“o romance de cavalaria é um fenômeno literário e não calcado
na realidade”
TIRANT LO BLANC
Ítalo Calvino segue em sua análise, desta vez sobre Tirant Lo
Blanc e o romance de cavalaria, desde suas origens, e coloca o fenômeno Tirant
Lo Blanc como o primeiro romance de cavalaria espanhol, e faz sua crítica
lembrando que há algo que podemos chamar de regressão ao infinito neste modelo
de romance, pois para Calvino, quando nos deparamos com um romance desses,
temos logo a noção de que um romance de cavalaria sempre se refere a outro do
mesmo modelo que lhe é precedente. Pois temos aqui que a formação do cavaleiro
num romance advém da leitura de outro precedente, e assim temos esta regressão
inusitada da tradição do romance de cavalaria.
E Calvino conclui que o romance de cavalaria é um fenômeno
literário e não calcado na realidade, isto é, tal tradição é feita no próprio
romance, no próprio objeto livro, e não num estrato social real, como se
poderia supor. Assim, como diz Calvino “é possível compreender como o último
depositário das virtudes cavalheirescas, Dom Quixote, será alguém que construiu
a si mesmo e a seu próprio mundo exclusivamente por meio dos livros. Uma vez
que Cura, Barbero, Sobrina e Ama tenham ateado fogo à biblioteca, a cavalaria
terminou: Dom Quixote permanecerá como o último exemplar de uma espécie sem
sucessores.”
E Calvino faz uma distinção entre o autor Cervantes e a
personagem Dom Quixote, lembrando que o autor do romance de cavalaria tem a
originalidade literária como orientação e que se funda numa verdade humana, não
sendo objeto de sua apreciação o mito da cavalaria em si, mas sim o fenômeno do
livro que este modelo envolve sobretudo para o autor, tanto como homem ou como
romancista, o livro é que importa, uma vez que Calvino já tinha concluído por
este viés quando recorre à tradição do romance de cavalaria assim mesmo, como
romance, e não como realidade.
Por outro lado, quando vemos Dom Quixote, temos aqui o
fenômeno de fusão que mistura a realidade com a loucura, em que o mito da
cavalaria se torna a junção delirante entre a vida real e os livros, numa busca
por este mito fora dos livros, no que temos o adjetivo quixotesco em seu uso sobre
todo empreendimento que junta a realidade à fantasia e não faz mais distinção
entre ficção e mundo real, ou de quando a utopia vira delírio.
Por sua vez, como nos diz Calvino, “o declínio da cavalaria
fora celebrado por Pulci, Boiardo, Ariosto num clima de festa renascentista,
com matizes burlescos mais ou menos marcados, porém com nostalgia pela ingênua
fabulação popular dos contadores de histórias; aos rudes despojos do imaginário
cavalheiresco ninguém atribuía nenhum valor além de um repertório de motivos
convencionais, mas o céu da poesia se abria para acolher seu espírito.”
E assim, na França e Inglaterra, a tradição literária
cavaleiresca se apagara antes, e o revival cavalheiresco do século XVI envolve
sobretudo Itália e Espanha. A descoberta do Novo Mundo e a Conquista foram
acompanhadas, no imaginário coletivo, como nos diz Calvino, “por aquelas
histórias de gigantes e de encantamentos das quais o mercado de livros oferecia
vasto sortimento, assim como a primeira difusão europeia do ciclo francês
acompanhara, alguns séculos antes, a mobilização publicitária para as Cruzadas.”
E conclui Calvino: “O milênio que está para se encerrar foi o milênio do
romance. Nos séculos XI, XII e XIII, os romances de cavalaria foram os
primeiros livros profanos cuja difusão marcou profundamente a vida das pessoas
comuns e não somente dos doutos.”
O romance de cavalaria, portanto, nos traz o fenômeno
literário como central, a imagem do livro como inauguração do romance moderno,
e Dom Quixote como a figura simbólica de um movimento na literatura que ganha o
contorno em que Cervantes abre um caminho, que para Quixote era a fantasia dos
livros de cavalaria no mundo real, e que para Cervantes era usar uma tradição
para fazer o novo romance surgir como a literatura nova que ganharia força nos
séculos seguintes. Cervantes como autor faz uma renovação a partir de uma
origem fictícia que também é um conteúdo de ficção, só sendo real para Quixote
e todos aqueles utópicos e visionários que foram adjetivados de quixotescos.
