“O que lemos neste relato sui generis de Herzog é de como um
sonho maluco pode enfrentar tanta adversidade”
Werner Herzog volta de Manaus para Iquitos, ele sente a
sensação de ter que continuar com algo que saía do controle, que logo não seria
administrável. As incertezas povoavam a cabeça do cineasta, ele tinha dúvidas
sobre atores, a ideia de um navio montanha acima, o novo acampamento, o tamanho
todo do empreendimento e sua organização, a questão do envolvimento dos índios
na filmagem, o problema financeiro, e mais uma lista de coisas. E ele, por fim,
vê do avião, ao retornar a Iquitos, o tamanho colossal da floresta, toda a sua
vastidão.
Herzog, neste contexto, entre suas várias preocupações,
recebe notícias ruins de Cuzco, por parte de César Vivanco, nesta cidade havia
documentos na burocracia sobre o rio Camisea que Lima não reconhecia. Em
Iquitos, todos que trabalhavam junto com Herzog se encontravam exaustos, os
figurantes não apareciam, e no relato de Herzog, ele diz que Izquerdo vomitou o
dia todo, houve novo posicionamento acerca dos processos, o que reanimou
Herzog, contudo, ainda não tinham sido assinados os contratos de Robards e
Jagger.
Nestes dias estranhos, temos aqui o relato de Herzog sobre o
clima que no qual estava envolvido : “Dia parado, úmido. Inação combina com
inação, nuvens nos encaram, grávidas do céu, a febre domina, larvas crescem
assumindo formas gigantescas. A floresta é obscena. Tudo é pecado, por isso o
pecado não se destaca como pecado. As vozes da selva estão caladas, nada se
move, e sobre tudo paira uma fúria lenta, imóvel. As roupas no varal não querem
secar. Como se houvesse um acordo secreto, as moscas se reúnem, as barrigas
inchadas e brilhantes, repentinamente sobre a mesa.”
E Herzog nos dá uma visão geral de como se dão estas
condições sui generis de sua filmagem e de como as coisas se dão, neste
contexto : “Nos pouco dias em que estive ausente, os figurinos e equipamentos
pareceram se desintegrar assim como, segundo Uli, toda a produção, já que W.,
totalmente desorientado, parece só enxergar o navio. Além disso, ele perdeu
toda a visão de conjunto e perspectiva. Aconteça o que acontecer, quero tentar
não adiar o início das filmagens, psicologicamente isso seria catastrófico.
Como para o general Patton, só uma coisa importa : mais para a frente as coisas
se ajeitam; organização, logística e tudo o que é secundário vai se adequar à
dinâmica.
E, aqui, dou a palavra novamente para Herzog, que continua
seu relato espantoso : “Ainda não há eletricidade. A noite caiu sobre a terra.
O que aconteceria se a floresta murchasse como um ramalhete de flores? À minha
volta morrem insetos; para morrer, eles se deitam de costas. (...) A correnteza
em alguns malpasos diante do rio
Camisea parece ser forte demais para o nosso barco. “Então boa noite”, ribomba
em minha cabeça como se fosse um sino, e, para acompanhar, raios ricocheteiam
acima das silhuetas das árvores, Henning deveria chegar esta noite com algum
dinheiro, mas fiquei sabendo que ele só vai chegar no sábado.
Não temos mais nada aqui, e o problema é que alimentos
precisam subir o Camisea urgentemente, aparelhos precisam ser providenciados em
Lima e os empregados precisam ser pagos. (...) Ao ser chamado ao telefone na
casa em frente, caí da escada que leva à minha cabana. Foi um daqueles
telefonemas estranhos que perguntavam por nós, em que alguém que eu não
conhecia tentava me explicar que eu era um maluco, um perigo para o público.”
Segue o relato : “Aniversário de Henning. Caos nos figurinos.
