“quando há crises e anomalias na
ciência normal, entra-se num novo período revolucionário”
Uma das afirmações principais de
Thomas Kuhn no seu livro A Estrutura das
Revoluções Científicas é a de que quando mudam os paradigmas, muda com eles
o próprio mundo. Ou seja, o paradigma para a ciência assim como para qualquer
área do conhecimento se define por ser uma visão do mundo, uma perspectiva na
qual se dá o processo científico.
“Guiados por um novo paradigma, os cientistas adotam novos instrumentos
e orientam seu olhar em novas direções. ... durante as revoluções, os
cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos
familiares, olham para os mesmos pontos já examinados anteriormente.” (Kuhn, Thomas,
A Estrutura das Revoluções Científicas, 2007, p.147) “As mudanças de paradigma
realmente levam os cientistas a ver o mundo definido por seus compromissos de
pesquisa de uma maneira diferente.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções
Científicas, 2007, p.147/148). Fica demonstrada nas citações acima que, a
ciência, quando ocorre uma revolução, estamos diante de uma mudança que tem o
sentido de uma maneira nova de ver as coisas, o objeto de pesquisa muda, mesmo
que o instrumental e a própria realidade sejam iguais ao do paradigma anterior,
pois há uma mudança de perspectiva do olhar do cientista.
Kuhn faz uma comparação entre a psicologia da forma e a mudança de
paradigmas da ciência: “As bem conhecidas demonstrações relativas a uma
alteração na forma (gestalt) visual evidenciam-se muito sugestivas como
protótipos elementares para essas transformações. ... Transformações dessa
natureza, embora usualmente sejam mais graduais e quase sempre irreversíveis,
acompanham comumente o treinamento científico. Ao olhar uma carta topográfica,
o estudante vê linhas sobre o papel, o cartográfico vê a representação de um
terreno. ... Somente após várias dessas transformações de visão é que o
estudante se torna um habitante do mundo do cientista, vendo o que o cientista
vê e respondendo como o cientista responde.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das
Revoluções Científicas, 2007, p.148).
Kuhn afirma que as transformações de paradigmas na ciência é comparável
às experiências perceptivas da psicologia da forma, mas não de todo, pois há
diferenças. O mundo do cientista muda com um novo paradigma, pois há uma
readaptação da percepção da realidade para fazer novos experimentos com novas
teorias e com uma nova perspectiva dos fenômenos observados.
No exemplo do estudante na citação anterior, o mundo no qual o estudante
penetra não está fixado de uma vez por todas, seja pela natureza do meio
ambiente, seja pela ciência. Tal mundo é determinado pelo meio ambiente e pela
tradição específica de ciência normal na qual o estudante foi treinado. Então,
em períodos de revolução, quando a tradição científica normal muda, a percepção
que o cientista tem de seu meio ambiente deve ser reeducada.
“Certamente, na sua forma mais usual, as experiências com a forma visual
ilustram tão-somente a natureza das transformações perceptivas. Nada nos dizem
sobre o papel dos paradigmas ou da experiência previamente assimilada ao
processo de percepção.” (Idem) “Todavia, embora experiências psicológicas sejam
sugestivas, não podem, no caso em questão, ir além disso. Elas realmente
apresentam características de percepção que poderiam ser centrais para o
desenvolvimento científico, mas não demonstram que a observação cuidadosa e
controlada realizada pelo pesquisador científico partilhe de algum modo dessas
características.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas, 2007,
p.150).
Ao contrário do que ocorre na psicologia da forma, na observação
científica não podemos apelar para um ente externo que comanda a experiência,
pois o cientista não pode ir além do que ele vê com seus olhos e instrumentos.
Portanto, quando fazemos uma comparação entre as mudanças perceptivas da
psicologia da forma e as revoluções científicas, devemos ter em conta que há
diferenças entre ambas.
As diferenças estão em que na psicologia da forma tudo é pressuposto num
aparato pronto à experiência que deve ser empreendida, não há nada de
imprevisível em tais experimentos perceptivos, tudo é organizado de modo que a
experiência confirme uma determinada teoria que é posta em teste para que dê
certo e isto tudo é monitorado de acordo com uma tendência interpretativa, ou
seja, tudo é previsível, não há anomalias como ocorre na ciência em crise. Na
ciência, por sua vez, quando se trata de um período revolucionário, estamos
diante do imprevisível, o que jamais ocorre na psicologia da forma.