A ESTRUTURA DO
“ORLANDO”
Para Calvino “Orlando furioso é um poema que se recusa a
começar e se recusa a acabar”. Aqui temos que tal poema tem como origem outro
poema, é sua continuação, a do Orlando innamorato, de Matteo Maria Boiardo,
interrompido pela morte do autor. E o Orlando furioso, por sua vez, é um poema
que não acaba, pois seu autor, Ariosto, não para nunca de trabalhar dentro de
nós. Após sua primeira publicação em 1516, em quarenta cantos, Ariosto continua
seu aprimoramento, e que ganha outra versão nos chamados Cinque canti,
publicados postumamente, depois inserindo novos episódios nos cantos centrais,
de modo que na terceira e definitiva edição, que é de 1532, os cantos passaram
a ser 46.
E como retrata Calvino: “para chegar à primeira edição de
1516, Ariosto havia trabalhado doze anos e outros dezesseis sofre para publicar
a edição de 1532 e, no ano seguinte, morre. Essa dilatação a partir do
interior, fazendo proliferar episódios de episódios, criando novas simetrias e
novos contrastes, me parece que explica bem o método de construção de Ariosto;
e permanece para ele o verdadeiro modo de alargar esse poema de estrutura
policêntrica e sincrônica, cujas vicissitudes se difundem em todas as direções
e se bifurcam continuamente.”
Por conseguinte, quanto à forma, não temos uma definição
sintética do poema, pois sua geometria não é rígida, a fluência do poema tem
mais a ver com campos de força que interagem, num movimento que podemos chamar
de centrífugo, com o anúncio que se pode fazer do Orlando furioso como o poema
do movimento, no qual, como nos diz Calvino “o prazer da rapidez da ação se
mistura logo a um sentido de amplitude na disponibilidade do espaço e do tempo”,
no que podemos chamar de o movimento “errante” da poesia de Ariosto.
Tais características do “espaço” ariostesco está tanto na escala
do poema inteiro ou dos cantos singulares bem como numa escala menor, a da
estrofe ou do verso. E temos a oitava como a medida em que reconhecemos o estro
de Ariosto em atividade, e que, como nos diz Calvino “na estrofe de oito versos
Ariosto se vira como quer, está em casa, seu milagre é feito sobretudo de
desenvoltura.” E Calvino segue a sua análise, nos dizendo que quanto à oitava
de Ariosto, temos que: “uma estrofe que se presta a discursos também longos e a
alternar tons sublimes e líricos com tons prosaicos e jocosos; e uma intrínseca
ao modo de poetar de Ariosto, que não se tolhe com limites de nenhum gênero,
que não se propôs como Dante uma repartição rígida da matéria, nem uma regra de
simetria que o obrigasse a um número de cantos preestabelecido e a um número de
estrofes em cada canto.”
E temos que a característica da oitava ariostesca está numa
orientação poética pelo ritmo variado da linguagem falada, com ironia, de
registro coloquial, e que é um pêndulo que vai do lírico ao trágico e até ao
gnômico, isto tudo podendo estar numa mesma estrofe. E como nos diz Calvino,
ainda sobre a oitava: “Convém frisar que a própria estrutura da oitava se
baseia numa descontinuidade de ritmo: aos seis versos unidos por uma dupla de
rimas alternadas seguem-se dois versos com rimas emparelhadas, com um efeito
que hoje definiríamos como anticlímax, de brusca mudança não só rítmica mas de
clima psicológico e intelectual, do culto ao popular, do evocativo ao cômico.”
Ariosto, portanto, nos dá um poema com fluência e não com
unidade, como poderíamos esperar de um Dante, por exemplo, uma vez que a
estrutura de oitavas, como nos mostra o próprio Calvino, é uma forma literária
brusca, que termina emparelhada, e que tem fluência como quebra e como ruptura
tanto de forma como de conteúdo, no que Orlando furioso é um poema que se
comporta mais como um poliedro do que como uma geometria plana e definida como
previsível.
Até pelo fato de que Ariosto nos confunde com sua estrutura
que tende ao infinito, tanto nas suas origens em Orlando innamorato, como na
sua adição de cantos intermináveis, além de suas adaptações de estilo e
dimensões que torna o poema um enxerto em que cabe tudo, temos a ideia de um
poema completo que é na verdade uma estrutura que parece um tanto implodida por
suas características poliédricas em todos os sentidos da palavra. Ariosto quer
o poema total como um grande espaço repleto de campos de força, nos quais vemos
conflitos de forma, conteúdo e estilo, um poema completo no sentido de que
contém diversas tendências e orientações.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/33855/17/por-que-ler-os-classicosij-1
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