Geraldo Verón, artista plástico e de videoarte, era nascido no Rio de Janeiro, criado no Engenho de Dentro e depois foi para a Lapa, onde começou um curso de teatro livre, e depois começou a pintar e fazer esculturas. Logo alugou um casarão na Rua do Lavradio, junto com mais seis amigos, e ali foi fundado um ateliê de nome “Arte e Loucura”. Verón, no entanto, mesmo com seus trabalhos de pintura e escultura indo para a frente, virando seu nome comum na boca de galeristas cariocas e logo depois paulistas, continuava participando de intervenções que ele aprendera no teatro livre, e fazia parte de um coletivo de música, dança e teatro de rua, de nome “Borogodó”, que era inicialmente mal visto, cujo diretor de nome Benjamin Sâmio, que tivera boas montagens no palco italiano, e tinha feito alguns sucessos no teatro de circuito comercial, foi considerado alguém que tinha surtado ou entrado numa viagem de ácido quando montou o Teatro Total, com este conceito de teatro aberto, urbano, e de rua, e que agora se dividia em dois grupos, tanto o Borogodó, do qual participava Verón, como o Grupo Duelo, que também atuava na Lapa, Centro e arredores.
Verón estudava agora uma forma de unir o que conhecia de artes plásticas e aplicar isto ao teatro de rua e dentro das galerias ao mesmo tempo, num tipo de arte-teatro que ainda não tinha sido feito. Verón era filho de argentinos, o pai, que morrera há alguns anos, era nada convencional, um egresso da Argentina, e que foi trabalhar de comerciante e tocar cuíca no Estácio e na Cidade Nova e morar no Engenho de Dentro. Um argentino branco metido a sambista, com os pretos da Praça Onze, e que acabou sendo admitido por lá depois de passar no teste da cuíca. Ainda no tempo do Teatro Total, Verón foi da segunda turma montada pelo diretor Sâmio, e acabou sendo um bom ator de improviso, passou a declamar e também montar cenas pitorescas em que se usavam motes e o que se chamava de “clichês”, mas eram mais como disparadores de cenas, todos meio parecidos, mas que abriam os novelos da improvisação e do uso do corpo em cena, nas ruas e nas praças, e o som e o movimento do próprio corpo sendo estudados como este instrumento de teatro urbano e de intervenção.
Os estudos sobre as possibilidades de expressão corporal, da voz, como uma ressonância ambiental, coletiva, integrada ao que cerca aquele corpo, aquela voz, que colocava o ator ou atriz consciente de sua ação em seu meio, isso sendo mais importante do que o texto, isto na concepção aberta de Sâmio, ia contra a incorporação quase esquizofrênica do personagem feita pela orientação teatral de Stanislavski, por exemplo. O trabalho do som, de um ator/atriz capaz de expressão/expressividade e de captar a atenção eram fundamentais na arte da rua, de coletivos que faziam a arte da intervenção urbana e aberta, com público móvel e variado. A consciência de atuação ia então a favor de um distanciamento a princípio brechtiano, de apresentar o personagem tal qual, do espetáculo, já com a quarta parede demolida e o palco italiano derretido e o cenário simplificado e gerando a imaginação ativa para sugerir a cena e o texto, sendo a expressão de som e movimento, junto com a captação da atenção, os desideratos da atuação de rua, tendo como técnica mais formal, por sua vez, a coreografia, e isto na junção de atores e atrizes conscientes de seu corpo e voz coletivas, como num ditirambo em que entrava também a dança e a música.
Verón, então, levava suas atividades entre o Borogodó, vindo do Teatro Total, e seu trabalho no ateliê Arte e Loucura, e tinha como grande amigo e também compadre de ateliê Sávio Silveira, o Savinho, que fazia esculturas que eram uma espécie de barroco com arte popular, e umas pinturas naif com temas folclóricos e imaginativos. Savinho era gay e tinha fugido de casa com 17 anos depois de apanhar do pai e ter que tomar pontos na cara e na cabeça, ficou morando na rua durante seis anos, foi para um abrigo e fez um curso gratuito de confecção e depois de entalhamento em madeira, daí evoluindo como escultor, vendendo suas peças na Carioca e na Frei Caneca, e depois se juntando a outros artistas de rua e populares e conhecendo depois Verón e uma artista circense que passou a andar com eles de nome Fiona, nome de circo, pois se chamava Ivete Lima.
