“Borges lamenta esta cisão que foi feita entre lírica e
elegia, de um lado, e romance, de outro.”
O NARRAR UMA HISTÓRIA
Borges começa o texto nos lembrando de como a palavra poeta
possui duas referências e sentidos diversos quando se fala dela na antiguidade
e na modernidade. Temos, de início, que Borges julga o sentido moderno de poeta
um conceito ou palavra fracionada, uma vez que temos aqui a lírica como fator
dominante, ao passo que seu sentido antigo está ligada a uma feitura, a uma
narração de uma história, o que vai culminar na poesia épica, a primeira
linguagem poética que surgiu na História, e que tem um aspecto de narrativa
calcada na conduta do herói.
Tal épica inaugura o que se entendia por poesia, a lírica,
por sua vez, é fenômeno mais próprio do verso moderno, o narrador antigo
poderia até apresentar certa lírica, mas a sua função era muito mais
pragmática, ele era um fazedor de histórias, um guia que nos contava as
peripécias de um herói, e Borges nos cita as três poesias épicas principais do
período antigo, que eram então a Ilíada, a Odisseia e, por fim, os quatro
Evangelhos, que Borges aqui define também como um épico, mesmo que nós
entendamos como códice religioso.
Borges, seguindo a sua análise, considera a Ilíada, por
exemplo, pobre de atrativos, pois se concentra num episódio maçante do herói
Aquiles, seu momento de fúria, e que ganha o contorno de uma guerra, que é a
invasão dos guerreiros gregos à cidade de Troia, e o tema da Ilíada passa a ser
todo este enredo em que Aquiles enraivecido invade Troia, e temos então Borges
nos lembrando que muito da identidade do enredo épico pendia, paradoxalmente,
mais para o lado dos derrotados, isto é, os troianos, do que uma certa
antipatia dos vencedores gregos, pois as pessoas escolhiam os heróis troianos,
numa espécie de dignidade da derrota, a qual será consolidada já na modernidade.
Por sua vez, a Odisseia possui uma narrativa mais densa e
completa que a Ilíada, pois seu tema se volta a duas frentes, ou melhor, temos
duas leituras que se pode fazer do enredo da Odisseia, tanto a peripécia
marítima de Ulisses e suas aventuras nestes caminhos e viagens, como a ideia corrente e mais conhecida de um exílio e regresso do
herói. Portanto, temos, de um lado, a magia dos perigos e curiosidades do mar,
e de outro lado, um herói que tem uma intenção principal de regressar vivo à
sua terra natal, sendo a ideia de exílio e regresso aqui o leitmotiv da épica
do herói, considerando que todos os atrativos do mar são aventuras efêmeras, e que
o destino do herói está em seu retorno ao lar.
E, por fim, temos o que Borges considera o maior épico da
terra, que são os quatro evangelhos. Estes que, por sua vez, são a narrativa de
um herói histórico e real, guardadas as controvérsias que colocam em dúvida a
existência de Jesus e, ainda mais, de que se trata do maior herói de todos,
isto é, o messias, o homem-deus. Mas a leitura preponderante é a que se
constitui como o dogma cristão, ou seja, a ideia de que Deus se fez homem e
morreu na cruz para expiar os pecados da humanidade, ressuscitando ao terceiro
dia e nos deixando o testemunho do amor de Deus e da realidade do paraíso. A
leitura cética, por outro lado, mesmo que não duvide da figura histórica de
Jesus, nunca aceitará a ideia de um homem-deus, talvez no máximo a ideia de um
sábio que tinha um gênio tal que se dizia deus até que este deus o abandona na
crucificação.
