PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

terça-feira, 3 de outubro de 2023

AS HORAS DO SOL

(POEMA EM PROSA)

Sentado diante do livro, uma luminária sutil vigiava a noite translúcida pelo cetim e pela seda. O poeta imaginava o seu próximo trem, qual vagão e qual visita. Enobrece a alma o vinho. Se tenho muita matéria em que me apoiar, foi porque fiz tudo em prazer e um misto de alegria e dor. Pois, a penumbra não compromete a minha paisagem, nem muito pode contra o sol que desenhei. O poema tem astúcia, ninguém governa seu galardão. 

Se observava na viagem dos degredados estes silvícolas que murmuravam rezas inauditas, um trovão tomou de posse uma entidade que parecia uma caveira, e urrava na madrugada chuvosa diante de uma fogueira protegida por folhas de palmeira, e gritos tribais cercando a cena como numa viagem dos descobridores. Anotei esta passagem em meu caderno, era seção 3.2, capítulo 9, onde eu falei do mundo selvagem que a veia literária deixara escapar ao beijar o mármore e seus sulcos, beijar os balaústres e suas abóbadas, e toda uma gama de florilégios, floreios, rame-rames de arpejos, veios talhados para dândis frufrus etc. Todo o magma ainda vivia sob a crosta, a borbulhar no manto, com sua fúria primal.

Fumava meu ópio diante da nau, e via na minha parede a moldura que sustentava uma escopeta. Objetos de caça, facas, adagas, uma coleção de relíquias, e um cheiro de pólvora na qual matei algozes e sabujos no poder de minha máquina. Escrevo a sorte, debulho este sequioso canto de verdor, e o jardim da delícia está qual éden em seu encanto, vendo o porvir em sabores solares, como na harmonia de um cântico. 

Tânatos ainda provocava seus dissabores, toda a aleivosia e a perfídia dos mendazes reinavam nos capitólios e assembleias, tomada por uma turba amarfanhada entre o butim e o fausto fátuo do poder. Eis o reino : seu ídolo, sua matilha, sua alcateia, seus mártires e seus bobos. Um reino de bazófia blasonada entre os mui amigos e inimigos fatais. 

Veio a turbamulta que é uma malta na mamata dos nababos aos borbotões, a fazer da terra uma morte de sal e provocar a devastação dos sonhos em que esta terra teria um dia sido fundada. Se perdeu no tempo o códice em que se registrou como na pedra angular os valores que foram tolhidos na famélica escala da ganância. Esta escala astronômica de uns pavões escalafobéticos. Monumentos do mau gosto de uma elite rebuscada, com cheiro de castiçal e mobília de mogno. A fazenda fundamental em que a demência virou virtude. E as colunatas lívidas de uma paródia da Hélade. “Bullshit”, como dizia o poeta boêmio que bebia.

Deixe esta lamúria azinhavre, destes derrotados na lona, que choram a própria frouxidão, com os ossos que doem mais que a ressaca moral de seus ardis manjados e exterminados. O poema tem com a poesia este fulgor de prorromper os rios e seus cursos, de fluxos como decisões que correm em sua correnteza, impassível, e que se destina ao mar.

Os livros escritos na nova era, pois, ainda estão na confecção, qual a nuvem de prata que ainda nasce, mas já vive e respira. O tempo diz coisas, e a confiança na plenitude dos desígnios é como saber que “Ele” está morto, subjugado e derrotado, sob os pés da Arte. Eis a inveja e sua sevícia, e o suplício necessário da magia negra. Pois bem, haja confetes na saída, ao mar que me liberta e me salga, ao horizonte que meus olhos se acham ao invés de se perderem, horizonte da vida a ser vivida, de um poema a ser escrito, de uma galhardia talhada no desassombro da certeza.


Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Data : 03/10/2023 Poema em Prosa 


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