“Keats acreditava na equivalência de beleza e verdade”
O GRANDE ANO
1819 é o ano mais importante da produção literária e poética
de Keats, pois é neste ano que aparecem suas maiores obras, exatamente as que
na sua posteridade o colocaram no panteão dos grandes poetas ingleses da
História. Este período de Keats ganha sua expressão madura, e o poeta está
pleno do domínio de sua pena.
Em janeiro escreveu “A véspera de santa Inês”, poemeto que se
fez como se fosse uma iluminura, com uma atmosfera de cores que vão ao encontro
de uma herança medievalesca. Em março escreveu o soneto “Por que esta noite eu
ri?”, fez o soneto “Um sonho”, no mês de abril, compôs “La Belle Dame sans
Merci”, os sonetos “Sobre a glória” e “Ao sono”, assim como a “Ode a Psiquê”.
Em maio continuou a série das odes, conjetura Robert Gittings que se deram na
seguinte ordem: “Ode sobre a indolência” (dia 3), “Ode sobre a melancolia”,
“Ode a um rouxinol” e “Ode sobre uma urna grega”. Entre julho e setembro esteve
na ilha de Wright, onde terminou a primeira parte de “Lamia”, poema inspirado
em Burton, que seguira Filóstrato, e começou a escrever, de parceria com Brown
e visando a um possível lucro no teatro, a tragédia de “Oto, o Grande”, e em setembro
completou “Lamia”. Ainda escreveu a ode “Ao outono”, com a qual encerrou a
série das grandes odes. Leu A divina comédia, de Dante. E ao fim escreveu o
soneto “Partiu o dia”.
A DOENÇA
Em dezembro, sua saúde se abalou, e em 3 de fevereiro de 1820
teve uma hemoptise. Vendo o sangue arterial, percebeu, com seus conhecimentos
médicos, que havia recebido sentença de morte. Em 1° de julho, saiu publicado o
seu grande livro Lamia, Isabella, The Eve of St.Agnes and Other Poems, inclusive
“Hiperíon” e as odes, favoravelmente recebidos pela crítica. Entretanto, sua
doença progrediu rapidamente e logo Keats ficou em estado desesperador. Faleceu
em 23 de fevereiro de 1821, às 11 horas da noite, e está sepultado no cemitério
protestante de Roma, perto da pirâmide de Caius Cestius, afirma-se que num
lindo lugar. Próximos dele iriam jazer no ano seguinte os restos de Shelley,
que ao ser retirado do mar onde morrera afogado trazia num dos bolsos o livro
de Keats.
A CARREIRA
Embora Keats lesse poetas estrangeiros como Dante, Ronsard ou
Ariosto, ele se inspirou mais em seus autores compatriotas ingleses, podendo
citar aí a constante influência de Shakespeare, além de Spenser e Milton. Sendo
Spenser o ponto inicial de sua aventura poética, e o passo seguinte com Milton
seria na confecção de Keats de seu “Hiperíon”, poema em versos brancos, com um tom
solene e grave, que narra a queda dos Titãs e a ascensão dos deuses olímpicos. Shelley
e Byron, por sua vez, tomavam o Hiperíon como a grande obra de Keats, não tendo
considerado especialmente as odes, que seriam a grande notoriedade do poeta
Keats histórico.
A carreira de Keats teve uma dupla frente: a primeira vai do
Endimião aos dois poemas sobre Hiperíon; e a segunda dos sonetos às odes. “Lamia”,
por sua vez, tem influência de Dryden na versificação e “A véspera de santa
Inês” segue a tradição spenseriana, que teve fonte horaciana. E as grandes odes
são, na ordem de composição imaginada por Gittings, a “Ode a Psiquê”, a “Ode
sobre a indolência”, a “Ode sobre a melancolia”, a “Ode a um rouxinol”, a “Ode
sobre uma urna grega” e a ode “Ao outono” – todas de 1819.
