PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

ELON MUSK E O TWITTER - PARTE 7

 “O lítio é fundamental na produção dos carros elétricos da Tesla”

Elon Musk, em relação ao X (antigo Twitter), não tem como prática usual ficar arrumando problemas diplomáticos, e muitas vezes para acomodar interesses, e alcançar o ingresso de suas empresas em outros países, deixa de lado seu ativismo de extrema direita, ao se adaptar a marcos regulatórios de diversos destes países. 

Na Índia, mesmo com Elon Musk se posicionando contra decisões judiciais do país, este que é comandado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, que é do partido de extrema direita Bharatiya Janata Party, há mais de uma década, teve que acatar tudo, pois existem interesses, por exemplo, de investimentos da ordem de US$ 3 bilhões em fábricas da Tesla, na luta contra a concorrência da chinesa BYD na região, envolvendo o mercado de carros elétricos.

No Brasil, a escalada de Elon Musk sobre o STF e seu confronto com o ministro Alexandre de Moraes teve, por conseguinte, também interesses de ordem empresarial, muito para além de seu extremismo político ou intransigência quanto a uma noção peculiar de liberdade de expressão, cultivada por um libertarianismo disruptivo e que atua por mecanismos infantilizados de cizânia memética e instrumentos de manipulação e desinformação completamente desabridos. Por sua vez, o interesse de Musk também passava por uma estratégia comercial de seu conglomerado, que inclui a SpaceX, a Starlink e a Tesla.  

Elon Musk tem interesse em comprar a Sigma Lithium, uma das maiores mineradoras de lítio do mundo. O lítio é fundamental na produção dos carros elétricos da Tesla. No Brasil, por sua vez, a principal fornecedora de lítio e níquel para a Tesla, por sua vez, é a Vale. 2022 foi um dos momentos mais estratégicos na produção de lítio brasileiro, e foi quando Elon Musk veio ao Brasil para lançar, oficialmente, a sua internet por satélite, a Starlink.

O lítio é o metal mais leve que existe e passou a ser chamado de “petróleo branco”, se tornando essencial na produção de baterias, carros elétricos, e na estrutura para a produção de energia solar e eólica. A América do Sul, contando somente Argentina, Bolívia e Chile, concentra 68% das reservas mundiais do metal.

O Serviço Geológico brasileiro, nos últimos tempos, descobriu várias reservas de lítio, se concentrando principalmente no Vale do Jequitinhonha, no norte de Minas Gerais, região esta que se tornou objeto de exploração de três empresas, que são a Companhia Brasileira de Lítio, AMG Mineração e a canadense Sigma. 

A Companhia Brasileira de Lítio era a única nacional, cuja empresa parceira, a Oxys Energy, faliu em 2021, e o governo de Minas Gerais vendeu parte da estatal à britânica Ore Investimentos. E agora, segundo o Observatório da Mineração, empresas como a Latin Resources, Lithium Ionic e Atlas Lithium, estão sondando a região na busca de novas reservas de lítio. 

A Sigma, que foi fundada em 2011, anunciou em 2023 que estava negociando com potenciais compradores e, logo a seguir, as negociações com Elon Musk não foram adiante, ao passo que a chinesa BYD começou a negociar a compra da Sigma, com preço avaliado em R$14,3 bilhões. O Brasil, na guerra comercial entre Tesla e BYD, virou um centro da estratégia global de investimentos da empresa chinesa, chegando a comprar, recentemente, a fábrica da Ford, em Camaçari, na Bahia.

No cenário global, por sua vez, a Tesla vem perdendo terreno para a BYD, que a partir de 2023 ultrapassou as vendas da empresa de Elon Musk, fazendo com que o CEO da Tesla cobrasse do governo norte-americano a implementação de medidas protecionistas, com medidas como a criação de barreiras tarifárias para a chinesa BYD.

Logo após as afrontas de Elon Musk contra o ministro Alexandre de Moraes, o CEO começou a seguir Nicolai Tangen, um poderoso investidor norueguês, sendo este CEO do Norges Bank Investment, que se trata de um fundo de investimentos que tem negócios em várias partes do planeta, dando prioridade à área de mineração. Elon Musk chegou a ter uma live no X com Nicolai Tangen. 

Para se ter uma ideia, o Norges Bank Investment, em 2023, tinha investimentos em mais de 8 mil empresas, abrangendo 72 países, sendo dono de pouco mais de 1 % da Petrobras, 3 % da Cosan e 5 % da construtora Tenda, dentre outras empresas brasileiras, com investimentos na canadense Sigma, na anglo-australiana Rio Tinto e na metalúrgica holandesa AMG. Foi quando os interesses de Elon Musk e do CEO do Norges Bank confluíram.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : https://www.seculodiario.com.br/colunas/elon-musk-e-o-twitter-parte-7/ 


POEMA REVERENCIAL

Te dedico meus textículos, meu tesão e meu orgasmo.

Nestes versos maltrapilhos, em cartas esparsas,

vertida toda clitóris de vestal, no vendaval,

e o magma que expande seu enigma.


Pois, ao sol, no meio da praia,

sou o clímax que revira os olhos,

neste navio de carranca

que espanta o

mau olhado.


14/11/2024 Monster

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

ELON MUSK E O TWITTER - PARTE 6

“o Twitter Files se tratou de um relatório para manipular a opinião pública”


O Twitter Files representou uma forma midiática de divulgação de material enviesado, em que a justiça brasileira passou a ser colocada em dúvida, na pretensão de tais arquivos apresentá-la como uma instituição de poder autoritária do país. E o que tivemos foi um vale tudo em que se recorria até à defesa de grupos neonazistas, golpistas, tendo grupos organizados atuando, tal como o Era Fascista, que foi um dos canais no Telegram suspensos pelo ministro Alexandre de Moraes. 

Tomando como alvo decisões judiciais, o Twitter Files se tratou de um relatório para manipular a opinião pública. As primeiras oito páginas do relatório, por exemplo, funcionam como um panfleto confeccionado por um comitê de maioria republicana. É pretensamente revelado um cenário de censura no Brasil, em que este viés do Twitter Files teria como fito o de atacar Joe Biden, que ainda era concorrente à reeleição como presidente dos Estados Unidos, numa disputa contra Donald Trump, que tentava voltar ao poder.

O título do relatório, resultado da entrega de documentos pela rede social X, de Elon Musk, é o seguinte : “O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”. Um dos objetivos relatados, por sua vez, é o de retorno dos deputados trumpistas ao poder. “O Congresso deve levar a sério os alertas do Brasil e de outros países que buscam suprimir a liberdade de expressão online. Nunca devemos pensar que isso não pode acontecer aqui”. O comitê tem como presidente o republicano Jim Jordan, um dos maiores expoentes da extrema direita nos Estados Unidos.

O texto de Jim Jordan, contudo, é uma distorção dos documentos já enviesados vazados por Elon Musk. O que se lê não possui uma metodologia, e as conclusões, portanto, são forçadas. Existe uma total ignorância das bases legais e constitucionais que orientam as medidas adotadas tanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no combate contra a desinformação e pela proteção do regime democrático, sobretudo no período de iminência da tentativa de golpe que se daria após as eleições de Lula no Brasil.

O Twitter Files é uma versão compilada e enviesada em que são tomadas 88 decisões da Justiça brasileira em forma compacta e simplista, criando um relatório que faz entender que todas estas medidas foram tomadas pelo ministro Alexandre de Moraes, e que todas, igualmente, foram medidas tomadas de modo autoritário, com o fito de censura injustificada, ignorando os contextos dos casos. 

É algo estarrecedor colocar todas estas medidas como censura, uma vez que muito do que foi debelado pela Justiça, nestes casos, envolvia o contexto de incitação a golpe de Estado, e que é crime penal na Constituição Federal. O relatório, além de acusar toda e qualquer medida como censura, mais uma vez sob a égide de uma versão alucinada de liberdade de expressão com paralelo, quando muito, somente nos Estados Unidos, tenta naturalizar as ações realizadas no dia 8 de janeiro, e minimiza a tentativa de golpe de Estado.

Além desta completa desconexão com a realidade política e jurídica do Brasil, o comitê republicano se alinha com o que há de pior na extrema direita aqui do país, e que resulta num relatório que ignora outras questões graves enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como o neonazismo, em que um dos bloqueios determinados pelo ministro Alexandre de Moraes incluiu o já citado acima Era Fascista, no Telegram.

