“sua poesia vira reflexo desta sua experiência adquirida”
Sophia de Mello Breyner Andresen chega ao final de seu
caminho poético com dois livros, um de 1994, Musa, e outro de 1997, O búzio de
Cós e outros poemas, que findam esta trajetória escrita da poeta, e este fecho
de sua obra termina como uma coda.
Ambos os livros são de uma dicção limpa e caracterizada pela
brevidade, temos sintagmas e justaposição de palavras, com a temática orbitando
entre Grécia, viagens e o mar. O jogo da memória, por sua vez, passa por
paisagens que evocam lugares de rememoração.
O tempo aparece em Sophia no final desta sua trajetória
escrita como um transcorrer que se fixa no poema, o fluxo vai ao âmago da
questão de Sophia no fim de sua obra poética, uma consciência do tempo
transcorrido emerge e se reflete em sua poesia final.
Todo um esforço e conflito agora tem uma quietude de uma
vivência que já adquiriu experiência e sossegou seu ímpeto, Sophia descansa em
sua obra já vitoriosa. Seu desejo de paz se consubstancia numa vida em paz. Ao
fim, as “Artes poéticas”, por sua vez, foram publicadas originalmente em edições
autônomas, sendo numeradas e reunidas após os livros.
A poeta Sophia, portanto, neste final de seu caminho, passa
da experiência com a linguagem para um exercício com este tempo transcorrido
que ela já possui, e sua poesia vira reflexo desta sua experiência adquirida,
esta consciência do tempo, por sua vez, confere uma quietude de quem já
pacificou a sua própria busca literária e espiritual.
Sua trajetória já explica para a poeta muito do que ela
buscou, o estudo, o exercício poético, a reflexão, tudo conflui em sua
trajetória de vida como se fosse, por fim, um esclarecimento autoevidente, daí
se aquietar e descansar para seus gestos finais.
DE MUSA :
CÂNON : A poeta Sophia aqui remonta, poeticamente, a vinda de Cristo e a sua
ressurreição, como um fim para o profetismo sombrio que canta o exílio, pois a
religação executada pelo dom desta luz do evangelho, retira este homem mortal
do exílio feito pelo degredo do éden vindo do pecado original, no que temos : “Sombrios
profetas do exílio abandonai vosso vestido de cinza/Pois o Filho do Homem na
véspera da sua morte/Se sentou à mesa entre os homens/E abençoou o pão e o
vinho e os repartiu/E aquele que pôs com ele a mão no prato o traiu/E uma noite
inteira no horto agonizou sozinho/Pois os seus amigos tinham adormecido/E no
tribunal esteve só como todos os acusados da terra/E muitos o renegaram/E à
hora do suplício ouviu o silêncio do Pai/Porém ao terceiro dia ergueu-se do
túmulo/E partilhou a sua ressurreição com todos os homens”. Sabia que seria
traído, o enforcamento foi certo, sabia que ressurgiria, foi ao calvário em
abandono completo, sua carne sentida e renegada é objeto do poema, mas,
sobretudo, o poema reflete o dom supremo da ressurreição.
ELEGIA : A poeta Sophia nesta elegia conta este mito, de Eurydice a hesitação que
ceifa seu destino, a sua espera que conflagra o sumiço de seu destino em sua
mudez, os oceanos agora a rodeiam, e segue o poema : “Aprende/A não esperar por
ti pois não te encontrarás” (...) “No instante de dizer sim ao destino/Incerta
paraste emudecida/E os oceanos depois devagar te rodearam”. E a poeta, então,
reflete este fracasso, a lira vibra incessante, e já não temos como fazer esta
distinção entre vivido e não vivido, existe uma visão nublada que se confunde,
no que temos : “A isso chamaste Orpheu Eurydice -/Incessante intensa a lira
vibrava ao lado/Do desfilar real dos teus dias/Nunca se distingue bem o vivido
do não vivido/O encontro do fracasso” (...) “Por isso a memória sequiosa quer
vir à tona/Em procura da parte que não deste/No rouco instante da noite mais
calada/Ou no secreto jardim à beira-rio/Em Junho”. Há uma ânsia da memória, que
tenta a todo custo eclodir.