Outro camarada era o Gira, que tinha esse apelido vindo de sua prática como candomblecista, e fazia o que chamava de Arte Negra. Ele era escultor e fazia pinturas, e também começou no Teatro Total, na mesma segunda turma de Verón. Gira também fazia jogos de pegar otário na Carioca, em que ganhava uns trocados para almoçar e depois ia para um quitinete no Lavradio, vizinho do ateliê em que trabalhava, e também conseguia dinheiro quando participava de mostras nas galerias, mas ficava na Lapa, a maior parte do tempo, pois lá gastava pouco e vivia muito, como gostava de dizer. Gira se chamava Aílton Pereira, e tinha nascido no bairro do Cordovil, depois se mandando para a Lapa, para ficar no meio da malandragem e aprender truques para sobreviver.
Fiona, por sua vez, vinha da classe média alta e fez pano na Fundição Progresso e depois se especializou em circo, com acrobacia e elasticidade corporal no grupo Garcia. Fiona vivia para o circo, pois a família já tinha bens alugados, hotéis, pousadas e então ela pôde escolher livremente o que fazer da vida sem pensar no lado financeiro, que já estava resolvido. Mesmo tendo um apartamento na praia da Barra, ela também alugava outro na Rua do Riachuelo, pois durante a semana fazia atividades de rua e no Circo Garcia, e também viajava, às vezes, para se apresentar, e estava estudando práticas circenses para ser aprovada no Cirque de Soleil, seu grande objetivo, pois ainda estava com vinte e três anos e em grande forma física e fôlego. Fiona também fazia atuações no Borogodó, com danças e coreografias.
Benjamin Sâmio, por sua vez, aprofundava suas pesquisas sobre teatro de rua e dava muitas aulas e workshops, montando ainda muitas peças, dirigindo e produzindo, e também escrevia novas montagens, junto com outros autores-fazedores, nesta concepção de espetáculo que superava sempre a de peça e de texto, fundamento que sempre definia os rumos desta dramaturgia radical e gratuita, pois nunca tinha cobrança de ingressos, só contribuições espontâneas. A renda dos dois grupos ia para os próprios coletivos, que estava concentrada em duas contas em que havia o sustento tanto do Borogodó como do Grupo Duelo, este mais popularesco e herdeiro dos trejeitos da Commedia Dell`Arte e dos grupos itinerantes e mambembes, e com influências do Século de Ouro do Teatro Espanhol e dos Autos de Gil Vicente, tendo o Auto da Barca do Inferno sido uma vez montado numa praça na Lapa. O Borogodó, por sua vez, fazia experimentações diversas, como um laboratório da linguagem teatral e de seu diálogo com outras artes como as visuais, musicais e a dança, resgatando valores atávicos do ditirambo e do culto dionisíaco, das origens do teatro grego, e misturando a uma cultura de teatro de rua, popular, podendo montar clássicos repaginados, por exemplo, e também produções originais e contemporâneas, remodelando o tempo todo as propostas e os exercícios.
A renovação constante do que veio do chamado Teatro Total despertava em Verón já as suas próprias concepções, e isso agora se associava a experiências com psicodélicos e o consumo de cocaína. Em poucos meses, já em sua atuação como ator no Borogodó, ele amadureceu a primeira parte do que seria esta sua junção Arte-Teatro, e misturou uma concepção de performance, vinda das artes plásticas, com algo teatral, e que foi colocar dez pessoas vestidas em diversas cores, fazendo um movimento de redemoinho e passes elípticos, a mostra chamada “os astros pêndulo” terminaram com um ator fazendo um sketch sobre hipnose e chamando transeuntes para participar.