No caso de grupos neonazistas e outros grupos extremistas que foram monitorados, tivemos planejamentos de ações de doxxing, por exemplo, contra o ministro Alexandre de Moraes, o que se traduz como uma ação coletiva coordenada de assédio online direcionada contra uma única pessoa ou perfil, o que é crime. As ordens sob sigilo, que são objeto de questionamento por parte de bolsonaristas, por sua vez, são medidas comuns no cotidiano da justiça criminal tanto no Brasil como em outros países de regime democrático, o que nos Estados Unidos é conhecido como “law enforcement”.

Isto revela, portanto, o aspecto grotesco deste relatório, que se trata de um documento enviesado, só que de modo mal ajambrado, sem fundamentação, um compilado grosseiro de teses pré-fabricadas, e que tem como fonte principal links do perfil no twitter de Jim Jordan, numa tentativa descarada, embora anódina, de manipulação política. 

Para resumir um pouco as ações em torno do Twitter Files, tal se tratou de uma ação coordenada em que o relatório divulgado mostra advogados da empresa reclamando de ordens judiciais de Alexandre de Moraes, em que se determinava o bloqueio de contas envolvidas nas manifestações golpistas de 8 de janeiro, o que foi seguido de um apito de cachorro de Elon Musk, em que um tuíte dele mobilizava bolsonaristas contra as tais medidas de censura.

Logo se armou um circo em que se reuniram lideranças bolsonaristas como Jair Bolsonaro, seu filho Eduardo Bolsonaro, o Bananinha, que fizeram uma live, ao passo que em outra live tivemos a presença de Nikolas Ferreira, o Chupetinha, além de Paulo Figueiredo e o famigerado Allan dos Santos, um dos confessores do Pateta em Orlando, e que se encontrava banido. 

E então se iniciou o conflito entre Elon Musk e Alexandre de Moraes, em que o CEO usou a sua rede para contrariar uma ordem judicial do Supremo Tribunal Federal (STF), o que é ilegal, pedindo o impeachment do ministro. Com isso, a extrema direita se mobilizou, e o ministro Alexandre de Moraes acabou incluindo Elon Musk no extenso inquérito das milícias digitais. 

(continua)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/colunas/elon-musk-e-o-twitter-parte-6/

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

ELON MUSK E O TWITTER - PARTE 5

“Elon Musk começou a exercer uma tensão do X/Twitter contra o STF e o TSE”


O embate de Elon Musk com as instituições brasileiras teve como principal motivador a história que ficou conhecida como a do “Twitter Files Brazil”. O fato se deu quando um grupo de deputados federais de extrema-direita nos Estados Unidos  publicou um relatório em que estavam descritas várias decisões judiciais sigilosas, e isto envolvendo o STF (Supremo Tribunal Federal) e o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), tudo relacionado com plataformas digitais, englobando o período que ia de 2020 até 2024, e que se referiam a punições e suspensões de perfis.

Este relatório foi publicado pelo comitê da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, com a liderança de Jim Jordan, junto a maioria republicana, um extremista que apoiou o discurso trumpista de fraude eleitoral no país, e que nunca foi provado. Como era previsível, novamente se discutia a liberdade de expressão e supostas ações de censura jurídica contra o X/Twitter por autoridades do Brasil.

As penalidades contidas no relatório se referem, sobretudo, a contas que apoiaram ou estimularam  a insurreição de 8 de janeiro de 2023, em Brasília, responsável pelo vandalismo e depredação contra os Três Poderes, isto é, Congresso, Supremo e a sede da Presidência da República. 

Um dos alvos nesta divulgação é o ministro do STF Alexandre de Moraes, pois o relatório contém 51 decisões judiciais, muitas destas marcadas como sigilosas, que foram emitidas pelo ministro, e que citam X/Twitter, Meta (dona do Facebook e do Instagram), YouTube, TikTok, Telegram, Discord, LinkedIn, além das redes conservadoras Rumble e Gettr. E ainda temos, no mesmo relatório, mais 37 decisões do Tribunal Superior Eleitoral, que à época ainda tinha Alexandre de Moraes como presidente.

A partir da publicação dos chamados Twitter Files Brazil, Elon Musk começou a exercer uma tensão do X/Twitter contra o STF e o TSE. O jornalista ativista norte-americano Michael Shellenberger publicou tuítes com a versão brasileira do Twitter Files. 

O material recente, por exemplo, já mostra comunicações do ex-diretor jurídico do X/Twitter no Brasil, Rafael Batista, desde 2020, em que ele discutia a respeito de solicitações sobre dados pessoais de usuários vindas de autoridades do judiciário, do legislativo e do Ministério Público, enquadrando, entre estes, políticos bolsonaristas e apoiadores, com possíveis consequências em caso de descumprimento de ordens judiciais.

O elenco predominante de perfis notificados era de bolsonaristas que se engajaram nas campanhas de calúnias contra o sistema eleitoral brasileiro, culminando em atos como a tentativa de explodir o aeroporto de Brasília. 

Além disso, militantes se mobilizaram em torno de quartéis, em rodovias, com atos anti-democráticos, em que o clímax foi a invasão e vandalismo dos edifícios públicos dos Três Poderes. Por sua vez, o que se tentava questionar, partindo do Twitter Files, era o excesso de solicitações judiciais sem respaldo legal. 

O Twitter Files, por sua vez, mobilizou bolsonaristas e a extrema-direita, ainda com a mal digerida derrota de Jair Bolsonaro nas urnas. Em seguida, Elon Musk afirmou que removeria todas as restrições feitas sobre perfis que receberam ordem judicial, o que fez com que Elon Musk entrasse em choque com o ministro Alexandre de Moraes. 

Shellenberger, um agitador, mais ativista que jornalista, disse que Musk, ao retirar as restrições de perfis com ordens judiciais, poderia provocar a retirada do ar do X/Twitter no Brasil a qualquer momento. O ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, incluiu Musk no inquérito das milícias digitais, alegando que o CEO fez campanhas de desinformação sobre as ações do STF e do TSE e instigou ações de desobediência e obstrução à Justiça.

A reação institucional brasileira, por sua vez, partiu do princípio de soberania, ou seja, de que o país jamais seria tutelado pelas plataformas digitais e por big techs, sendo um país democrático, com uma Constituição Federal e um sistema de Justiça independente, com imprensa livre, instituições autônomas e liberdade de expressão, demandou uma ação forte e efetiva em relação a intromissões de poderes financeiros irresponsáveis e prepotentes. Com isto, entrou na pauta a necessidade de uma nova regulamentação para as redes sociais, diferente do Marco Civil da Internet.

Por fim, o Estado de Direito não pode ser violado por redes sociais comandadas por bilionários com domicílio no exterior, com descumprimento de ordens judiciais e ameaças a autoridades. Portanto, houve reação, que começou com pedidos de informações à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) sobre qual procedimento adotar para retirar o X/Twitter do ar no país. A partir daí, a Anatel deixou as operadoras de telefonias de prontidão para a retirada do X do ar.

O ministro do STF Barroso, por sua vez, levantou o fato da instrumentalização das redes sociais durante os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, afirmando que todas as empresas que operam no Brasil  estão sujeitas à Constituição Federal. 

(continua)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

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quarta-feira, 23 de outubro de 2024

ELON MUSK E O TWITTER - PARTE 4

“na questão da guerra da Ucrânia, Elon Musk se interpôs na discussão de modo histriônico e imaturo”


As polêmicas de Elon Musk, além desta recente no Brasil, tivemos o embate com a União Europeia, a qual anunciou, em 2023, uma investigação sobre disseminação de conteúdo terrorista e violento na rede X do CEO problemático, além de propagar discursos de ódio, sobretudo após o ataque do Hamas a Israel. 

Em dezembro de 2023, por fim, a União Europeia formaliza a sua suspeita de violação de suas regras pela rede X através de conteúdos ilegais e de desinformação que circularam sem serem derrubados ou combatidos.

Dentre as acusações estava a do comissário digital da União Europeia, Thierry Breton, em que o X era colocado como suspeito de violação de regras de transparência. A rede social X respondeu que estava cooperando com o processo regulatório. 

Contudo, em outro episódio, a rede X realiza o banimento de contas de jornalistas, fazendo com que Elon Musk receba uma saraivada de críticas vindas de governos, das Nações Unidas e, por fim, da União Europeia, quando a comissária Vera Jourova, baseada na nova Lei Europeia de Serviços Digitais, ameaçou a rede X com sanções, pois esta nova lei foi elaborada para afirmação de direitos fundamentais e pelo respeito à liberdade de imprensa.