Os críticos se dividem no que diz respeito à preferência de
cada um quanto a essas odes: Robert Bridges prefere “Ao outono”, T.S.Eliot a
“Ode a Psiquê”, Allen Tate a “Ode a um rouxinol”. A “Ode sobre uma urna grega”,
que tem grande importância e destaque na literatura inglesa, fonte de
controvérsias, como todo texto vivo é, pode funcionar como uma espécie de
Hamlet em miniatura. E isso devido ao dístico da coda, que é, em todos os
tempos, a maior controvérsia da obra de Keats que, segundo meu ponto de vista,
é uma polêmica mais exaltada do que funcional: “A beleza é a verdade, a verdade
é a beleza/- é tudo/O que sabeis na terra, e tudo o que deveis saber.”
Há vários modos de interpretar os versos. Já se disse, por
exemplo, que podem ter fundamento platônico – “o belo é o esplendor do
verdadeiro” – ou aristotélico. Se o estagirita afirmou que a arte é a imitação
da natureza, a arte é verdadeira, enquanto imitação do real; e também bela,
enquanto a natureza for bela. Por sua vez, Keats acreditava na equivalência de
beleza e verdade, verdade significando “realidade”, como já assinalava Garrod e
salienta Bowra. Numa carta a Bailey, de novembro de 1817, gizava ele: “O que a
Imaginação apreende como Beleza deve ser Verdade, preexistente ou não. (...) A
Imaginação pode ser comparada ao sonho de Adão: este acordou e viu que era
verdade”. A Taylor, em janeiro de 1818, escrevia que ao elaborar o Endimião
dera “passos regulares da imaginação em busca de uma verdade”. Em carta a
George e Georgiana, de fins de 1818, frisava: “Nunca tenho certeza de verdade
alguma, a não ser percebendo claramente sua beleza”. Mesmo depois, em carta à
noiva, incerto sobre o futuro de sua obra, asseveraria que “amara o princípio
da beleza em todas as coisas”.
POEMAS:
ODE A PSIQUÊ : O poema, uma versão em versos do mito
de psique, relata seu périplo, esta que humana se torna deusa nas mãos
apaixonadas de Eros (Cupido), poema que abre assim: “Escuta, ó deusa, os versos
que, sem melodia,/Doce coerção e grata relembrança me tiraram;” (...) “Hoje
sonhei por certo; ou contemplei/Psiquê, a de asas, com olhos acordados?” (...)
“Numa floresta eu caminhava descuidoso,/Mas de repente, e desmaiando de
surpresa,/Vi duas belas criaturas respirando lado a lado/Na relva mais profunda”.
O poema tem seu estro na estória entre o ser alado Eros (Cupido) e a migração
da alma, que de lagarta, se torna a imagem clássica da borboleta como imagem da
jornada espiritual, e que no poema, livre ou aquém das interpretações
psicanalíticas, em poesia se dá em forma narrada e versificada, uma vez que
aqui é o poema e não a psicologia: “Reconheci o alado jovem; mas quem eras,/Ó
afortunada, afortunada rola?/Sua fiel Psiquê!” (...) “Mais bela, embora não
possuas templo/Nem altar de flores cumulado;”. Keats percebe que Psiquê é uma
deusa tardia no panteão olímpico da tradição mitológica grega, e então o poeta
se vê na missão e destino de erigi-la ao cume, no que se manifesta, com o poema
pleno na pena: “Ó a mais brilhante! Embora muito tarde para antigos/votos,/E
muito, muito tarde para a lira apaixonada e crédula,” (...) “Assim, seja eu teu
coro, e erga um lamento/Nas horas em que a noite vai em meio;” (...) “Sim, eu
serei teu sacerdote, e erigirei um templo”. Assim Keats faz a justiça poética
com o templo imaginado para Psiquê, donde o estro responde com ardor ao mito
nunca reconhecido da Antiguidade, que veio a dar cara tardiamente com O asno de
ouro de Apuleio: “E para ti lá estará todo o prazer suave/Que pode obter o
pensamento umbroso,/Um claro archote, e uma janela aberta à noite/Para que
tenha entrada o ardente Amor!”. A coda celebra então o amor consumado, da relva
ao panteão, Psiquê está salva, e agora tem o deleite dos deuses.