A segunda parte da ideia foi executada um mês depois e se chamou “libélulas”, em que homens vestidos de mulher circulavam entre espelhos e no final da performance aparecia um ator vestido de bruxa e se revoltava contra os espelhos, intervenção de nome “ego death”. Verón agora concebia a terceira parte das peças de performance que seriam o ato final desta ideia de giro e que seria a simulação do movimento circular e pendular das entidades de umbanda em torno de uma desobsessão. Os atores e atrizes aqui atuavam como médiuns/cavalos, fumavam charuto e bebiam sidra e cerveja, iam até o altar de Zé Pelintra, ao final, pedir a bênção e derramar álcool para o santo. Depois da parte do Zé Pelintra, a intervenção terminava simulando uma propaganda de cerveja, com uma atriz rebolando e falando “prazer”, “sexo”, “cerveja” e xingava um ator, enquanto este falava o texto decorado da propaganda, de “bundão”, “cafajeste”, “corno” e depois bebia uma lata de cerveja e beijava o tal ator na boca, encerrando a intervenção-performance.
O diretor Benjamin Sâmio aprovou toda a ideia que era um misto de performance e intervenção urbana teatral com textos esparsos, dança e música. Verón disse que estava desenvolvendo outro projeto no ateliê da Rua do Lavradio, e que seu reconhecimento como artista plástico iria crescer mais ainda, pois sabia que o chamado projeto era um choque a ser testado para ver o que aconteceria. Sâmio disse para Verón silenciar e não espalhar, pois quando algum projeto ganha potência demais, é hora de fazer na surdina e deixar o barulho para o momento de divulgação. Benjamin Sâmio foi então junto com Verón até o ateliê e saiu radiante, certo de que Verón era seu pupilo mais genial e que ficaria para trás, pois o que Sâmio tinha de empreendedor, Verón teria de disruptivo, revolucionário. Era a face do produtor e diretor que reconhecia o artista com todos os seus tiques, bênçãos e maldições, e que ele agora reconheceu na figura de Verón, depois da ida ao ateliê da Rua do Lavradio.
Verón e Gira, depois de uma visita a uma benzedeira no bairro da Penha, decidem ir para a Gamboa, lá encontram com bêbados e malandros, conseguem umas trouxas de maconha, uns pinos de coca, e um LSD de gel, então fumam e cheiram tudo, bebem cerveja por horas, shots eventuais de cachaça, e amanhecendo decidem dividir o gel, que sabiam que era bem forte, e que Verón lembrava de ter tomado quando era bem jovem, numa viagem para Mauá. O negócio bate forte e eles vão parar no porto, ficam zanzando perto dos armazéns e tendo visões. Gira diz que tinha um dos navios apitando, e que parecia estar entrando na pista dos carros, Verón tem um acesso hilariante, e olha para a cara de Gira e começa a rir. Gira começa a achar que tava maluco, que o tal navio estava navegando na pista, que ia entrar no bairro etc. Enquanto isso, a cada vez que Verón olhava para a cara de Gira tinha um acesso de riso. Eles ficam nessa até o meio-dia, quando a onda do gel começa a baixar e vão dormir na casa de uma amiga de Gira que morava na entrada do Morro da Providência.
De noite, acabam jantando na casa desta amiga, com Fiona chegando lá de convidada, pois também conhecia a anfitriã, e ri da tal história dos armazéns, dizendo que queria ter estado lá, mas não ficou sabendo o que eles estavam aprontando naquela noite e acabou indo para uma boate de playba no alto do Joá, ficou com um boy lixo para se divertir e depois de três horas nunca mais viu o cara na vida. Foi dormir na casa de uma amiga lá perto, no Joá, e de manhã foi fazer exercícios de tecido e de saltos na Fundição Progresso, recebendo o recado de Mirna, a dona da casa no Morro da Providência, para vir jantar com os amigos, que Gira e Verón estavam na casa dela. Depois da janta, os três seguem para a Lapa.