Por sua vez, na questão da guerra da Ucrânia, Elon Musk se interpôs na discussão de modo histriônico e imaturo, chegando ao ponto de, em outubro de 2022, usar o ainda Twitter para sugerir um “plano de paz”, sob a forma de enquete, deixando as autoridades ucranianas indignadas. Os detalhes da enquete exalam pretensão e prepotência, parecendo a proposta de um chefe de Estado, sendo este apoiado por uma coalizão.

Mas, na verdade, se tratava de um pastiche modorrento e de mau gosto, com opções como “refazer eleições de regiões anexadas sob supervisão da ONU; a Rússia sai se essa for a vontade do povo”, ou ainda esta outra pérola de auto paródia involuntária do CEO infantilizado como “Crimeia formalmente parte da Rússia, como tendo sido desde 1783 (até o erro de Khrushchev)”, além de outras baboseiras onipotentes. 

Por sua vez, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, criou uma enquete no Twitter, na qual se perguntava qual Elon Musk os seguidores do presidente gostavam mais. E as opções eram uma ironia em que uma era “Aquele que apoia a Ucrânia” e outra era “Aquele que apoia a Rússia”. 

Outro conflito se deu entre Elon Musk e o Estado americano de Delaware, quando no dia 30 de janeiro Musk escreveu no X : “Nunca registre sua empresa no Estado de Delaware”. Foi quando duas empresas de Musk, a Neuralink e a SpaceX anunciaram que não teriam mais sede fiscal em Delaware. Por sua vez, em fevereiro veio a notícia de que a Neuralink registraria seu endereço legal em Nevada, mesmo Estado em que a X tem sede, ao passo que a SpaceX se registraria no Texas.

A Tesla, por sua vez, ainda está em situação indefinida, enquanto Musk empreende uma campanha para que outras empresas não estabeleçam domicílio legal em Delaware, ao mesmo tempo em que o CEO tenta se livrar de qualquer vínculo com este Estado. Toda esta batalha é bem dura, pois Delaware é considerada atraente pelo setor empresarial há décadas.

Uma das causas do embate de Musk com o Estado de Delaware partiu da anulação de um pacote salarial de US$56 bilhões, que era o maior pagamento concedido a um CEO de uma empresa de capital aberto na História, e que foi barrada por uma juíza de Delaware, no fim de janeiro, decisão advinda de ação judicial movida por acionistas, julgando o pagamento excessivo, e que teve concordância da juíza.

O Estado de Delaware não é qualquer região do empreendedorismo norte-americano e mundial, longe disso, pois a coisa vai muito mais longe, uma vez que estamos lidando com um Estado que concentra mais de 60% das empresas que compõem o índice Fortune 500, este que inclui as 500 maiores empresas norte-americanas. 

Ou seja, todas estas empresas que estão dentro desses mais de 60% têm seu registro legal de sede em Delaware. Tais empresas incluem, dentre várias, gigantes como Facebook, Amazon, Google, Walmart, MasterCard, Visa, LinkedIn etc. Contando as empresas do mundo, por fim, Delaware possui mais de 1,6 milhões destas empresas com sede legal por lá.

Em relação à Bolívia, por fim, em 2020, a confusão se deu através de postagens, que começaram com uma crítica de Elon Musk a uma iniciativa do governo dos Estados Unidos que visava um pacote de estímulo, e isso durante a pandemia da Covid-19. Na postagem de Elon  Musk se dizia que tal pacote “não atendia aos melhores interesses do povo”.

Esta postagem gerou uma resposta que afirmava não se tratar dos melhores interesses do povo o fato do governo dos Estados Unidos terem organizado um golpe contra Evo Morales para que Elon Musk tivesse acesso ao lítio da Bolívia. O lítio que, por sua vez, é um mineral usado para a fabricação de baterias na Tesla, por exemplo.

O fato era que em 2019 o então presidente da Bolívia, Evo Morales, havia renunciado, depois de uma mobilização popular e de um motim da maioria dos policiais bolivianos, mais o pedido de renúncia feito pelas Forças Armadas. A resposta de Elon Musk, em pleno ano eleitoral na Bolívia, foi categórica, para não dizer irresponsável : “Nós daremos golpe em quem quisermos. Lide com isso”.  


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/colunas/elon-musk-e-o-twitter-parte-4/

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

ABRACADABRA

Eu bebo o vinho do fastígio, em verso nacarado,

ao aroma de almíscar, nas flores do campo

que sorriem aos girassois, e na mestra alma

do mundo, sonhadora, que em sândalo repete

o seu mantra AUM, no ruído de fundo

da escala maior, um rosa em chama violeta,

bruxuleando diante da sarça, no oráculo

de absinto das glórias da carne e do espírito,

através de um congraçamento após a conflagração,

e os poemas anarquistas, com os ases ctônicos

da nova terra desta promessa granítica

dos dias das alvíssaras, aos loas

desta sempiterna paralaxe

no horizonte de uma cornucópia

labiríntica, do aleph ou Mefisto,

do diabo azul ou de um Deus Totêmico.


18/10/2024 Monster  

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

ELON MUSK E O TWITTER - PARTE 3

 “Elon Musk veste uma persona histriônica de agitador e influencer”


Elon Musk faz parte de uma concepção de Estado privado que se utiliza de um viés libertário para testar os limites da soberania dos Estados modernos constituídos. Portanto, o que ocorreu aqui no Brasil, nas últimas semanas, com a suspensão do X (ex-Twitter) não configura uma novidade no histórico conturbado de Musk na sua relação com a soberania dos países pelo mundo. 

Elon Musk veste uma persona histriônica de agitador e influencer, misturando neofascismo com um libertarianismo de cepa anarcocapitalista e que se confronta com valores da Modernidade histórica como os do Iluminismo e do Humanismo, bases axiais do que se conhece do que temos como produções de laicidade, liberdade religiosa e política, evoluindo para as democracias liberais.

Tivemos também reações, ainda dentro dos limites da modernidade, como o pensamento socialista, e também presenciamos distorções surgidas de dentro do liberalismo em crise, como um ovo da serpente, que foi o fascismo corporativista italiano e depois o nazismo alemão. Tais concepções totalitaristas surgiram já com valorações nostálgicas que se confrontavam com valores consagrados da Modernidade iluminista.

Com uma concepção política feita de oratória radiofônica e estética, estas ideias totalitaristas  seduziram corações naqueles anos que duraram até o fim da Segunda Guerra Mundial, e que desde o pós-guerra até hoje ganham versões celulares em diversos países e/ou partidos que rezam a cartilha, mas tentam dissimular o discurso, compondo o cenário atual da extrema direita.

Por sua vez, com o advento da internet, hoje lidamos com um tipo de histrionismo que reproduz valores distorcidos originados desta extrema direita, com uma nova lógica de memes, trollagem, piadas de gosto duvidoso, e que com Elon Musk ganharam um representante com poder financeiro e midiático que atua, exatamente, através deste modelo de provocações histriônicas contra seus adversários, que podem ser governos, justiça, figuras públicas etc. 

A performance monetizante é o uso do algoritmo que só reconhece engajamento cego, e o pior que tem na praça é o que ganha destaque na internet, pois este algoritmo mostra o que engaja e viraliza. Elon Musk sabe que a lógica de algoritmo é viciada em memes e trollagens, e isto favorece a inconsequência do discurso dominante desta extrema direita atualizada em negacionismo científico, noções reacionárias diversas, somada a uma série de inversões de valores que erguem um verdadeiro guia anti-iluminista e de demolição dos valores humanistas.

Elon Musk representa este Estado privado que se confronta em poder com o Estado Moderno, o que, em lógica, pode ser entendido como um embate entre estes “estados-fluxo” das big techs, com uma dinâmica onívora capitalista, e os regramentos e estatutos de países, criando um desnível de interesses e modos de operação, sistemas e organizações que, quando chega ao ápice, os Estados constituídos reagem e, sim, ainda detêm mais poder e contundência que as big techs, por incrível que pareça.

Embora o sonho dourado de CEOs como Elon Musk fosse passar como um rolo compressor sobre as normas de poder do Estado de Direito, num novo estado total privado, seu histórico de embates pode se resumir a tentativas histriônicas de sabotagem e, depois, a adaptação às regras de cada Estado, sem grande sucesso em retorcer os limites institucionais, levando a respostas duras, no espírito da lei e segundo a defesa de soberania, conceitos tão consagrados, que uma persona histriônica, por mais poder financeiro que tenha, acaba sendo coagido a ceder e obedecer, pateticamente.