AO OUTONO : O poema outonal, como um floreio da
pena de Keats, não deverá nada à primavera, como se vê na abertura: “Quadra das
névoas, do fecundo j`maduro,/Amiga íntima do sol” (...) “Quem não te viu amiúde
em meio a tuas posses?/Às vezes quem sai buscando pode achar-te/Sentada,
descuidosa, em chão de algum celeiro,”. O outono aqui aparece como ente
feminino, de muitas posses, quadra das névoas, sua cor madura é de transição,
mas é passagem de deleite, e Keats bem a vê: “Como respingadora atravessando o
riacho/Manténs a fronte erguida ao peso de seu fardo;” (...) “Onde as canções
da primavera? Onde é que estão?/Não penses nelas, também tens a tua música.”. E
a canção, a ode, se fecha feliz, consciente do outono poético que tem tanta
música quanto a primavera.
SOBRE O GAFANHOTO E O
GRILO : O poema,
fruto de uma competição poética, tem resultado satisfatório, se realiza bem, e
seu intento tem alcance e clímax, e abre já como o jardim em que o gafanhoto
vai se esbaldar: “A poesia da terra nunca, nunca morre:/Quando o vigor do sol
languesce a passarada/E se abriga nas ramas, um zizio corre/De sebe em sebe, em
torno à várzea já ceifada;/É o gafanhoto, que a assumir o mando acorre”. O
gafanhoto ganha ares livres, zizio libertário, fonte que corre, de sebe em
sebe, e quem manda no poema, não diga, é o gafanhoto, como bem vês: “A poesia
da terra nunca se termina:/Do inverno em noite só, quando com a geada cresce/O
silêncio, do fogão se ergue de repente/O zinido do grilo, sempre mais ardente,/E
para alguém zonzo de sono ele parece/O gafanhoto em meio à relva da colina.”. A
coda eleva o inseto ao cume de uma poesia aparentemente despretensiosa, e com
graça e leveza no resultado. Keats faz do gafanhoto um poema bem urdido.
ODE SOBRE A MELANCOLIA
: A ode se abre com
preocupação, há um tipo de ameaça no ar, e que é a fronteira do Lete, rio do
esquecimento, que vai para o Hades (Tártaro) e que tem na melancolia o
sentimento predominante, um sentimento que pode ser artístico, mas repleto de
veneno e perigo, então vai o poema, sem mais, ao alerta: “Não, não, não vás ao
Lete”. E segue com estro, em sentimento terrível, que logo se abrirá para um
tipo de esperança: “nem sofras que te beije a fronte pálida/A beladona, a rubra
uva de Prosérpina;” (...) “Nem falena-da-morte nem escaravelho sejam/Tua Psiquê
lutuosa, nem partilhe o mocho penugento/Dos mistérios da tua nostalgia;/pois
sonolenta a sombra à sombra chegará,/Afogando a aflição desperta de tua alma.”.
Paixão ou afecção de destruição iminente, mas seu acesso ou surto tem uma cura
sutil: “Mas quando o acesso da melancolia/De súbito cair do céu, como se fosse
a nuvem lacrimosa/Que alenta as flores todas de inclinada fronte” (...) “Sacia
então tua tristeza em rosa matinal,/Ou no arco-íris de salgada onda sobre a
areia,” (...) “Sim, no próprio templo do deleite/É que a Melancolia tem,
velada, o seu supremo/Santuário,/Embora só a veja aquele cuja língua estrênua/rebente
a uva da Alegria contra o céu da boca;/A alma deste provará a tristeza que é o
seu poder,/E em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.”. O paradoxo
entre a alegria ébria e a melancolia ganham resultado magistral na pena de
Keats, o poeta aqui aparece como o tradicional decifrador e entendedor dos
sentimentos que veem à alma, e como o exercício precípuo da pena e do estro são
imaginar saídas, o poeta, todo poeta, mesmo o mais concreto, está nessa busca
do sentido, e para um romântico como Keats, as afecções da alma ganham contorno
e finalidade gritantes, o poeta tem em seu serviço conhecer este jogo entre
zênites e nadires que estão não só na alma do poeta, mas também em toda alma
humana e da natureza.