Passam-se três dias e um fato estranho começa, pois Savinho não dava notícias há quatro dias, desde que numa noite foi visto vendendo esculturas e artesanato no Largo da Carioca. Foi quando Verón atinou e avisou Sâmio, que tinha um amigo delegado e que atuava na região da Carioca e da Uruguaiana. Depois de uma semana de investigação, dois moleques meio enrolados, evasivos e complicados acabaram falando que tinha rolado “uma parada” na Frei Caneca, e que dois caras bateram no tal artesão com “cara de fraquinho”, que parecia um “zé ruela”. Depois não souberam dizer, disseram que só lembraram disso. A polícia civil confirmou o mesmo enredo com uma comerciante e um dono de banca de jornal e tentou a descrição dos dois elementos, a câmera da rua registrou o momento em que um cara se aproximou do artesão, depois a câmera apaga, fica com rabiscos, e quando volta a imagem, já não tinha mais ninguém.
Depois de dois dias surge uma nova testemunha, que era Robertão, dono de bar na Frei Caneca, que afirmou categoricamente que o bichinha dos cacarecos tava com dívida com agiotas, e foram cobrar a paga. Robertão disse que o bichinha apanhou feio e foi levado pelos cabelos e pela cabeça até dentro de um opala todo fudido, marrom claro, e o carro saiu em disparada, depois não disse nada, pois preferia se calar, mas o delegado convenceu Robertão, que ele tinha proteção garantida, que sua denúncia ficaria no anonimato, e os caras eram, portanto, um agiota de nome Everaldo e outro de nome Zequinha, e que viviam assacando trabalhadores nos arredores, e tinham relação com o jogo de bicho, pois Zequinha também era apontador do jogo de bicho numa das esquinas da Frei Caneca.
Agora o trabalho era ver as câmeras da cidade para acompanhar a trajetória do opala, ele zune pela Rio Branco, pega o Aterro do Flamengo e segue até o Recreio dos Bandeirantes, onde finalmente some da captação da central da prefeitura, pois ali havia locais incógnitos. Mas já se sabia que a placa do carro era clonada, e num cruzamento de informações se descobriu o endereço de Zequinha, que morava na Rio das Pedras, e de Everaldo, que morava na Gardênia Azul. Os dois não foram achados em suas casas, e passaram a ficar como procurados e foragidos. Enquanto isso, uma força tarefa procurava por notícias de Savinho, para saber se estava vivo ou morto. Depois de seis meses de investigações, uma arcada dentária foi encontrada na Baía de Sepetiba e foi identificada como de Savinho, sendo depois encontrado seus restos mortais dentro da baía, e uma carcaça de opala queimada tinha sido encontrada numa região perto da Praia da Macumba, mas não se sabia se era do mesmo opala de placa clonada dos meliantes, mas que tinha gotas de sangue seca. Depois de um exame científico se confirmou ser do DNA de Savinho, pois uma amostra de um pedaço de estofado que não tinha pegado fogo deu para examinar em condições ideais e não se teve mais dúvida, agora era ir à caça dos fugitivos. Depois de dois meses, finalmente, Everaldo foi preso, estando na casa de uma namorada na Costa Verde, e se descobriu que Zequinha tinha sido executado pelo tráfico, pois a polícia civil tinha dado uma incerta perto de uma boca e quase que a casa cai por causa das “alopragem” de agiota de Zequinha, pois a civil veio atrás dele.