Além do caso recente de Elon Musk contra o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, aqui no Brasil, que irei tematizar em breve, o CEO gracioso também se meteu com a soberania de outros países, tais como Austrália e Ucrânia, além do estado de Delaware, nos Estados Unidos, e um conjunto de países, com confrontos com a UE (União Europeia), por exemplo. Como dono do X, antigo Twitter, Elon Musk arranjou diversos problemas, sempre tentando se escudar numa concepção distorcida de liberdade de expressão.

Na Austrália, o primeiro-ministro do país, Anthony Albanese, chamou Elon Musk de bilionário arrogante diante da relutância do X de retirar do ar as imagens de esfaqueamento dentro de uma igreja em Sydney, e o X dizendo que cumpriria a decisão ordenada por um tribunal, Musk, no entanto, faz um meme acusando o governo australiano de censura. Albanese chegou a dizer à emissora ABC News que Musk pensa que está acima da lei, “mas também acima da decência comum”.

A ofensiva de Elon Musk com o governo australiano, por sua vez, foi retomada recentemente com a apresentação de um projeto de lei que visa coibir a disseminação de desinformação por parte das redes sociais. Elon Musk chama o governo australiano de fascista e autoridades australianas se manifestam diante de uma concepção distorcida, ou melhor, enviesada, sobre liberdade de expressão, do CEO problemático. 

Ou seja, temos o exemplo da colocação do ministro das Finanças da Austrália, Stephen Jones, como uma forma de sintetizar o confronto deles com Musk por lá. Quando o ministro disse à emissora ABC o seguinte : "Não consigo entender como Elon Musk ou qualquer outra pessoa, em nome da liberdade de expressão, achar que está tudo bem ter plataformas de mídia social publicando conteúdo fraudulento, que está roubando bilhões de dólares dos australianos todos os anos. Publicação de material deepfake, publicação de pornografia infantil. Transmissão ao vivo de cenas de assassinato. É para isso que ele acha que serve a liberdade de expressão?", disse o ministro.

(continua)


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Link da Século Diário :

https://www.seculodiario.com.br/colunas/elon-musk-e-o-twitter-parte-3/

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

ESPERANÇA SOLAR

Se atento, dentro do reflexo preciso, estou sensato,

fazendo o certo, com a sensibilidade acesa, sem chapar,

o afeto aberto, as razões bem estabelecidas, e todo um

manancial de projetos bem direcionados, cabe à loucura

dos dias da queda e do terremoto, todo o cataclismo que

me trouxe até aqui, depois da deriva, ser este esteio, 

a base, o núcleo duro de minha lucidez,

pois a vida sempre tem passado por um fio,

se abriam abismos, se achava que era o fim, 

tudo acabado, a derrota já declarada, sempre

que se sabe de histórias de vitória, no entanto,

descobre-se isto, que em outros momentos

tudo estava perdido, devastado, e a poesia

murmurava castelos de areia, se espatifando

no grande mar contra as rochas,

o corpo sendo aniquilado,

a alma sendo espancada,

os versos desaguando em

desespero, sim, exatamente

o que, depois da via tortuosa,

calmamente, levando o café à boca,

se olha, contempla, fita, e se diz com

serenidade que se está vivo e pleno,

com suas glórias, vitórias, 

diante do horizonte que nunca

lhe escapou, nem naqueles

dias do fracasso.


11/10/2024 Vibe

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

POEMA DE VENTO

 Feriado à forra da bebida ardente,

com as facas e os dentes, a mais 

forte luta na ira e na armada.


Pois poeta cai e levanta,

dá porrada e toma,

bebe fogo e canta a floresta,

seu hausto é o estro,

mais potente e tonitruante.


Eis o bel canto, em matizes

ferozes, a fazer da boêmia

a astúcia da noite, a que 

é vadia, a que dança no

meretrício, a noite bruta

dos poetas de vento.


10/10/2024 Monster

A PLENITUDE DOS BARDOS

Eu mantenho a vida acesa, pois a trama

se abre na floração, sem o fastio,

sem o lamento, longe do lodo,

assim o poema vive e vence.


As musas olhavam a melodia,

e a água transparente mostrava

do sol a clara luz, pois este tempo

em verso requer estrela,

e a estrela requer coragem,

no sol que brilha, e na noite

dos bêbados.


10/10/2024 Vibe 


CANTO DE BRISA - II

Suave este vento, face ao espelho d`água,

reza o tempo e reza a vela, faz paz no coração

das almas contemplativas, o mesmo fogo que

emerge e morre, de um fundo eterno,

na luz que habita a poesia.


Fecha este tempo da colheita, sem revés,

como galardão, ao vinho probo e vivaz.

Como eis poeta, voilá, seu canto é a vitória.


Em prece, nesta bruma e o orvalho,

e a maresia, pois assim o horizonte

vem do mar, e a visão assim anela

sua miragem mais bela.


10/10/2024 Sublime 

Internet e sistemas complexos - 6

“problemas não são isolados, mas reflexo de uma concentração de comando”

O processo de desmembramento das big techs, mesmo se for efetivado realmente, ainda seria algo que duraria décadas para ser concluído. Deste modo, na visão de uma internet renovada, embora o processo de desgarramento destas empresas seja longo, o fornecimento de uma interoperabilidade robusta e obrigatória já abriria o caminho para a renovação e diminuiria o fluxo financeiro das big techs e seus movimentos de aquisições e domínios.

Um dos meios de interoperabilidade é o de guerrilha, que se dá por engenharia reversa, bots, raspagem e demais táticas não autorizadas, e que passou a ser chamada de “comcom” ou compatibilidade competitiva. Tal tática era a forma que as pessoas descobriam tanto para reescrever softwares como para conserto de carros etc. Depois foram publicadas uma série de leis na tentativa de sufocamento destas iniciativas.

A comcom opera como diversidade tática, em contraste com o pensamento de curto prazo que abriu caminho para uma oligarquia na internet. Na UE (União Europeia) os mandatos de interoperabilidade já possuem vários anos de experiência, junto a um conhecimento de como as big techs tentam driblar tais limitações. Nos Estados Unidos, por sua vez, esta interoperabilidade ainda está restrita a softwares de videoconferências.

Junto à necessidade de iniciativas regulatórias corajosas, com uma visão avançada sobre estratégias de litígio, estas devem vir acompanhadas de políticas governamentais que favoreçam a competição, sobretudo em infraestrutura física, investimentos e aquisições. Mais uma medida poderá vir das universidades ao recusar o financiamento de pesquisas por parte de big techs, pois há sempre uma lista de condições, enviesando todo o processo.

Em face desta recusa de pesquisas condicionadas pelas big techs, as universidades devem ter pesquisas tecnológicas financiadas publicamente e com resultados divulgados também publicamente, aproveitando o ensejo para uma investigação sobre a concentração de poder na internet, e de como recuperar a diversidade do sistema. 

Para tal, por sua vez, deve-se ter o apoio a iniciativas que permitam a gerência de recursos comuns, na criação de redes comunitárias, dentre outros meios de colaboração, no fornecimento de bens públicos como água potável, estradas e defesa, por exemplo, que são bens essenciais. 

Visto que os problemas não são isolados, mas reflexo de uma concentração de comando e de controle da internet, um dos meios mais fortes que temos para debelar este poder das big techs é a participação agressiva do Estado de Direito para equilibrar estas relações de poder e de riqueza empresarial, acabando com as lacunas e optando pelo melhor caminho. 

Por sua vez, nas SDOs (organizações de desenvolvimento de padrões), que eram abertas e colaborativas, ainda quando foram criados os protocolos e padrões técnicos que formam a infraestrutura da Internet, agora estas recebem controle de algumas empresas, em que padrões que parecem espontâneos são, na verdade, resultado de escolhas comerciais de grandes empresas.

Tal controle acaba moldando também a pesquisa na internet, que virou um monopólio global, prejudicando a credibilidade das SDOs, o que pode provocar a perda do mandato global destas para a administração da internet no futuro. Existe, portanto, uma necessidade de uma mudança radical das SDOs, com padrões de internet abertos e globais, pela costura da interoperabilidade, que cria um tecido mais resistente e que protege contra a fragmentação e o domínio perene.