ENDIMIÃO (I, 1-33) : O poema se abre com verso célebre: “Tudo
o que é belo é uma alegria para sempre:”. E o idílio se defronta em seu tecido
com forças obscuras, mas a luta empenhada de Keats é a da elevação do ente
humano e de sua sobrevivência e boa vida: “Toda manhã, portanto, estamos nós
tecendo/Um liame floral que nos vincule à terra,/Malgrado o desespero, a
carestia cruel”. Keats sabe das sombras que sempre se insinuam no caminho, mas
é destemido, não tem a perder, só a ganhar, e por isso faz poesia: “E todos os
sombreados e malsãos caminhos/Abertos para nossa busca: não obstante,/Alguma
forma bela afasta essa mortalha/De nossa lúgubre alma.” . A forma bela, seja a
poesia ou a própria vida, tem percalços, e o estro junta-se ao dom da vida,
força gratuita que rompe as sombras e vê a luz, pois crê como poema e como
coração: “E assim também é a majestade dos destinos/Que imaginamos para os
mortos poderosos;/Os lindos contos que nós lemos ou ouvimos:/Uma fonte
infindável de imortal bebida/Que da fímbria dos céus a nós se precipita.”. E a
coda é nada mais que a luta eterna da vida contra a morte: “A poesia paixão,
infindos esplendores,/Obsedam-nos até tornar-se luz que incita/Nossa alma, e
unem-se a nós de modo tão estreito,/Que existam sobre nós ou trevas ou fulgor,/Devem
estar sempre conosco, ou bem morremos.”. Luz e sombra, vida e morte, encontram
neste poema o fecho da coda que escolhe a luz e escolhe viver.
POEMAS:
ODE A PSIQUÊ
Escuta, ó deusa, os versos que, sem melodia,
Doce coerção e grata relembrança me tiraram;
Perdoa que eu module os teus segredos
Mesmo na branda concha desses teus ouvidos:
Hoje sonhei por certo; ou contemplei
Psiquê, a de asas, com olhos acordados?
Numa floresta eu caminhava descuidoso,
Mas de repente, e desmaiando de surpresa,
Vi duas belas criaturas respirando lado a lado
Na relva mais profunda, sob um teto sussurrante
De folhas e de flores trêmulas, em sítio onde corria
Um riacho apenas entrevisto.
Em meio às flores quietas, de raízes frias e olhos odorantes,
Azuis, brancas de prata e em púrpura abotoando,
Eles se reclinavam na acamada relva,
Tranquilos respirando, braços e asas enlaçados;
Os lábios desunidos, mas sem terem dito adeus,
Tal como se apartados pelo sono de mãos leves,
E ainda prontos a exceder os beijos dados
Ao madrugar-lhes pelos olhos o auroral amor;
Reconheci o alado jovem; mas quem eras,
Ó afortunada, afortunada rola?
Sua fiel Psiquê!
Ó a mais jovem e visão de longe e mais encantadora
De toda a esmaecida hierarquia olímpica!
Mais bela que no céu safira o astro de febe
Ou Vésper, amoroso vaga-lume dos espaços;
Mais bela, embora não possuas templo
Nem altar de flores cumulado;
Nem coro virginal a erguer lamento deleitoso
Nas horas em que a noite vai em meio;
Nem voz, nem alaúde, frauta ou doce aroma
A fluir de turíbulo suspenso nas correntes;
Nem santuário, nem bosque, oráculo ou fervor
De profeta a sonhar de lábios pálidos.
Ó a mais brilhante! Embora muito tarde para antigos
votos,
E muito, muito tarde para a lira apaixonada e crédula,
Quando sagrados eram os ramos assombrados da floresta,
Sagrados o ar, a água e o fogo;
Contudo mesmo nestes dias tão distantes
Do culto afortunado, as tuas asas lúcidas,
Librando-se entre os lânguidos olímpicos,
Eu vejo e canto, por meus próprios olhos inspirado.
Assim, seja eu teu coro, e erga um lamento
Nas horas em que a noite vai em meio;
A tua voz, teu alaúde, tua frauta, o doce aroma
A fluir do turíbulo oscilante;
Teu santuário, teu bosque, teu oráculo e o fervor por ti
Do profeta a sonhar de lábios pálidos.
