história de um comerciante. Em 1935 concluiu Dostygayev
e ainda estava escrevendo A Vida de Klim Samgin, quando morreu de pneumonia, em
18 de junho de 1936. Foi sepultado com todas as honras oficiais e seu féretro
acompanhado por Stálin e Molotov.
O SENTIDO DA OBRA DE
MÁXIMO GORKI
A obra teatral e literária de Máximo Gorki é relacionada ao
naturalismo na expressão e forma de narrativa, possui uma força e um caráter
espontâneo e original, sendo um trabalho com identidade legítima, obra em que
podemos encontrar a transformação da realidade, sobretudo a social, e a luta,
também social, a ideologia política, e o combate ao czarismo. E o que a vida e
a obra de Górki demonstram não é a visão negativa do perigo revolucionário e
violento, mas uma verdadeira saga pela transformação do mundo, e que no
contexto russo e soviético era figurada pela revolução de 1917.
A obra de Gorki, portanto, tem como cenário o submundo russo,
lugar social no qual o autor registra com vigor e emoção os personagens que
integravam as classes excluídas: operários, vagabundos, prostitutas, gente
humilde, homens e mulheres do povo, e como na Ralé, os ex-homens. E o fato é
que já havia autores realistas e naturalistas que já tinham retratado tais
grupos sociais na literatura, mas ainda era um olhar e uma narrativa formadas
por fora, ou ao redor da vida dos pobres, o que com Gorki não irá ocorrer, pois
o autor conhecia aquele universo por dentro, a sua biografia era a de um
verdadeiro desvalido, Gorki tinha conhecimento carnal do êxodo e da exclusão,
não era um literato, compassivo esteticamente pela pobreza, era ele mesmo um
homem que veio dos bas-fonds e que se torna um autor, portanto, com vivência do
que escreve, conseguindo, então, alcançar o que havia de mais profundo na alma
do povo russo. Daí o caráter autêntico que ganhou a obra de Máximo Gorki, como o
criador da chamada literatura proletária, e que ganhou adeptos no mundo inteiro
em sua época.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/30949/17/maximo-gorki-sua-vida-e-sua-obra-literaria-e-teatral
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