Um exemplo recente de tática antimonopólio veio da Califórnia, em 2018, com a aprovação da Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia, dando o direito aos consumidores californianos de optar por não vender ou compartilhar dados pessoais ao visitar sites da internet, com uma opção de controle de privacidade global que podia ser habilitada pelo usuário, o chamado sinal GPC.

Foi com esta inovação técnica independente, que era um método automatizado de controle de dados pessoais, o GPC, que se abriu caminho para soluções técnicas de controle de dados pessoais por parte de usuários, sem precisar recorrer a instâncias jurídicas de direitos autorais ou de privacidade. O GPC automatiza, para os residentes da Califórnia, a solicitação de aceitar ou rejeitar a venda de seus dados, como o rastreamento baseado em cookies nos sites. 

Contudo, especialistas ainda estão conduzindo uma especificação técnica através do desenvolvimento de padrões globais da Web no World Wide Web Consortium, ao passo que o GPC ainda é incompatível com navegadores como o Chrome e o Safari, levando um tempo para a sua adoção ampla, para que possa, de fato, virar uma prática antimonopólio na pilha de padrões.

Por meio de acordos financeiros opacos entre os mecanismos de busca e os navegadores temos uma padronização enviesada que oferece pouca transparência para os principais provedores de infraestrutura da internet. Por sua vez, os navegadores são peças de infraestrutura de alta complexidade que indicam o caminho de uso da internet para bilhões de usuários da Web, com fornecimento gratuito. 

Por fim, são os mecanismos de busca que deveriam ser cobrados por uma taxa pelos governos para a manutenção dos navegadores e outras infraestruturas da internet, com um financiamento transparente, através de uma supervisão multissetorial, transnacional e aberta. Como espaço em que se cria conhecimento e no qual opera a inteligência planetária, a internet pouco permite de inovação por estar concentrada e sendo tomada por hostes tóxicas e disfuncionais.

O rewilding da internet, por fim, implica em iniciativas de regulamentação, definição de novos padrões e de novas formas de organização e edificação de infraestrutura, através de compartilhamento de estratégias, segundo a tática de interoperabilidade, criando este novo feixe de interrelações mais resilientes, de diversidade, abertura e liberdade, nesta internet renovada, com o fim do extrativismo de uma monocultura tecnológica comandada por big techs.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com 


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

COSMOCOCA


Geraldo Verón, artista plástico e de videoarte, era nascido no Rio de Janeiro, criado no Engenho de Dentro e depois foi para a Lapa, onde começou um curso de teatro livre, e depois começou a pintar e fazer esculturas. Logo alugou um casarão na Rua do Lavradio, junto com mais seis amigos, e ali foi fundado um ateliê de nome “Arte e Loucura”. Verón, no entanto, mesmo com seus trabalhos de pintura e escultura indo para a frente, virando seu nome comum na boca de galeristas cariocas e logo depois paulistas, continuava participando de intervenções que ele aprendera no teatro livre, e fazia parte de um coletivo de música, dança e teatro de rua, de nome “Borogodó”, que era inicialmente mal visto, cujo diretor de nome Benjamin Sâmio, que tivera boas montagens no palco italiano, e tinha feito alguns sucessos no teatro de circuito comercial, foi considerado alguém que tinha surtado ou entrado numa viagem de ácido quando montou o Teatro Total, com este conceito de teatro aberto, urbano, e de rua, e que agora se dividia em dois grupos, tanto o Borogodó, do qual participava Verón, como o Grupo Duelo, que também atuava na Lapa, Centro e arredores. 

Verón estudava agora uma forma de unir o que conhecia de artes plásticas e aplicar isto ao teatro de rua e dentro das galerias ao mesmo tempo, num tipo de arte-teatro que ainda não tinha sido feito. Verón era filho de argentinos, o pai, que morrera há alguns anos, era nada convencional, um egresso da Argentina, e que foi trabalhar de comerciante e tocar cuíca no Estácio e na Cidade Nova e morar no Engenho de Dentro. Um argentino branco metido a sambista, com os pretos da Praça Onze, e que acabou sendo admitido por lá depois de passar no teste da cuíca. Ainda no tempo do Teatro Total, Verón foi da segunda turma montada pelo diretor Sâmio, e acabou sendo um bom ator de improviso, passou a declamar e também montar cenas pitorescas em que se usavam motes e o que se chamava de “clichês”, mas eram mais como disparadores de cenas, todos meio parecidos, mas que abriam os novelos da improvisação e do uso do corpo em cena, nas ruas e nas praças, e o som e o movimento do próprio corpo sendo estudados como este instrumento de teatro urbano e de intervenção. 

Os estudos sobre as possibilidades de expressão corporal, da voz, como uma ressonância ambiental, coletiva, integrada ao que cerca aquele corpo, aquela voz, que colocava o ator ou atriz consciente de sua ação em seu meio, isso sendo mais importante do que o texto, isto na concepção aberta de Sâmio, ia contra a incorporação quase esquizofrênica do personagem feita pela orientação teatral de Stanislavski, por exemplo. O trabalho do som, de um ator/atriz capaz de expressão/expressividade e de captar a atenção eram fundamentais na arte da rua, de coletivos que faziam a arte da intervenção urbana e aberta, com público móvel e variado. A consciência de atuação ia então a favor de um distanciamento a princípio brechtiano, de apresentar o personagem tal qual, do espetáculo, já com a quarta parede demolida e o palco italiano derretido e o cenário simplificado e gerando a imaginação ativa para sugerir a cena e o texto, sendo a expressão de som e movimento, junto com a captação da atenção, os desideratos da atuação de rua, tendo como técnica mais formal, por sua vez, a coreografia, e isto na junção de atores e atrizes conscientes de seu corpo e voz coletivas, como num ditirambo em que entrava também a dança e a música. 

Verón, então, levava suas atividades entre o Borogodó, vindo do Teatro Total, e seu trabalho no ateliê Arte e Loucura, e tinha como grande amigo e também compadre de ateliê Sávio Silveira, o Savinho, que fazia esculturas que eram uma espécie de barroco com arte popular, e umas pinturas naif com temas folclóricos e imaginativos. Savinho era gay e tinha fugido de casa com 17 anos depois de apanhar do pai e ter que tomar pontos na cara e na cabeça, ficou morando na rua durante seis anos, foi para um abrigo e fez um curso gratuito de confecção e depois de entalhamento em madeira, daí evoluindo como escultor, vendendo suas peças na Carioca e na Frei Caneca, e depois se juntando a outros artistas de rua e populares e conhecendo depois Verón e uma artista circense que passou a andar com eles de nome Fiona, nome de circo, pois se chamava Ivete Lima. 

Outro camarada era o Gira, que tinha esse apelido vindo de sua prática como candomblecista, e fazia o que chamava de Arte Negra. Ele era escultor e fazia pinturas, e também começou no Teatro Total, na mesma segunda turma de Verón. Gira também fazia jogos de pegar otário na Carioca, em que ganhava uns trocados para almoçar e depois ia para um quitinete no Lavradio, vizinho do ateliê em que trabalhava, e também conseguia dinheiro quando participava de mostras nas galerias, mas ficava na Lapa, a maior parte do tempo, pois lá gastava pouco e vivia muito, como gostava de dizer. Gira se chamava Aílton Pereira, e tinha nascido no bairro do Cordovil, depois se mandando para a Lapa, para ficar no meio da malandragem e aprender truques para sobreviver. 

Fiona, por sua vez, vinha da classe média alta e fez pano na Fundição Progresso e depois se especializou em circo, com acrobacia e elasticidade corporal no grupo Garcia. Fiona vivia para o circo, pois a família já tinha bens alugados, hotéis, pousadas e então ela pôde escolher livremente o que fazer da vida sem pensar no lado financeiro, que já estava resolvido. Mesmo tendo um apartamento na praia da Barra, ela também alugava outro na Rua do Riachuelo, pois durante a semana fazia atividades de rua e no Circo Garcia, e também viajava, às vezes, para se apresentar, e estava estudando práticas circenses para ser aprovada no Cirque de Soleil, seu grande objetivo, pois ainda estava com vinte e três anos e em grande forma física e fôlego. Fiona também fazia atuações no Borogodó, com danças e coreografias. 