Sim, eu serei teu sacerdote, e erigirei um templo
Em não trilhada região de minha mente,
Na qual os pensamentos, ramos recém-crescidos com
aprazível dor,
Murmurarão ao vento em vez de teus pinheiros;
Ao longe, ao longe em torno, aquelas árvores que formam
grupos negros
Emplumarão, aclive por aclive, a serra de deserta crista;
E lá os zéfiros, correntes, pássaros e abelhas
ninharão as Dríades deitadas pelo musgo;
E, bem no meio dessa larga paz,
Adornarei um róseo santuário
Com a treliça engrinaldada de um ativo cérebro,
E com botões, com sinos, com estrelas sem um nome,
Com tudo o que jamais pôde inventar aquela jardineira, a
Fantasia,
Que, produzindo flores, não produz jamais as mesmas:
E para ti lá estará todo o prazer suave
Que pode obter o pensamento umbroso,
Um claro archote, e uma janela aberta à noite
Para que tenha entrada o ardente Amor!
(O relato de Apuleio contribuiu aliás para o cenário descrito
na ode. Psiquê é depositada por Zéfiro num vale profundo, em leito de relva
florida, vendo uma floresta, altas árvores e um regato de águas claras. O
tratamento que Keats deu ao assunto foi influenciado por Spenser (o “Jardim de
Adônis”, na Faerie Queene), por Mrs.Tighe, poetisa pré-romântica, bem conhecida
na época, autora de uma Psiche (1811), havendo ainda paralelos de Milton e de
Erasmus Darwin. As interpretações da ode são várias. Para citar duas, Allott vê
no poema a asserção de que “o amor, a poesia e a indolência são os remédios
naturais da alma contra a morte viva que pode esperar da ‘fria filosofia’” e
Jan Jack nele descortina “um ato de culto pagão”. A forma do poema deve algo à
ode irregular, tal como a haviam praticado Wordsworth e Coleridge.)
AO OUTONO
I
Quadra das névoas, do fecundo j`maduro,
Amiga íntima do sol, o que sazona,
Com quem suspiras por benzer e carregar
As vides que se estendem nos beirais de palha;
Por vergar de maçãs as árvores musgosas
Da cabana e adoçar os frutos, até o centro,
Expandir o cocombro e inchar as avelãs
com doce amêndoa; por fazer brotarem mais
E mais as flores temporãs, para as abelhas
Que julgam não ter fim os dias de calor,
Já que o Verão levou seus favos a escorrer.
II
Quem não te viu amiúde em meio a tuas posses?
Às vezes quem sai buscando pode achar-te
Sentada, descuidosa, em chão de algum celeiro,
Cabelo erguido pelo vento de uma joeira;
Ou a dormir em campo já semiceifado,
Tonta de eflúvio da papoula, enquanto a foice
Poupa a fileira contígua e as flores enlaçadas;
Como respingadora atravessando o riacho
Manténs a fronte erguida ao peso de seu fardo;
Ou vês, hora após hora, os últimos gotejos,
Quando observas, paciente, a prensa para sidra.
III
Onde as canções da primavera? Onde é que estão?
Não penses nelas, também tens a tua música.
Nuvens estriadas floram o cair do dia,
Tocando de cor rósea as jeiras não semeadas;
Então em coro os mosquitinhos se lamentam
Entre os chorões do rio, cujos ramos sobem
Ou descem, quando vive ou morre o vento leve;
E da orla das colinas balem os cordeiros;
Zinem grilos na sebe; e com um dulçor agudo
Pia o pisco-de-peito-ruivo num quintal
E em bando as andorinhas chilram pelos céus.
SOBRE O GAFANHOTO E O
GRILO
A poesia da terra nunca, nunca morre:
Quando o vigor do sol languesce a passarada
E se abriga nas ramas, um zizio corre
De sebe em sebe, em torno à várzea já ceifada;
É o gafanhoto, que a assumir o mando acorre
No fausto do verão; e nunca dá parada
Ao seu prazer, pois de erva amável se socorre
Para descanso, ao fim de sua alegre zoada.