Verón, Gira e Fiona comemoram, junto com Sâmio, a solução do caso, e haveria um evento juntando os grupos Duelo e Borogodó para homenagear Savinho. Uma festa com muita cerveja, foi montado um espetáculo escrito por Sâmio, e que tinha dança e música e que terminava num grande ditirambo dionisíaco. Fiona consegue fazer um número circense de equilíbrio e disse que em duas semanas viajaria para a França para fazer um teste no Cirque Du Soleil, que era seu objetivo de vida principal. Fiona passa no teste e teria que se mudar para Paris o mais rápido possível, e então organiza uma festa na Lapa, em que se mistura suas amizades da alta sociedade e o pessoal da boêmia da Lapa, em que se juntava o pessoal do teatro e uns malandros bêbados de quem Fiona tinha feito também amizade, pois se misturava com todo mundo e mais um pouco. No final faz um discurso e chora, mas disse que estava prestes a realizar um sonho e que com sonho não se brinca. Pega um avião e aluga um apartamento perto da Gare Du Nord, para ficar perto do trem.
Sâmio faz uma visita ao novo ateliê de Verón, um que ele era solo, que não era mais dividido com outros artistas, e ali consegue vislumbrar a usina de experiências que Verón estava gerando. O novo ateliê que ficava numa grande sala comercial do centro, já depois da Lapa, acima de um teatro médio, e o acesso ao ateliê era restrito, só Verón e o zelador da edificação tinham as chaves. Sâmio teve acesso, pois Verón considerava o diretor e produtor teatral como um mestre seu, até um segundo pai, e queria sua posição sobre o que estava produzindo, pois sabia que tinha dado um salto enorme desde a trilogia que tinha sido apresentada na Lapa, ainda com os recursos do teatro de rua. Sâmio apenas diz para que Verón continuasse, pois aquilo era História.
Sâmio, junto ao grupo Duelo, desta vez monta Ubu Rei, de Alfred Jerry, como uma intervenção urbana e política. O agito se dá até meia-noite, na Lapa, em que a montagem vira uma festa ditirâmbica, contudo, policiais aparecem e começam a dar dura em alguns espectadores, um transeunte protesta, e tem uma confusão, com três moleques de rua e uma travesti sendo levados, sob os apupos do público e dos atores e atrizes, e gritos de “fascistas etc”. Um sargento coloca sua equipe para acabar com o evento, e quase que Sâmio leva uma cacetada, passando raspando pela sua orelha direita. A montagem é dispersada e Sâmio, que tinha autorização da prefeitura para a montagem, pois não era nenhuma idiota, denuncia os policiais envolvidos no incidente, que acabam passando por um processo administrativo que não dá em nada.
Enquanto o tal projeto de Verón ficava quase pronto em seu ateliê solo, ele curtia bem a boêmia da Lapa e da Gamboa, e estava saindo com malandros do submundo, e muitas vezes ia com o Gira para flanar tanto pela Lapa como pela Gamboa. Numa noite, depois de muita cerveja e cocaína, rola o tal LSD de gel, que um cara arrumava, mais uma vez, lá pelas bandas do bairro da Saúde, e desta vez Verón e Gira, cada um toma um gel inteiro, sem dividir. O negócio começa a bater três da manhã. Eles zanzam pelas ruas, Gira começa a dar gritos e delirar, Verón tem crises de riso e visões de gatos pulando dos prédios. Gira começa a ter visões dantescas e entra numa bad trip. Verón, alheio ao que rolava, continuava tendo seus acessos de riso, e Gira deita numa esquina da Gamboa e dorme no chão, delirando, achando que ia morrer. Verón, viajando intensamente, não se dá conta e esquece de Gira, vai até seu ateliê, já às oito da manhã, para trabalhar, ainda viajando de gel, e depois fuma um cigarro e dorme.
Gira é acordado por um comerciante local da Gamboa, às sete da manhã, e o tal comerciante vê que Gira não estava bem, pois não falava coisa com coisa, embaralhava a conversa e nada fazia sentido, e tinha um papo mágico, de visões etc, que faz com que o comerciante chame o Samu para levar Gira para um exame etc. Gira estava em surto, a viagem do gel detonara um surto psicótico em Gira, ele é examinado por um psicólogo e é encaminhado para uma internação no Capes, seu primo Ataíde é que fica sabendo do paradeiro de Gira somente três dias depois da noite na Gamboa, pois tinha falado com Gira naquela noite, e logo concluiu : “Ele estava com aquela porra do Verón, puta que pariu!”.