Benjamin Sâmio, por sua vez, aprofundava suas pesquisas sobre teatro de rua e dava muitas aulas e workshops, montando ainda muitas peças, dirigindo e produzindo, e também escrevia novas montagens, junto com outros autores-fazedores, nesta concepção de espetáculo que superava sempre a de peça e de texto, fundamento que sempre definia os rumos desta dramaturgia radical e gratuita, pois nunca tinha cobrança de ingressos, só contribuições espontâneas. A renda dos dois grupos ia para os próprios coletivos, que estava concentrada em duas contas em que havia o sustento tanto do Borogodó como do Grupo Duelo, este mais popularesco e herdeiro dos trejeitos da Commedia Dell`Arte e dos grupos itinerantes e mambembes, e com influências do Século de Ouro do Teatro Espanhol e dos Autos de Gil Vicente, tendo o Auto da Barca do Inferno sido uma vez montado numa praça na Lapa. O Borogodó, por sua vez, fazia experimentações diversas, como um laboratório da linguagem teatral e de seu diálogo com outras artes como as visuais, musicais e a dança, resgatando valores atávicos do ditirambo e do culto dionisíaco, das origens do teatro grego, e misturando a uma cultura de teatro de rua, popular, podendo montar clássicos repaginados, por exemplo, e também produções originais e contemporâneas, remodelando o tempo todo as propostas e os exercícios.

A renovação constante do que veio do chamado Teatro Total despertava em Verón já as suas próprias concepções, e isso agora se associava a experiências com psicodélicos e o consumo de cocaína. Em poucos meses, já em sua atuação como ator no Borogodó, ele amadureceu a primeira parte do que seria esta sua junção Arte-Teatro, e misturou uma concepção de performance, vinda das artes plásticas, com algo teatral, e que foi colocar dez pessoas vestidas em diversas cores, fazendo um movimento de redemoinho e passes elípticos, a mostra chamada “os astros pêndulo” terminaram com um ator fazendo um sketch sobre hipnose e chamando transeuntes para participar. 

A segunda parte da ideia foi executada um mês depois e se chamou “libélulas”, em que homens vestidos de mulher circulavam entre espelhos e no final da performance aparecia um ator vestido de bruxa e se revoltava contra os espelhos, intervenção de nome “ego death”. Verón agora concebia a terceira parte das peças de performance que seriam o ato final desta ideia de giro e que seria a simulação do movimento circular e pendular das entidades de umbanda em torno de uma desobsessão. Os atores e atrizes aqui atuavam como médiuns/cavalos, fumavam charuto e bebiam sidra e cerveja, iam até o altar de Zé Pelintra, ao final, pedir a bênção e derramar álcool para o santo. Depois da parte do Zé Pelintra, a intervenção terminava simulando uma propaganda de cerveja, com uma atriz rebolando e falando “prazer”, “sexo”, “cerveja” e xingava um ator, enquanto este falava o texto decorado da propaganda,  de “bundão”, “cafajeste”, “corno” e depois bebia uma lata de cerveja e beijava o tal ator na boca, encerrando a intervenção-performance.

O diretor Benjamin Sâmio aprovou toda a ideia que era um misto de performance e intervenção urbana teatral com textos esparsos, dança e música. Verón disse que estava desenvolvendo outro projeto no ateliê da Rua do Lavradio, e que seu reconhecimento como artista plástico iria crescer mais ainda, pois sabia que o chamado projeto era um choque a ser testado para ver o que aconteceria. Sâmio disse para Verón silenciar e não espalhar, pois quando algum projeto ganha potência demais, é hora de fazer na surdina e deixar o barulho para o momento de divulgação. Benjamin Sâmio foi então junto com Verón até o ateliê e saiu radiante, certo de que Verón era seu pupilo mais genial e que ficaria para trás, pois o que Sâmio tinha de empreendedor, Verón teria de disruptivo, revolucionário. Era a face do produtor e diretor que reconhecia o artista com todos os seus tiques, bênçãos e maldições, e que ele agora reconheceu na figura de Verón, depois da ida ao ateliê da Rua do Lavradio.

Verón e Gira, depois de uma visita a uma benzedeira no bairro da Penha, decidem ir para a Gamboa, lá encontram com bêbados e malandros, conseguem umas trouxas de maconha, uns pinos de coca, e um LSD de gel, então fumam e cheiram tudo, bebem cerveja por horas, shots eventuais de cachaça, e amanhecendo decidem dividir o gel, que sabiam que era bem forte, e que Verón lembrava de ter tomado quando era bem jovem, numa viagem para Mauá. O negócio bate forte e eles vão parar no porto, ficam zanzando perto dos armazéns e tendo visões. Gira diz que tinha um dos navios apitando, e que parecia estar entrando na pista dos carros, Verón tem um acesso hilariante, e olha para a cara de Gira e começa a rir. Gira começa a achar que tava maluco, que o tal navio estava navegando na pista, que ia entrar no bairro etc. Enquanto isso, a cada vez que Verón olhava para a cara de Gira tinha um acesso de riso. Eles ficam nessa até o meio-dia, quando a onda do gel começa a baixar e vão dormir na casa de uma amiga de Gira que morava na entrada do Morro da Providência. 

De noite, acabam jantando na casa desta amiga, com Fiona chegando lá de convidada, pois também conhecia a anfitriã, e ri da tal história dos armazéns, dizendo que queria ter estado lá, mas não ficou sabendo o que eles estavam aprontando naquela noite e acabou indo para uma boate de playba no alto do Joá, ficou com um boy lixo para se divertir e depois de três horas nunca mais viu o cara na vida. Foi dormir na casa de uma amiga lá perto, no Joá, e de manhã foi fazer exercícios de tecido e de saltos na Fundição Progresso, recebendo o recado de Mirna, a dona da casa no Morro da Providência, para vir jantar com os amigos, que Gira e Verón estavam na casa dela. Depois da janta, os três seguem para a Lapa. 

Passam-se três dias e um fato estranho começa, pois Savinho não dava notícias há quatro dias, desde que numa noite foi visto vendendo esculturas e artesanato no Largo da Carioca. Foi quando Verón atinou e avisou Sâmio, que tinha um amigo delegado e que atuava na região da Carioca e da Uruguaiana. Depois de uma semana de investigação, dois moleques meio enrolados, evasivos e complicados acabaram falando que tinha rolado “uma parada” na Frei Caneca, e que dois caras bateram no tal artesão com “cara de fraquinho”, que parecia um “zé ruela”. Depois não souberam dizer, disseram que só lembraram disso. A polícia civil confirmou o mesmo enredo com uma comerciante e um dono de banca de jornal e tentou a descrição dos dois elementos, a câmera da rua registrou o momento em que um cara se aproximou do artesão, depois a câmera apaga, fica com rabiscos, e quando volta a imagem, já não tinha mais ninguém.

Depois de dois dias surge uma nova testemunha, que era Robertão, dono de bar na Frei Caneca, que afirmou categoricamente que o bichinha dos cacarecos tava com dívida com agiotas, e foram cobrar a paga. Robertão disse que o bichinha apanhou feio e foi levado pelos cabelos e pela cabeça até dentro de um opala todo fudido, marrom claro, e o carro saiu em disparada, depois não disse nada, pois preferia se calar, mas o delegado convenceu Robertão, que ele tinha proteção garantida, que sua denúncia ficaria no anonimato, e os caras eram, portanto, um agiota de nome Everaldo e outro de nome Zequinha, e que viviam assacando trabalhadores nos arredores, e tinham relação com o jogo de bicho, pois Zequinha também era apontador do jogo de bicho numa das esquinas da Frei Caneca. 

Agora o trabalho era ver as câmeras da cidade para acompanhar a trajetória do opala, ele zune pela Rio Branco, pega o Aterro do Flamengo e segue até o Recreio dos Bandeirantes, onde finalmente some da captação da central da prefeitura, pois ali havia locais incógnitos. Mas já se sabia que a placa do carro era clonada, e num cruzamento de informações se descobriu o endereço de Zequinha, que morava na Rio das Pedras, e de Everaldo, que morava na Gardênia Azul. Os dois não foram achados em suas casas, e passaram a ficar como procurados e foragidos. Enquanto isso, uma força tarefa procurava por notícias de Savinho, para saber se estava vivo ou morto. Depois de seis meses de investigações, uma arcada dentária foi encontrada na Baía de Sepetiba e foi identificada como de Savinho, sendo depois encontrado seus restos mortais dentro da baía, e uma carcaça de opala queimada tinha sido encontrada numa região perto da Praia da Macumba, mas não se sabia se era do mesmo opala de placa clonada dos meliantes, mas que tinha gotas de sangue seca. Depois de um exame científico se confirmou ser do DNA de Savinho, pois uma amostra de um pedaço de estofado que não tinha pegado fogo deu para examinar em condições ideais e não se teve mais dúvida, agora era ir à caça dos fugitivos. Depois de dois meses, finalmente, Everaldo foi preso, estando na casa de uma namorada na Costa Verde, e se descobriu que Zequinha tinha sido executado pelo tráfico, pois a polícia civil tinha dado uma incerta perto de uma boca e quase que a casa cai por causa das “alopragem” de agiota de Zequinha, pois a civil veio atrás dele.