No caso da astronomia, a descoberta de Urano por Sir William Herschel
fornece um exemplo semelhante ao da experiência das cartas anômalas feita pela
psicologia da forma. Tal descoberta implicou numa transformação das categorias
perceptivas presentes no paradigma anterior. Pois ficou claro que Urano não era
uma estrela, nem um cometa como Herschel supôs numa de suas observações, se
tratava, dada a sugestão correta por Lexell para Herschell, de um planeta, e
isso foi uma mudança conceitual em relação aos planetas, o que preparou os
astrônomos para a descoberta de vários outros planetas e asteróides.
Por sua vez, a eletricidade viveu também sua crise e a emergência de um
novo paradigma.
A mudança da teoria dos eflúvios
para os observadores do século XVII, para a repulsão eletrostática do
observador moderno implicou numa mudança ampla, pois foi por meio das pesquisas
de Hauskbee, e não através de uma alteração na forma visual, que a repulsão
tornou-se a manifestação fundamental da eletrificação.
Além da astronomia e da eletricidade, na química Lavoisier viu oxigênio
onde Priestley viu ar desflogistizado. “Contudo, ao aprender a ver oxigênio,
Lavoisier teve também que modificar sua concepção a respeito de muitas outras
substâncias familiares.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas,
2007, p.155). “Após ter descoberto o oxigênio, Lavoisier passou a trabalhar em
um mundo diferente.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas,
2007, p.156).
Nas duas citações acima, fica evidente a máxima de Kuhn de que uma
revolução na ciência significa uma mudança de mundos, não há como manter
padrões superados, ainda que não haja novo instrumental para as descobertas de
novos fenômenos, pois o que importa é que descobertas na ciência transformam a
realidade observada por um novo prisma, um novo olhar, trata-se de uma quebra
de um paradigma para a emersão de outro paradigma, o que corrobora a afirmação
de Kuhn de que a ciência não se faz segundo um progresso linear, mas sim de uma
alternância entre períodos de ciência normal, anomalias, crises e revoluções.
Outro exemplo de mudança de paradigmas pode ser evidenciada pelo pêndulo
de Galileu, pois na Antiguidade, para os aristotélicos, o pêndulo era apenas um
corpo oscilante que ia de um lado para o outro até alcançar o repouso, pois na
concepção aristotélica um corpo pesado era movido pela sua própria natureza de
uma posição mais elevada para uma mais baixa, onde alcançaria um estado de
repouso natural. “Galileu, por outro lado, ao olhar o corpo oscilante viu um
pêndulo, um corpo que por pouco não conseguia repetir indefinidamente o mesmo
movimento. Tendo visto este tanto, Galileu observou ao mesmo tempo outras propriedades
do pêndulo e construiu muitas das partes mais significativas e originais de sua
nova dinâmica a partir delas.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções
Científicas, 2007, p. 156)
Ou seja, Galileu viu coisas diferentes em relação aos aristotélicos. Ele
viu um pêndulo onde os últimos viram um corpo oscilante, e Galileu deduziu leis
de dinâmica para o fenômeno do pêndulo inimagináveis para a Antiguidade
aristotélica. O fato é que Galileu fez tais observações e descobertas por causa
que sua formação não foi aristotélica, mas sim influenciada pela teoria
medieval do impetus “que afirmava que o movimento contínuo de um corpo pesado é
devido a um poder interno, implantado no corpo pelo propulsor que iniciou seu
movimento” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas, 2007, p.157).
Foi esta teoria do impetus que possibilitou ver um pêndulo onde se via
anteriormente uma pedra oscilante, sem esta teoria Galileu não teria elaborado
a sua dinâmica.
“O paradigma é apenas a interpretação que os cientistas dão às
observações que estão, elas mesmas, fixadas de uma vez por todas pela natureza
do meio ambiente e pelo aparato perceptivo.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das
Revoluções Científicas, 2007, p.158) Tal afirmação levantada por Kuhn demonstra
uma concepção muito corrente do que ocorre com os cientistas quando há quebra
ou mudança de paradigmas. Trata-se de uma tradição epistemológica criada por
Descartes, tal paradigma cartesiano serviu tanto à ciência quanto à filosofia,
e produziu uma compreensão fundamental que não poderia ter sido diferente.