Izquerdo, com quem Gisela gritou em alemão, pediu demissão no mesmo instante;
pelo menos ele vai estar em casa no Natal. Bill Rose, ao que tudo indica,
bêbado, passou de Miami um telegrama desconexo, com rudes ofensas a Alan
Greenberg e sua demissão – no entanto, ele nem começou a trabalhar conosco.
Alan mandou me dizer que B. lhe telefonara sem motivo e sem aviso, ameaçara-o
de morte e demonstrava confusão mental.
No campo, em Camisea, armou-se uma terrível tempestade. O
temporal arrancou árvores gigantescas, que destruíram completamente algumas
casas. Em uma peça teatral que foi recentemente encenada pelos impetradores do
tribunal contra mim, em um teatro estudantil e contando com a participação de
alguns índios de Cenepa, segundo Henning, eu sempre apareço com um charuto
enquanto filmo, e o que escapou à atenção de todos foi que até agora eu ainda
nem filmei. Tudo isso faz parte dos arabescos diários.”
Mick Jagger chega a Iquitos, parece meio deslocado, suas
malas não haviam chegado, ele as enviou a “I-Quito”, está bem humorado, e diz
que Robards e Adorf “lhe confessaram que haviam escrito seu testamento, afinal
iriam trabalhar na selva.” E Herzog segue enfrentado problemas enormes, no que
segue seu relato : “Nosso iluminador fez um gato, de maneira audaciosa e
visível para todos, no cabo elétrico principal lá fora na frente do novo
quartel dos equipamentos. Tudo lá passou a ter energia elétrica de repente. A
companhia elétrica nos prometeu, durante semanas, todos os dias, que faria a
ligação – nunca mandou ninguém.
Caos no México, assim do nada. A agente de lá dispensou todos
os atores e membros da equipe, anulou os contratos e afirma que o fez depois de
um telegrama nosso. Lucki pega o avião ainda hoje de Miami para o México para
colocar as coisas em ordem de novo. Com atraso, o Caterpillar vai ser
despachado de navio do porto de Miami; ele deve seguir de lá para Lima/Callao e
depois, por terra, para Pucallpa até o rio Ucayali, e daí em uma chata pelos rios Urubamba e Camisea. Em
termos de prazo, isso pode significar uma catástrofe.
Durante dias, o carregamento com os holofotes e a câmera
tampouco pôde ser encontrado, já que não foi possível o avião não pousar em
Iquitos, em razão de uma tempestade, e teve de voltar para Lima. Lá eles
descarregaram tudo, então um avião quebrou e depois tudo ficou preso na
alfândega, porque a companhia aérea Faucett não conseguia mais achar os Airway
Bills. Os brasileiros, atores e equipe de som, vão chegar atrasados, porém :
rio acima o Narinho II navega mais rápido do que pensávamos, e mais : dizem que
a greve geral deve ser cancelada.”
Aqui se desenha a sensação de caos e descontrole que Herzog
teve nesta sua ideia de filmagem, ao partir para a sua realização, talvez algo
sem precedentes na vida de um cineasta, pois dispensou toda técnica de estúdio
e decidiu enfrentar a maior selva do mundo, a vasta floresta amazônica, um
relato que, como disse nos textos anteriores de Conquista do Inútil, revela uma
mistura curiosa de romance naturalista com temas práticos de nuances da direção
de cinema.
O que lemos neste relato sui generis de Herzog é de como um
sonho maluco pode enfrentar tanta adversidade, quando as coisas se dão, e hoje
o filme Fitzcarraldo ser um objeto cult e o livro de Herzog um documento não
apenas de curiosidades naturalistas, como muitas vezes pontuei em meus textos,
mas uma realidade bem objetiva da vida na floresta, e também, o mais importante, o documento de uma filmagem
e das impressões de um cineasta em seu trabalho.
(continua)
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/conquista-do-inutil-o-caminho-complexo-de-herzog-para-realizar-fitzcarraldo
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