Verón, Gira e Fiona comemoram, junto com Sâmio, a solução do caso, e haveria um evento juntando os grupos Duelo e Borogodó para homenagear Savinho. Uma festa com muita cerveja, foi montado um espetáculo escrito por Sâmio, e que tinha dança e música e que terminava num grande ditirambo dionisíaco. Fiona consegue fazer um número circense de equilíbrio e disse que em duas semanas viajaria para a França para fazer um teste no Cirque Du Soleil, que era seu objetivo de vida principal. Fiona passa no teste e teria que se mudar para Paris o mais rápido possível, e então organiza uma festa na Lapa, em que se mistura suas amizades da alta sociedade e o pessoal da boêmia da Lapa, em que se juntava o pessoal do teatro e uns malandros bêbados de quem Fiona tinha feito também amizade, pois se misturava com todo mundo e mais um pouco. No final faz um discurso e chora, mas disse que estava prestes a realizar um sonho e que com sonho não se brinca. Pega um avião e aluga um apartamento perto da Gare Du Nord, para ficar perto do trem.

Sâmio faz uma visita ao novo ateliê de Verón, um que ele era solo, que não era mais dividido com outros artistas, e ali consegue vislumbrar a usina de experiências que Verón estava gerando. O novo ateliê que ficava numa grande sala comercial do centro, já depois da Lapa, acima de um teatro médio, e o acesso ao ateliê era restrito, só Verón e o zelador da edificação tinham as chaves. Sâmio teve acesso, pois Verón considerava o diretor e produtor teatral como um mestre seu, até um segundo pai, e queria sua posição sobre o que estava produzindo, pois sabia que tinha dado um salto enorme desde a trilogia que tinha sido apresentada na Lapa, ainda com os recursos do teatro de rua. Sâmio apenas diz para que Verón continuasse, pois aquilo era História.

Sâmio, junto ao grupo Duelo, desta vez monta Ubu Rei, de Alfred Jerry, como uma intervenção urbana e política. O agito se dá até meia-noite, na Lapa, em que a montagem vira uma festa ditirâmbica, contudo, policiais aparecem e começam a dar dura em alguns espectadores, um transeunte protesta, e tem uma confusão, com três moleques de rua e uma travesti sendo levados, sob os apupos do público e dos atores e atrizes, e gritos de “fascistas etc”. Um sargento coloca sua equipe para acabar com o evento, e quase que Sâmio leva uma cacetada, passando raspando pela sua orelha direita. A montagem é dispersada e Sâmio, que tinha autorização da prefeitura para a montagem, pois não era nenhuma idiota, denuncia os policiais envolvidos no incidente, que acabam passando por um processo administrativo que não dá em nada.

Enquanto o tal projeto de Verón ficava quase pronto em seu ateliê solo, ele curtia bem a boêmia da Lapa e da Gamboa, e estava saindo com malandros do submundo, e muitas vezes ia com o Gira para flanar tanto pela Lapa como pela Gamboa. Numa noite, depois de muita cerveja e cocaína, rola o tal LSD de gel, que um cara arrumava, mais uma vez, lá pelas bandas do bairro da Saúde, e desta vez Verón e Gira, cada um toma um gel inteiro, sem dividir. O negócio começa a bater três da manhã. Eles zanzam pelas ruas, Gira começa a dar gritos e delirar, Verón tem crises de riso e visões de gatos pulando dos prédios. Gira começa a ter visões dantescas e entra numa bad trip. Verón, alheio ao que rolava, continuava tendo seus acessos de riso, e Gira deita numa esquina da Gamboa e dorme no chão, delirando, achando que ia morrer. Verón, viajando intensamente, não se dá conta e esquece de Gira, vai até seu ateliê, já às oito da manhã, para trabalhar, ainda viajando de gel, e depois fuma um cigarro e dorme. 

Gira é acordado por um comerciante local da Gamboa, às sete da manhã, e o tal comerciante vê que Gira não estava bem, pois não falava coisa com coisa, embaralhava a conversa e nada fazia sentido, e tinha um papo mágico, de visões etc, que faz com que o comerciante chame o Samu para levar Gira para um exame etc. Gira estava em surto, a viagem do gel detonara um surto psicótico em Gira, ele é examinado por um psicólogo e é encaminhado para uma internação no Capes, seu primo Ataíde é que fica sabendo do paradeiro de Gira somente três dias depois da noite na Gamboa, pois tinha falado com Gira naquela noite, e logo concluiu : “Ele estava com aquela porra do Verón, puta que pariu!”. 

Ataíde chama dois amigos, ele morava no Morro da Providência, para “pegar o Verón etc”, Sâmio fica sabendo da movimentação, e sabe-se lá como, deu um jeito na situação, dizendo que Verón era assunto dele etc. Ataíde controla a raiva e acaba dissuadido, pois Sâmio afirma que aquilo tudo ia piorar se tivesse polícia e que era para Ataíde tomar conta de Gira e sair de confusão. Ataíde, que conhecia Sâmio desde criança, acaba ouvindo os conselhos do “tio Sâmio”. 

Depois de segurar a onda do Ataíde, que decidiu, a pedido de Sâmio, não arrumar treta, mas não queria mais ver e nem falar com Verón, Sâmio foi falar com Verón e avisou que se ele continuasse misturando sua vida artística com aquela loucura toda da noite, que seria uma pena, pois ele perderia um gênio. Verón tremeu nas bases, mas achou que aquilo era uma idealização de Sâmio, e que tinha um caminho longo pela frente, e que sua arte estava prestes a bombar nos holofotes de galeristas, e que ele poderia cheirar meio mundo com a grana que iria ganhar. Verón parecia não perceber o estágio em que já estava, pois apresentava uma resistência ao consumo de substâncias, mas o que Sâmio quis dizer que aquilo tudo era uma bomba relógio, que funciona em silêncio até explodir.

Um pouco depois daquela conversa, as coisas mudam, e Verón se afasta do grupo de teatro e também de Sâmio, começa a sair para boates e lugares mal frequentados, também acaba se afastando de muitos dos amigos que conhecia do teatro de rua e se junta a uma turma de artistas e um marchand que tinham uma aura sinistra e parecia que Verón entrava num novo mundo autodestrutivo fingindo riqueza e controle, pois o modus operandi daquele grupo de afetados era de algo clean, quase asséptico, mas por trás de tudo havia um consumo industrial, sobretudo de cocaína. O modo com que conversavam entre si, era tudo muito diferente, distante e afetado, e Verón, talvez pelo consumo desvairado de pó, também já tinha mudado muito, tornando sua rotina uma coisa fria, intensa artisticamente, mas com a emoção de um estenógrafo ao lidar com familiares e amigos antigos, e ficando na maior parte do tempo sem dar notícias. 

Verón armava seu trabalho em seu ateliê individual (também havia deixado a produção coletiva em artes plásticas da Rua do Lavradio), e tinha a ideia de fazer uma grande exposição dinâmica, e que na sua cabeça era uma mistura de arte e temas literários e a apologia da cocaína, algo polêmico, mas que na sua concepção era algo disruptivo, radical, revolucionário, e uma associação com cosmologia, cosmogonia, ego, morte do ego, overdose, exemplos da “interpretação dos sonhos” de Sigmund Freud, e mais o tema da extinção do tráfico de drogas e da liberdade do corpo e da liberdade química. Verón sabia que fazia algo grande, com extensão e conteúdo, e também sabia que era uma faca de dois gumes, e sentia cheiro de problema, mas talvez fosse polêmica e problema o seu objetivo.