À MANEIRA DE HORÁCIO : A felicidade do poeta aqui se enuncia com alegria, Sophia
tem a sua realização plena, longe deste carma suicida de alguns outros poetas
que capitularam em sua luta, no que temos : “Feliz aquele que disse o poema ao
som da lira/À mesa do banquete entre os amigos/E coroado estava de rosas e de
mirto”. O poeta feliz aqui aparece num banquete entre os amigos, um poema bem
povoado, feliz pois possui o som da lira dentro de si, e segue o poema : “Seu
canto nascia da solar memória dos seus dias/E da pausa mágica da noite -/Seu
canto celebrava/Consciente da areia fina que escorria/Enquanto o mar as rochas
desgastava”. A solar memória do dia se une a uma pausa mágica da noite, e a
coda se finda nas rochas do mar.
DE O BÚZIO DE CÓS E OUTROS POEMAS
GOA : A vaca sagrada é descrita em Goa, o poema enuncia todo o contexto
cultural, a imagem da cítara logo aparece, no que temos : “Bela, jovem, toda
branca/A vaca tinha longos finos cornos/Afastados como as hastes da cítara/E
pintados/Um de azul outro de veemente cor-de-rosa/E um deus adolescente atento
e grave a guiava”. E o poema segue para finalizar este seu trajeto, uma imagem
de divindade e a divindade animal se fundindo neste poema que faz sua coda na
alegria : “Passavam os dois junto aos altos coqueiros/E ante a igreja barroca
também ela toda branca/E em seu passar luziam/Os múltiplos e austeros sinais da
alegria”.
ARTE POÉTICA : A poeta aqui realiza uma reflexão visceral sobre a poesia, e
que fala por si, eis suas palavras : “A dicção não implica estar alegre ou
triste/Mas dar minha voz à veemência das coisas/E fazer do mundo exterior
substância da minha mente/Como quem devora o coração do leão” (...) “Olha fita
escuta/Atenta para a caçada no quarto penumbroso”. Das imagens fortes, a que
bate em mim como um soco é desta poeta que vê o mundo exterior como quem devora
o coração do leão, sem mais.
O BÚZIO DE CÓS : A poeta reflete sobre o búzio que comprou, que não tinha
achado na praia, no que temos : “Este búzio não o encontrei eu própria numa
praia/Mas na mediterrânica noite azul e preta/Comprei-o em Cós numa venda junto
ao cais”. O poema segue, por fim, para uma ausculta frustrada, a poeta busca
ecos de lugares e não ouve nada, somente este cântico da longa praia atlântica,
este búzio ecoa a sua origem, mas não remonta ecos perdidos : “Porém nele não
oiço/Nem o marulho de Cós nem o de Egina/Mas sim o cântico da longa vasta
praia/Atlântica e sagrada/Onde para sempre minha alma foi criada”.
FOI NO MAR QUE APRENDI : A observação da vaga pela poeta Sophia aqui vira este
poema : “Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela/Ao olhar sem fim o
sucessivo/Inchar e desabar da vaga/A bela curva luzidia do seu dorso/O longo
espraiar das mãos de espuma”. Seu aprendizado segue e se desenvolve, e ela vê
no museu grego o mesmo que na praia, e temos : “Por isso nos museus da Grécia
antiga/Olhando estátuas frisos e colunas/Sempre me aclaro mais leve e mais
viva/E respiro melhor como na praia”.
HOMERO : O poema homérico é refletido aqui pela poeta Sophia em seu metro que não
tropeça, e segue : “Escrever o poema como um boi lavra o campo/Sem que tropece
no metro o pensamento/Sem que nada seja reduzido ou exilado/Sem que nada separe
o homem do vivido”. A vida não se vive aqui exilada de si mesma, nada escapa, todo o vivido percorre
este pensamento poético, o metro homérico tudo cobre e tudo dá conta.