Ataíde chama dois amigos, ele morava no Morro da Providência, para “pegar o Verón etc”, Sâmio fica sabendo da movimentação, e sabe-se lá como, deu um jeito na situação, dizendo que Verón era assunto dele etc. Ataíde controla a raiva e acaba dissuadido, pois Sâmio afirma que aquilo tudo ia piorar se tivesse polícia e que era para Ataíde tomar conta de Gira e sair de confusão. Ataíde, que conhecia Sâmio desde criança, acaba ouvindo os conselhos do “tio Sâmio”.
Depois de segurar a onda do Ataíde, que decidiu, a pedido de Sâmio, não arrumar treta, mas não queria mais ver e nem falar com Verón, Sâmio foi falar com Verón e avisou que se ele continuasse misturando sua vida artística com aquela loucura toda da noite, que seria uma pena, pois ele perderia um gênio. Verón tremeu nas bases, mas achou que aquilo era uma idealização de Sâmio, e que tinha um caminho longo pela frente, e que sua arte estava prestes a bombar nos holofotes de galeristas, e que ele poderia cheirar meio mundo com a grana que iria ganhar. Verón parecia não perceber o estágio em que já estava, pois apresentava uma resistência ao consumo de substâncias, mas o que Sâmio quis dizer que aquilo tudo era uma bomba relógio, que funciona em silêncio até explodir.
Um pouco depois daquela conversa, as coisas mudam, e Verón se afasta do grupo de teatro e também de Sâmio, começa a sair para boates e lugares mal frequentados, também acaba se afastando de muitos dos amigos que conhecia do teatro de rua e se junta a uma turma de artistas e um marchand que tinham uma aura sinistra e parecia que Verón entrava num novo mundo autodestrutivo fingindo riqueza e controle, pois o modus operandi daquele grupo de afetados era de algo clean, quase asséptico, mas por trás de tudo havia um consumo industrial, sobretudo de cocaína. O modo com que conversavam entre si, era tudo muito diferente, distante e afetado, e Verón, talvez pelo consumo desvairado de pó, também já tinha mudado muito, tornando sua rotina uma coisa fria, intensa artisticamente, mas com a emoção de um estenógrafo ao lidar com familiares e amigos antigos, e ficando na maior parte do tempo sem dar notícias.
Verón armava seu trabalho em seu ateliê individual (também havia deixado a produção coletiva em artes plásticas da Rua do Lavradio), e tinha a ideia de fazer uma grande exposição dinâmica, e que na sua cabeça era uma mistura de arte e temas literários e a apologia da cocaína, algo polêmico, mas que na sua concepção era algo disruptivo, radical, revolucionário, e uma associação com cosmologia, cosmogonia, ego, morte do ego, overdose, exemplos da “interpretação dos sonhos” de Sigmund Freud, e mais o tema da extinção do tráfico de drogas e da liberdade do corpo e da liberdade química. Verón sabia que fazia algo grande, com extensão e conteúdo, e também sabia que era uma faca de dois gumes, e sentia cheiro de problema, mas talvez fosse polêmica e problema o seu objetivo.
Sâmio consegue o contato de Verón depois de muito tempo, encontra o artista junto ao marchand daquela galera esquisita com quem andava agora num restaurante bem caro, cheio de ostentação, acha aquilo estranho e viu como as coisas tinham mudado. Não gosta do que vê, nem da conversa, e enfim desiste de Verón, percebe que já não fazia parte daquilo, que Verón tinha ido para um outro mundo, e era algo esquisito, bem coisa própria do pó e de suas sugestões, coisa que Sâmio sabia por ter usado a droga ligeiramente. Ele sabia que Verón estava encrencado, mal acompanhado, apesar de ser também uma má companhia para algumas pessoas, e caiu fora daquilo.