Sâmio consegue o contato de Verón depois de muito tempo, encontra o artista junto ao marchand daquela galera esquisita com quem andava agora num restaurante bem caro, cheio de ostentação, acha aquilo estranho e viu como as coisas tinham mudado. Não gosta do que vê, nem da conversa, e enfim desiste de Verón, percebe que já não fazia parte daquilo, que Verón tinha ido para um outro mundo, e era algo esquisito, bem coisa própria do pó e de suas sugestões, coisa que Sâmio sabia por ter usado a droga ligeiramente. Ele sabia que Verón estava encrencado, mal acompanhado, apesar de ser também uma má companhia para algumas pessoas, e caiu fora daquilo.

Neste ponto, falando nisso, Gira agora tinha saído da internação, mas estava morando com a mãe e a avó, acomodado, sem fazer porra nenhuma, e fumando um cigarro atrás do outro e tomando medicações para se manter sóbrio. Estava levando uma vida pacata e controlada, mas no sentido de uma vida pálida, se fechando num casulo, e consumindo ao menos quatro maços de cigarro por dia. Gira estava irreconhecível, tinha desaparecido, era alguém mudo a maior parte do tempo, tendo vezes que murmurava alguma coisa e acendia um cigarro, ficando no quintal de casa ou vendo televisão meio que aleatoriamente, sem conexão com o que passava na TV.

Verón ficou sabendo, depois de muito tempo, da situação de Gira, mas não sentiu quase nada, estava muito ocupado com seu projeto, e tinha o planejamento de um duplo lançamento, um primeiro, menor, e um segundo, depois de um mês, que seria o projeto principal. A vida noturna continuava intensa, e em meio a esta galera esquisita, que envolvia Verón em descaminhos cada vez maiores e mais insustentáveis, ele também gastava tudo em pó e putaria, voltava de manhã para o seu ateliê, e praticamente não mais dormia, só tirava uns cochilos, estava ficando com a cara emaciada, a pele fina e branca, os olhos não expressavam nada além de uma constante névoa de ressaca de bebida e cocaína, e suas emoções pareciam aplainadas, assim como sinais de afeto. O aviso de Sâmio vazou pelos ouvidos e nada causou, o caminho era cada vez mais tortuoso e vertiginoso, em meio às produções insanas de um artista workaholic e genial. 

Sâmio aparece mais uma vez, perto da Gamboa, onde sabia que Verón tinha um contato que era um mala que fazia corre e morava em Parada de Lucas, e ficou de propósito na esquina vendo o pessoal ali, a galera que estava com Verón, e depois a negociação entre Verón e o tal mala. Sâmio tentava descobrir se um boato que ouviu de um ator do Borogodó era verdade, que na verdade o negócio era pior do que parecia, pois este ator sabia de um pessoal que estava vendendo armas e drogas, e ainda tinha um esquema de roubo de carga. Estranho foi que Sâmio ficou sabendo que Verón agora morava numa casa num condomínio da Barra, depois de sempre ter morado pela Lapa e arredores. 

Sâmio, depois que a tal “conversa” entre Verón e o tal mala acabou, foi atrás de Verón, o abordou, e foi fazendo perguntas sucessivas, Verón era evasivo, muitas vezes cínico, e tentava cortar a conversa fazendo perguntas sobre o teatro de rua, como o pessoal estava, de que “não teve mais tempo de ir ver as peças etc”, mas Sâmio fez investidas até finalmente prensar Verón e inquirir sobre histórias de criminalidade, como é que tava a vida, e a noite etc. Verón começa a ficar incomodado e disse para Sâmio sumir, pois não queria envolvê-lo no corre, sabia de coisas, acabou admitindo, e por isso falou para Sâmio sair dali, pois tava começando a dar bandeira. Sâmio insiste, fala para Verón abrir o jogo, ele fala pouco para Sâmio, resiste, e ao fim consegue que Sâmio vá embora.

Passam-se dois meses e Verón, junto com um galerista de renome, começa a primeira parte de sua exposição individual, pois tinha assinado um contrato com uma galeria de renome internacional, e seu nome já circulava pela França e Alemanha, já tinha feito viagens esporádicas, expôs junto a outros artistas em coletivas e planejava uma individual em Paris e depois na Inglaterra, já com a grife da galeria da qual agora era contratado. A primeira parte, chamada “romance com cocaína” é lançada no Rio de Janeiro, depois vai para São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e depois Belo Horizonte, um mês depois sai a segunda parte, chamada de “Cosmococa”, que faz o mesmo tour, e depois tanto “romance com cocaína” como “cosmococa” vão para a França, Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Holanda, Espanha e Suécia. Verón ganha uma fortuna, sobretudo da Sotheby's, e ainda uma bolsa em que fica dois meses num laboratório de artes em Paris.

Romance com cocaína relacionada artes plásticas com literatura e o tema sobre a droga dos andes, desde o chá de coca até a sua versão sintética, e cosmococa era um poliedro químico que misturava uma concepção cosmológica própria e o tema da cocaína, e na montagem dos materiais se encontrava a própria substância. Foram feitas denúncias sobre uso de drogas e apologia durante as montagens de “cosmococa”, bem mais explícitas e literais que a do “romance com cocaína”, só que um marchand experiente, a curadoria e a galeria que contratou Verón conseguiram blindá-lo. Claro que esta blindagem começou a criar fissuras, pois a autopromoção maníaca de Verón começava a colocar toda aquela orgia na cara de todo mundo, como uma espécie de porra louca que veio para “epatér la bourgeoisie”.

Fiona encontra Verón num bistrô de Paris numa tarde, no período em que ele fez o tal laboratório de artes plásticas, e teve uma impressão péssima, parecia estar conversando com outra pessoa, que não era a do teatro de rua, Verón parecia frio, sempre estava maquinando, calculando, muitas vezes tinha que atender seu celular e falar como se tivesse usando códigos e escamoteando tudo. Fiona, que tinha sido muito amiga de Verón, sobretudo na época das montagens do Borogodó, depois de duas horas, cafezinho, croissant etc, decide encerrar a conversa e sair dali. Verón não liga muito, e continua a sua saga autodestrutiva. 

De volta ao Brasil, a tour continuaria para mais uma montagem no Rio de Janeiro, no Riocentro, das duas partes da série de forma simultânea. Em meio ao evento, uma movimentação estranha começa, e alguém denuncia a montagem “cosmococa” anonimamente dizendo que lá, nos camarins, estava tendo “orgias de sexo e de drogas”. Tal denúncia, por sua vez, ia ao encontro de uma investigação que já durava sete meses sobre um grupo de galeristas, um marchand e alguns artistas que atuavam com tráfico de drogas e de armas e roubo de cargas, pois se tratava de uma organização criminosa que lavava dinheiro do crime com as montagens de exposições e divulgações de arte, tudo pelos registros de nomes de galerias falsas, pois a galeria que contratara Verón, por exemplo, sequer imaginava que havia lavagem de dinheiro nas montagens de “romance com cocaína” e “cosmococa”, uma vez que Verón tinha enganado o galerista francês que o contratou, dizendo que 50% do lucro das exposições iriam para três galeristas menores do Rio de Janeiro, com os quais tinha “uma dívida de gratidão etc”.

No final do horário programado das montagens simultâneas, a Polícia Federal entra na exposição “cosmococa” com um mandado de prisão contra Verón, e junto ao artista plástico, mais onze pessoas são apreendidas para averiguação, e é apreendida uma quantidade razoável de maconha e cocaína. Verón é preso por crime de tráfico de drogas, especialmente cocaína, tráfico de armas, mas sem ligação com a parte da quadrilha que fazia roubo de cargas que, no caso, as prisões efetuadas envolviam desde o tal marchand, como toda a patota que Verón frequentou nos últimos anos. Sâmio fica sabendo de tudo, e que Verón pegaria uma cana de dez anos, em regime fechado, sem chance de relaxamento, pois teria que cumprir a reclusão na íntegra. 

Sâmio encontra Verón depois de dois meses que o artista estava preso, e confirma com ele que “você lembra do que falei, que ia perder um gênio, você não ligou, foi fazer isso daí, esta merda toda, eu te falei, você jogou pela janela seu dom, eu queria ter isto que você tem, mas muitas vezes a natureza gosta é de desperdiçar, eu nunca vou conseguir fazer o que você faz, sou um homem do teatro, mas nunca tive esta aura, que sei que você tem, mas, esse pessoal é foda, você não foi o primeiro e nem será o último, é que nem pegar um tesouro e queimar, e você queimou tudo, o fato é que eu tinha medo, mas aconteceu, eu perdi um gênio”. 


Conto pronto em 09/10/2024


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

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