A poesia da terra nunca se termina:
Do inverno em noite só, quando com a geada cresce
O silêncio, do fogão se ergue de repente
O zinido do grilo, sempre mais ardente,
E para alguém zonzo de sono ele parece
O gafanhoto em meio à relva da colina.
(Este soneto nasceu de uma competição em casa de Leigh Hunt,
entre este e Keats, em 30 de dezembro de 1816. O tema era o canto do grilo.
Hunt declarou-se batido. A ideia de Keats é a de que a poesia da terra nunca
morre, pois ao chirriar do gafanhoto, nos dias de verão, corresponde o canto do
grilo, nas noites de inverno. Nessa e noutras competições, os sonetos deviam
ser feitos em 15 minutos.)
ODE SOBRE A MELANCOLIA
I
Não, não, não vás ao Lete, nem o acônito
De raízes firmes torças para obter seu vinho venenoso;
nem sofras que te beije a fronte pálida
A beladona, a rubra uva de Prosérpina;
Não faças teu rosário com os glóbulos do teixo;
Nem falena-da-morte nem escaravelho sejam
Tua Psiquê lutuosa, nem partilhe o mocho penugento
Dos mistérios da tua nostalgia;
pois sonolenta a sombra à sombra chegará,
Afogando a aflição desperta de tua alma.
II
Mas quando o acesso da melancolia
De súbito cair do céu, como se fosse a nuvem lacrimosa
Que alenta as flores todas de inclinada fronte
E em mortalha de abril oculta o verde outeiro:
Sacia então tua tristeza em rosa matinal,
Ou no arco-íris de salgada onda sobre a areia,
Ou na opulência das peônias globulares;
Ou se amada mostrar cólera rica
Toma-lhe a mão suave, e deixa-a delirar,
E bebe a fundo, a fundo, nos olhos sem iguais.
III
Ela mora com a Beleza – com a Beleza que perecerá;
Com a Alegria de mão aos lábios sempre erguida
Para dizer adeus; e junto do Prazer dorido
Que se faz veneno enquanto a boca suga, pura abelha;
Sim, no próprio templo do deleite
É que a Melancolia tem, velada, o seu supremo
Santuário,
Embora só a veja aquele cuja língua estrênua
rebente a uva da Alegria contra o céu da boca;
A alma deste provará a tristeza que é o seu poder,
E em meio aos seus troféus nublados ficará suspensa.
ENDIMIÃO (I, 1-33)
Tudo o que é belo é uma alegria para sempre:
O seu encanto cresce; não cairá no nada;
Mas guardará continuamente, para nós,
Um sossegado abrigo, e um sono todo cheio
De doces sonhos, de saúde e calmo alento.
Toda manhã, portanto, estamos nós tecendo
Um liame floral que nos vincule à terra,
Malgrado o desespero, a carestia cruel
De nobres naturezas, os escuros dias,
E todos os sombreados e malsãos caminhos
Abertos para nossa busca: não obstante,
Alguma forma bela afasta essa mortalha
De nossa lúgubre alma. Assim são sol e lua,
As árvores lançando a dádiva da sombra
Às ovelhas sem mal; e assim são os narcisos
Com o mundo verde no qual vivem, e os regatos
Que fazem para si uma coberta amena
Contra a quente estação; a moita mato a dentro,
Rica de um jorro em flor de almiscaradas rosas;
E assim também é a majestade dos destinos
Que imaginamos para os mortos poderosos;
Os lindos contos que nós lemos ou ouvimos:
Uma fonte infindável de imortal bebida
Que da fímbria dos céus a nós se precipita.
Nem percebemos tão-somente essas essências
Por uma curta hora; não, tal como as árvores
Que murmuram em torno a um templo logo estão
Preciosas como o próprio templo, assim a lua,
A poesia paixão, infindos esplendores,
Obsedam-nos até tornar-se luz que incita
Nossa alma, e unem-se a nós de modo tão estreito,
Que existam sobre nós ou trevas ou fulgor,
Devem estar sempre conosco, ou bem morremos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://seculodiario.com.br/31043/17/john-keats-um-dos-expoentes-do-romantismo-ingles-parte-2
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