“As pesquisas atuais que se desenvolvem em setores da filosofia, da
psicologia, da linguística e mesmo da história da arte, convergem todas para a
mesma sugestão: o paradigma tradicional está, de algum modo, equivocado. Além
disso, essa incapacidade para ajustar-se aos dados torna-se cada vez mais
aparente através do estudo histórico da ciência” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das
Revoluções Científicas, 2007, p.158, 159) “O que ocorre durante uma revolução
científica não é totalmente redutível a uma reinterpretação de dados estáveis e
individuais. Em primeiro lugar, os dados não são inequivocamente estáveis. Um
pêndulo não é uma pedra que cai e nem o oxigênio é ar desflogistizado.” (Kuhn,
Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas, 2007, p.159).
Fica claro com as duas últimas citações que a visão que herdamos de
Descartes e que serviu por um bom tempo para a ciência e a filosofia não dão
conta mais da realidade do conhecimento e de como ele se produz, pois quando
nos colocamos numa perspectiva histórica, principalmente quando nos situamos
numa visão diacrônica da ciência, não se trata apenas de interpretação, o
paradigma é mais do que isso.
Tal transição de paradigmas não se resume à interpretação, embora
nenhuma dessas observações pretenda indicar que os cientistas não se
caracterizaram por interpretar observações e dados. Pelo contrário: Galileu interpretou
observações sobre o pêndulo, e Aristóteles sobre as pedras que caem. Mas cada
uma dessas interpretações pressupôs um
paradigma. Essas eram partes da ciência normal, devido a um paradigma
aceito, e o cientista sabia o que era um dado, que instrumentos podiam ser
usados para estabelecê-lo, e que conceitos eram relevantes para sua
interpretação. Dado um paradigma, a interpretação dos dados é essencial para o
empreendimento que o explora.
Mas, quando falamos que na ciência normal dependemos de um aparato
interpretativo como pressuposto da produção de conhecimentos, o mesmo não
ocorre quando estamos num período de crise ou de mudança de paradigmas. Tal
empreendimento interpretativo presente na ciência normal pode somente articular
um paradigma, mas não corrigi-lo. Os paradigmas não podem ser corrigidos pela
ciência normal, portanto, isto não depende de uma dada interpretação nova, é
mais do que isso quando falamos de um novo paradigma. A única coisa que a
ciência normal pode constatar é o reconhecimento de anomalias e crises, mas
jamais as suas soluções.
Quando um novo paradigma emerge de um cenário de crises e anomalias, não
se trata de uma simples reinterpretação, mas de uma mudança radical e profunda
da forma visual. Tal evento é abrupto e não-estruturado, é como se a mente do
cientista fosse iluminada por uma ideia que soluciona um quebra-cabeças antes
intransponível pelo paradigma anterior. Temos aqui, quando se fala de novas
soluções, de uma ideia despertada pela intuição e não por interpretação.
Portanto, um novo paradigma representa mais uma mudança de parâmetros do que de
interpretação.
“O conteúdo imediato da experiência de Galileu com a queda das pedras
não foi o mesmo da experiência realizada por Aristóteles.” (Kuhn, Thomas, A
Estrutura das Revoluções Científicas, 2007, p.163) “Por certo não está de modo
algum claro que precisemos preocupar-nos tanto com a experiência imediata ...
tais traços devem obviamente mudar com os compromissos do cientista a
paradigmas, mas estão longe do que temos em mente quando falamos dos dados não-elaborados
ou da experiência bruta, dos quais se acredita procedem a pesquisa científica.
Talvez devêssemos deixar de lado a experiência imediata e, em vez disso,
discutir as operações e medições concretas que os cientistas realizam em seus
laboratórios.” (Idem)
Destarte, quando se fala de ciência, normalmente temos o hábito
empirista de relacioná-la com a experiência, com os dados sensoriais, mas Kuhn
nos lembra que a ciência seleciona a sua experiência através de um aparato
instrumental feito para manipular determinada observação de fenômenos, e isso
tudo através de uma expectativa teórica, pois a experiência sempre deve servir
à teoria quando se fala de conhecimento científico, e isso ocorre graças ao
instrumental aplicado. Operações e medições são os determinantes da observação
científica, e não uma suposta experiência pura. Kuhn, portanto, nega uma
tradição filosófica empirista de três séculos, empirismo que afirma que a
experiência é fixa e neutra.
As operações e medições que um cientista empreende em um laboratório não
são o dado da experiência. Não são o que o cientista vê, são índices concretos
para os conteúdos das percepções mais elementares. As operações e medições, de
maneira muito mais clara do que a experiência imediata da qual em parte
derivam, são determinadas por um paradigma. Há uma seleção das manifestações
possíveis num laboratório. O fato é que não há observação pura.