Borges nos faz saber também que, por muitos séculos, as três
narrativas épicas principais (Ilíada, Odisseia e os quatro evangelhos) que
surgiram ainda no mundo antigo dominaram o imaginário da humanidade sem dar
falta de nada mais, pois eram épicos poderosos o suficiente para nutrir a
humanidade por um bom tempo, e foi o que ocorreu, com tais épicos sendo
contados e recontados através de gerações, o que consolidou estas três narrativas
como um patrimônio da humanidade e um dos principais materiais narrativos da
História até os dias de hoje. Temos tais épicos como cânones indestrutíveis da
tradição histórica e literária humana.
Já no despontar da modernidade temos o tal fracionamento ou
fragmentação de que nos fala Borges no início, isto é, a divisão entre poesia
lírica e elegia, de um lado, e a narrativa moderna, que será o romance, de
outro lado. Borges nos sugere, então, sem afirmar categoricamente, que o
romance pode figurar como um tipo de degeneração da épica, já que “o romance
remonta à dignidade da épica”, nas palavras de Borges.
E uma das diferenças mais patentes entre a épica e o romance,
por sua vez, Borges nos faz lembrar, e é um tanto óbvio, de certo modo, é a
divisão existente ou separação entre o verso e a prosa, pois a épica canta algo
em versos, enquanto o romance enuncia uma história com o uso pragmático da
prosa, pois temos a épica que também conta uma história, mas aqui é um cantar,
isto é, poesia, ou ainda, poesia épica, ao passo que o romance já faz parte da prosa,
oficialmente falando, pois tem um lado objetivo e de materialidade, uma vez que
no romance se conta simplesmente uma história, ao passo que na poesia épica se
conta uma história no contexto poético de uma linguagem musical ou cantada.
Outra diferença entre épica e romance está no fato de que a
poesia épica conta a saga de um herói, ao passo que o romance tem um lance
contra-intuitivo de nos contar sobre o aniquilamento de um homem, da
degeneração do caráter. A épica nos legou por séculos, portanto, uma tradição
narrativa dos vencedores, ao passo que a dignidade da derrota só nos foi
tematizada de fato com a emergência do romance como nova categoria literária,
mudando um paradigma de final feliz ou de ideia de felicidade como dogma
narrativo até então, imagem positiva esta que a épica sempre consolidou com a
aventura do herói e suas glórias e vitórias.
Na transição do século XVIII para o XIX temos, então, que o
homem começou a inventar histórias, figurando então escritores inaugurais como
foram Hawthorne e Edgar Allan Poe, mas sem, contudo, tratar-se da existência de
um Adão literário, pois há precursores, mas temos nesta passagem citada entre
séculos a evolução das peripécias e a construção diversa de inúmeros enredos,
revelando a categoria do romance, por exemplo, como algo mais engenhoso de
enredos do que fora o épico até então, poesia épica que fora um modelo
canônico, verdadeiro paradigma, que vigorara por séculos.
Borges, por fim, finaliza este texto com um tipo doce de
nostalgia, que é seu anelo de retorno da épica, de novamente a poesia se tornar
algo originário como foi antes, isto é, uma poesia narrativa, que conta uma
história através da canção, que junta duas funções num só modelo, a poesia épica,
esta que junta o verso cantado e uma história, uma vez que Borges lamenta esta
cisão que foi feita entre lírica e elegia, de um lado, e romance, de outro.
E a nostalgia de Borges também tenta profetizar a implosão do
romance, depois de deslocamentos temporais e de estrutura, e o retorno triunfal
da épica, no que Borges admite, então, a sua inadequação, ou se tratar de um
sonho antiquado, de um “um homem antiquado do século XIX”, pois este é o sonho
louco de Borges, um sonho literário, mas que faz sentido, pois julgo que a
literatura e a poesia, o verso e a prosa, não são faculdades estanques.
A épica, talvez, se nos dê agora não como um retorno ou
renascimento de uma tradição antiga, mas como uma evolução que formará uma nova
força de confluência, sem necessariamente implodir ou entrar na frente do
romance, como talvez sugere sutilmente o desejo ou profecia borgianos.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/borges-entre-a-epica-e-o-romance
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