VARANDAS : O poema enuncia este seu fazer, a sua atividade, os poemas
emergem aqui nas varandas, e toda uma trama se desenvolve, no que temos : “É na
varanda que os poemas emergem/Quando se azula o rio e brilha/O verde-escuro do
cipreste – quando/Sobre as águas se recorta a branca escultura”. O alinhamento
do poema à sua página se dá, então, nesta manhã toda aberta, e a poeta Sophia
reflete este seu dom com esta descrição que ela conhece e bem sabe : “E a manhã
toda aberta/Se torna irisada e divina/E sobre a página do caderno o poema se
alinha”. E a poeta, ao fim, canta o seu amor à vida e sua juventude que se via
na eternidade, sua poesia faz uma aliança com o vivido, algo inescapável e como
um compromisso ético, no que vem : “Noutra varanda assim num Setembro de outrora/Que
em mil estátuas e roxo azul se prolongava/Amei a vida como coisa sagrada/E a
juventude me foi eternidade”.
ARTES POÉTICAS :
ARTE POÉTICA II : A poeta Sophia aqui dá uma receita verdadeira do que se
trata o fazer poético, sem ilusões, sem teoria, a fala direta revela e desvela
esta arte, não há o mistério ou a teoria ou qualquer instrumento especial, mas
o âmago e um estudo detido e profundo deste ser inteiro, a entranha anímica que
emerge neste trabalho contínuo e obcecado, no que temos : “A poesia não me pede
propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é
tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma
estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência
mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela
que eu posso controlar.”. Uma visão atenta, combinada com uma consciência bem
antenada, complementam este estudo da própria alma da poeta, no que temos : “Pede-me
que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça.
Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.”. Esta obstinação que não
faz concessões, produto da verdadeira poesia, que não dá trégua, seu embate,
seu ímpeto, seu destino, seu trabalho, tudo isto se realiza plenamente graças a
esta obstinação, no que vem : “Pois a poesia é a minha explicação com o
universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o
meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida
ideal mas sim de uma vida concreta : ângulo da janela, ressonância das ruas,
das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio,
distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do
orégão.” A poeta Sophia, então, se volta para a atividade poética, propriamente
dita, seus temas, imagens e seus objetos de reflexão, um mundo real emerge, e
esta sua relação com o universo, no que temos : “É esta relação com o universo
que define o poema como poema, como obra de criação poética.”. A definição do
poema em si mesmo se dá nesta relação da poeta com o universo que, nestes
passos, realiza um trabalho de artesão da linguagem, nesta interpretação que a
poeta Sophia faz da poesia como um todo e da sua própria poesia, no que segue :
“Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das
artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como
nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia à
qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz “obscuro”, “amplo”,
“barco”, “pedra” é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua
ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua
beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu
poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a
poesia exige que nasce o “obstinado rigor” do poema. O verso é denso, tenso
como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos,
exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos
momentos entre si.” (...) “E no quadro sensível do poema vejo para onde vou,
reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.”. A poeta Sophia, então,
faz um painel valoroso e bonito desta atividade, a beleza, a vida como um arco
dos dias que tensos se refletem na poesia, o dito pela poesia traduz com
exatidão esta experiência autêntica com a própria vida, não há trégua, toda a
poesia é produto acabado de uma obstinação, seu rigor é este, não há concessão,
tudo flui pois não existe submissão, a cosmovisão aqui emerge em sua aliança
com a vida, o poder poético se cristaliza no que a poeta Sophia vai chamar de
obstinado rigor, e ela reconhece neste lugar a sua força, o seu reino, o seu
caminho e a sua vida.
INÉDITOS
SEM TÍTULO : A poeta Sophia reflete sobre o vivido e a morte, e o poema
aqui tece as imagens para cada um, no que temos : “A minha vida está vivida/Já
minha morte prepara/Seu pó de beladona/Viajarei ainda para me despedir das
imagens/Antes de despir a túnica do visível”. A poeta então vê seu mundo
interior e exterior desvelados, no que segue : “Se ainda busco o promontório de
Sunion/É porque nele vejo a minha face despida/O mitológico mundo interior e
exterior/Da minha própria unidade perseguida”. Sua unidade está remontada, e a
poeta finaliza, sem mais, com seu amor inteiro e sem costuras, seu caminho é
livre : “Mas como despedir-me deste sal/Deste vento inventor de degraus e
colunas/Como despedir-me das pedras deste mar/E deste denso amor inteiro e sem
costuras”.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário :
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