“Comparadas com esses objetos da percepção, tanto as leituras de um
medidor como as impressões de retina são construções elaboradas às quais a
experiência somente tem acesso direto quando o cientista, tendo em vista os
objetivos especiais de sua investigação, providencia para que isso ocorra.”
(Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções Científicas, 2007, p.166) “A
alternativa não é uma hipotética visão ‘fixa’, mas a visão através de um
paradigma que transforme a pedra oscilante em alguma outra coisa.” (Idem) “Ver
o oxigênio em vez do ar desflogistizado, o condensador em vez da garrafa de
Leyden ou o pêndulo em vez da queda constrangida, foi somente uma parte de uma
alteração integrada na visão que o cientista possuía de muitos fenômenos
químicos, elétricos e dinâmicos. Os paradigmas determinam ao mesmo tempo
grandes áreas da experiência.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura das Revoluções
Científicas, 2007, p.167) “Contudo, é somente após a experiência ter sido
determinada dessa maneira que pode começar a busca de uma definição operacional
ou de uma linguagem de observação pura.” (Idem) “Tais questões são partes da
ciência normal, pois dependem da existência de um paradigma e recebem respostas
diferentes quando ocorre uma mudança de paradigma.” (Kuhn, Thomas, A Estrutura
das Revoluções Científicas, 2007, p.168)
“Após uma revolução científica, muitas manipulações e medições antigas
tornam-se irrelevantes e são substituídas por outras.” (Idem) “Mas mudanças
dessa espécie nunca são totais. Não importa o que o cientista possa então ver,
após a revolução o cientista ainda está olhando para o mesmo mundo. Além disso,
grande parte de sua linguagem e a maior parte de seus instrumentos de
laboratório continuam sendo os mesmos de antes ... a ciência pós-revolucionária
invariavelmente inclui muitas das mesmas manipulações, realizadas com os mesmos
instrumentos e descritas nos mesmos termos empregados por sua predecessora
pré-revolucionária. Se alguma mudança ocorreu com essas manipulações
duradouras, esta deve estar nas suas relações com o paradigma ou nos seus
resultados concretos.” (Ibidem)
De acordo com as citações acima, Kuhn deixa claro que a linguagem de uma
observação pura só serve enquanto há um período de ciência normal, mas isto
ainda não foi realizado a contento. Pois, quando há crises e anomalias na
ciência normal, entra-se num novo período revolucionário que muda tudo outra
vez, e podemos ter diversas semelhanças instrumentais e de linguagem com o
paradigma anterior. Mas, o fato é que o mundo no qual a ciência se insere se
transforma radicalmente. É difícil fazer com que a natureza se ajuste a um
paradigma, é por isso que os quebra-cabeças da ciência normal constituem
tamanho desafio e as medições realizadas sem a orientação de um paradigma
raramente levam a alguma conclusão. Num novo paradigma os dados mudam, por isso
a afirmação de que, após uma revolução, os cientistas trabalham em um mundo
diferente
Para concluir, o que devemos ter em conta, quando analisamos a obra de
Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas, é que há uma valorização
dos conceitos-chave paradigma e revolução científica. Ou seja, Kuhn elabora um
novo modo de analisar a ciência, não mais de forma independente de seu contexto
histórico, mas sim demonstrando que a evolução da história da ciência deixa
muito evidente o que a ciência é.
Kuhn busca, na verdade, um conceito exato para a ciência, no que se
estabelece como a sua relação com a ideia de paradigma, períodos de
normalidade, crises, anomalias e revoluções. Donde se tem, portanto, uma imagem
da ciência que transforma a visão supostamente correta de uma ciência “pura”
com observações “puras”, e levanta a ideia de que a ciência não é um progresso
linear e acumulativo de dados, mas sim um terreno que ora está bem
estabelecido, ora se torna um abismo em que emerge uma nova luz despertada pela
intuição ou pelo gênio de alguns que dão a direção para um novo norte. Ou seja,
um paradigma cai e outro aparece, é feita a revolução e tudo volta ao normal
depois da crise.
Kuhn quer dizer com sua obra que não há caminho certo para a ciência,
mas sim um caminho que dá certo em determinado período e que depois deve deixar
lugar a outros meios e fins que não são mais possíveis para a ciência normal,
dando abertura, então, para o que Kuhn vai chamar de revoluções científicas.
Gustavo Bastos, filósofo e
escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/19985/14/a-ciencia-de-thomas-kuhn
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