Neste ponto, falando nisso, Gira agora tinha saído da internação, mas estava morando com a mãe e a avó, acomodado, sem fazer porra nenhuma, e fumando um cigarro atrás do outro e tomando medicações para se manter sóbrio. Estava levando uma vida pacata e controlada, mas no sentido de uma vida pálida, se fechando num casulo, e consumindo ao menos quatro maços de cigarro por dia. Gira estava irreconhecível, tinha desaparecido, era alguém mudo a maior parte do tempo, tendo vezes que murmurava alguma coisa e acendia um cigarro, ficando no quintal de casa ou vendo televisão meio que aleatoriamente, sem conexão com o que passava na TV.
Verón ficou sabendo, depois de muito tempo, da situação de Gira, mas não sentiu quase nada, estava muito ocupado com seu projeto, e tinha o planejamento de um duplo lançamento, um primeiro, menor, e um segundo, depois de um mês, que seria o projeto principal. A vida noturna continuava intensa, e em meio a esta galera esquisita, que envolvia Verón em descaminhos cada vez maiores e mais insustentáveis, ele também gastava tudo em pó e putaria, voltava de manhã para o seu ateliê, e praticamente não mais dormia, só tirava uns cochilos, estava ficando com a cara emaciada, a pele fina e branca, os olhos não expressavam nada além de uma constante névoa de ressaca de bebida e cocaína, e suas emoções pareciam aplainadas, assim como sinais de afeto. O aviso de Sâmio vazou pelos ouvidos e nada causou, o caminho era cada vez mais tortuoso e vertiginoso, em meio às produções insanas de um artista workaholic e genial.
Sâmio aparece mais uma vez, perto da Gamboa, onde sabia que Verón tinha um contato que era um mala que fazia corre e morava em Parada de Lucas, e ficou de propósito na esquina vendo o pessoal ali, a galera que estava com Verón, e depois a negociação entre Verón e o tal mala. Sâmio tentava descobrir se um boato que ouviu de um ator do Borogodó era verdade, que na verdade o negócio era pior do que parecia, pois este ator sabia de um pessoal que estava vendendo armas e drogas, e ainda tinha um esquema de roubo de carga. Estranho foi que Sâmio ficou sabendo que Verón agora morava numa casa num condomínio da Barra, depois de sempre ter morado pela Lapa e arredores.
Sâmio, depois que a tal “conversa” entre Verón e o tal mala acabou, foi atrás de Verón, o abordou, e foi fazendo perguntas sucessivas, Verón era evasivo, muitas vezes cínico, e tentava cortar a conversa fazendo perguntas sobre o teatro de rua, como o pessoal estava, de que “não teve mais tempo de ir ver as peças etc”, mas Sâmio fez investidas até finalmente prensar Verón e inquirir sobre histórias de criminalidade, como é que tava a vida, e a noite etc. Verón começa a ficar incomodado e disse para Sâmio sumir, pois não queria envolvê-lo no corre, sabia de coisas, acabou admitindo, e por isso falou para Sâmio sair dali, pois tava começando a dar bandeira. Sâmio insiste, fala para Verón abrir o jogo, ele fala pouco para Sâmio, resiste, e ao fim consegue que Sâmio vá embora.
Passam-se dois meses e Verón, junto com um galerista de renome, começa a primeira parte de sua exposição individual, pois tinha assinado um contrato com uma galeria de renome internacional, e seu nome já circulava pela França e Alemanha, já tinha feito viagens esporádicas, expôs junto a outros artistas em coletivas e planejava uma individual em Paris e depois na Inglaterra, já com a grife da galeria da qual agora era contratado. A primeira parte, chamada “romance com cocaína” é lançada no Rio de Janeiro, depois vai para São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e depois Belo Horizonte, um mês depois sai a segunda parte, chamada de “Cosmococa”, que faz o mesmo tour, e depois tanto “romance com cocaína” como “cosmococa” vão para a França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha e Suécia. Verón ganha uma fortuna, sobretudo da Sotheby's, e ainda uma bolsa em que fica dois meses num laboratório de artes em Paris.
