Don DeLillo, escritor, dramaturgo e ensaísta norte-americano, é um dos nomes de destaque do cenário literário dos EUA do século XX. Sua obra Cosmópolis foi recentemente adaptada para o cinema por David Cronenberg, com o personagem principal da estória, Eric Michael Packer, representado pelo ator da franquia Crepúsculo, Robert Pattinson. O filme é fiel ao livro, e mostra um contexto de virada de século e milênio bem detalhado do que viria a ocorrer tanto nos EUA como no mundo nos anos seguintes.
O personagem principal da estória é um self-made man do mercado financeiro, empresário que passa a maior parte do tempo conferindo dados do mercado através de telas de computador em sua limusine. O multimilionário Eric Michael Packer é dono da Packer Capital, e toda a estória se desenrola em apenas um dia, como um retrato de ascensão e queda de um homem em pouco tempo. O tempo que, em toda a estória, passará a ser questionado como um dado importante. Tudo é controlado o tempo todo, os dados do mercado deveriam ter alguma lógica, um padrão, mas o iene, tema que envolve as reflexões de Eric, e que o perturba durante seu trajeto para cortar o cabelo, vai demonstrar como a psicologia do mercado financeiro é imprevisível. Tudo que Eric acreditava, com suas teorias bem estabelecidas, vai logo ruir e sua fortuna irá junto, como um golpe em seu ego e em sua segurança de pessoa bem formada e consciente. A frieza de sua vida irá repentinamente ser abalada por acontecimentos terríveis que vão, junto com a subida indesejada do iene, transformar, através do caos, todos os conceitos que Eric jogava em suas especulações no mercado financeiro.
Eric tem apenas 28 anos, tem características típicas de um homem vaidoso e megalômano, tudo o que ele tem representa para ele um modo de vida e o sentido dado à própria vida. Seu enredo de um único dia se passa na Nova York convulsionada por protestos e passeatas, pessoas passam ao lado e por cima de sua limusine, e ele tenta ficar no seu mundo lógico, mas se percebe que, do lado de fora da limusine, o mundo tenta dizer para ele que não tem mais nada certo, que todas as coisas que são previstas podem mudar instantaneamente, e que a vida que Eric leva é falsa e perigosa. Sua mulher tem uma família abastada, mas ele, self-made man, começa a perder dinheiro, o iene insiste em subir, toda a sua fortuna está indo embora, ele só quer cortar o cabelo e nada mais, a especulação do mercado financeiro continua, seus seguranças tentam protegê-lo, sua vida está por um fio, o mundo também, por sua vez, está por um fio.
Toda a estória se passa num dia de Abril do ano 2000. Don DeLillo retrata com perfeição todos os dilemas de um novo mundo em que a informação tem um valor fundamental, e os dados que correm por esta rede de informação é um determinante de uma escalada de riqueza ou de falência, talvez e certamente um prenúncio inconsciente de todas as crenças que ruiram no ano de 2008, na crise dos subprime nos EUA, refletindo em todo o mundo, onde a globalização e todos os conceitos de um mercado financeiro autorregulado, propalado pela famosa Escola de Chicago, são confrontados com uma especialização extrema de derivativos e quejandos, em que a criatividade se volta contra ela mesma, levando, no mundo real, a uma crise bancária.
De Lillo viu isso, não como uma profecia, mas como a própria natureza humana sendo a sabotadora de si mesma, e a autossabotagem passará pelos sentimentos frios de Eric, uma vida vazia, ausente de uma ambição maior que não a de acumular capital e bens, e que sofrerá de seu próprio equívoco, ao se deparar com um impasse de toda uma estratégia que não deu certo, pois a teoria em que se valeu, não terá mais serventia num mundo que está no caos, e que não tem a ordem lógica esperada.
De encontro com mulheres, conversas com um pequeno gênio da informática, de conflitos com sua mulher, do fato de acabar de matar um de seus seguranças com uma arma ultramoderna, tudo está em suspenso neste dia terrível de Eric. O sonho das finanças terá mesmo a consistência de um sonho, ou melhor, de um delírio, tudo se passa como um enredo de tragédia pós-moderna. De Lillo fecha todo o enredo de Cosmópolis com um fim de ressentimento. Um dos ex-empregados de Eric quer matá-lo. Os dois se reencontram, e o conflito entre um ego inflado e um perdedor ressentido vêm à tona. O único sentido para o ressentido é matar o sucesso, e o self-made man, típico exemplo do sucesso norte-americano, vira o alvo de todas as frustrações de um outro homem que, só verá sentido para a sua própria vida, ao matar o que lhe provoca ódio, ou seja, o sucesso total de um empreendedor do mercado financeiro.
O ressentido aparece sob o pseudônimo de Benno Levin, que tem apartes durante a estória de Eric contada por De Lillo. Benno Levin é o assassino de Eric Michael Packer? Tudo se configura para o ato final. Eric em tom provocativo, e Benno, no desespero impotente de quem não tem mais nada a fazer na vida, senão liquidar com o que lhe ofende, ou seja, todo o sucesso financeiro, não só de Eric, que a esta altura já perdeu quase tudo, como de um modelo de vida capitalista e, sobretudo, norte-americano. Benno Levin não conseguiu, este é o fato do ressentido, ele não conseguiu. E, para finalmente conseguir, tem que matar quem fez o que ele sempre sonhou, aquele que representa seu ideal, e que só o poder de matá-lo, a Eric, será este, o único gesto de poder de Benno Levin sobre a totalidade da vida. Pois, para Benno Levin, só acabando com a vida de Eric, poderá viver em paz. Mas, a estória termina, e o ato não é consumado. Ou melhor, Cosmópolis fecha em forma de enigma, com uma única resposta para o mundo: tudo é imprevisível.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário: http://www.seculodiario.com.br/exibir.php?id=8740&secao=14
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