Romance com cocaína relacionada artes plásticas com literatura e o tema sobre a droga dos andes, desde o chá de coca até a sua versão sintética, e cosmococa era um poliedro químico que misturava uma concepção cosmológica própria e o tema da cocaína, e na montagem dos materiais se encontrava a própria substância. Foram feitas denúncias sobre uso de drogas e apologia durante as montagens de “cosmococa”, bem mais explícitas e literais que a do “romance com cocaína”, só que um marchand experiente, a curadoria e a galeria que contratou Verón conseguiram blindá-lo. Claro que esta blindagem começou a criar fissuras, pois a autopromoção maníaca de Verón começava a colocar toda aquela orgia na cara de todo mundo, como uma espécie de porra louca que veio para “epatér la bourgeoisie”.
Fiona encontra Verón num bistrô de Paris numa tarde, no período em que ele fez o tal laboratório de artes plásticas, e teve uma impressão péssima, parecia estar conversando com outra pessoa, que não era a do teatro de rua, Verón parecia frio, sempre estava maquinando, calculando, muitas vezes tinha que atender seu celular e falar como se tivesse usando códigos e escamoteando tudo. Fiona, que tinha sido muito amiga de Verón, sobretudo na época das montagens do Borogodó, depois de duas horas, cafezinho, croissant etc, decide encerrar a conversa e sair dali. Verón não liga muito, e continua a sua saga autodestrutiva.
De volta ao Brasil, a tour continuaria para mais uma montagem no Rio de Janeiro, no Riocentro, das duas partes da série de forma simultânea. Em meio ao evento, uma movimentação estranha começa, e alguém denuncia a montagem “cosmococa” anonimamente dizendo que lá, nos camarins, estava tendo “orgias de sexo e de drogas”. Tal denúncia, por sua vez, ia ao encontro de uma investigação que já durava sete meses sobre um grupo de galeristas, um marchand e alguns artistas que atuavam com tráfico de drogas e de armas e roubo de cargas, pois se tratava de uma organização criminosa que lavava dinheiro do crime com as montagens de exposições e divulgações de arte, tudo pelos registros de nomes de galerias falsas, pois a galeria que contratara Verón, por exemplo, sequer imaginava que havia lavagem de dinheiro nas montagens de “romance com cocaína” e “cosmococa”, uma vez que Verón tinha enganado o galerista francês que o contratou, dizendo que 50% do lucro das exposições iriam para três galeristas menores do Rio de Janeiro, com os quais tinha “uma dívida de gratidão etc”.
No final do horário programado das montagens simultâneas, a Polícia Federal entra na exposição “cosmococa” com um mandado de prisão contra Verón, e junto ao artista plástico, mais onze pessoas são apreendidas para averiguação, e é apreendida uma quantidade razoável de maconha e cocaína. Verón é preso por crime de tráfico de drogas, especialmente cocaína, tráfico de armas, mas sem ligação com a parte da quadrilha que fazia roubo de cargas que, no caso, as prisões efetuadas envolviam desde o tal marchand, como toda a patota que Verón frequentou nos últimos anos. Sâmio fica sabendo de tudo, e que Verón pegaria uma cana de dez anos, em regime fechado, sem chance de relaxamento, pois teria que cumprir a reclusão na íntegra.
Sâmio encontra Verón depois de dois meses que o artista estava preso, e confirma com ele que “você lembra do que falei, que ia perder um gênio, você não ligou, foi fazer isso daí, esta merda toda, eu te falei, você jogou pela janela seu dom, eu queria ter isto que você tem, mas muitas vezes a natureza gosta é de desperdiçar, eu nunca vou conseguir fazer o que você faz, sou um homem do teatro, mas nunca tive esta aura, que sei que você tem, mas, esse pessoal é foda, você não foi o primeiro e nem será o último, é que nem pegar um tesouro e queimar, e você queimou tudo, o fato é que eu tinha medo, mas aconteceu, eu perdi um gênio”.
Conto pronto em 09/10/2024
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
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