“quanto ao cético do acaso, ele chama destino de delírio e
acaso de nada.”
Duas palavras opostas, de certa forma antagônicas, destino e
acaso lutam como duas faces de um jogo na escrita do mundo, uns se aferram ao
certo de que o destino traça e já traçou tudo, como uma grande linha reta e
racional, aonde vale o escrito acima de tudo, e tanto sabe, que sabe e saberá
do futuro, recorrendo até mesmo a um complexo de bola de cristal, pois para
isso temos as cartas do tarô, seja este de Marselha ou cigano, temos as runas e
também o jogo de búzios, e quanto ao acaso, este é subversivo, teimoso e do
contra, vamos a ele também.
O acaso é o dogma dos céticos, o universo visto por alguém
que crê na imagem fiel da descrença, portanto, é este devoto do que nada se
sabe, o devoto do acaso, seja ele ateu, agnóstico ou cético. O acaso funciona
para este tipo de postura mental como um certificado de segurança de que tudo
pode acontecer, o reino da necessidade de um Spinoza ou de uma harmonia
preestabelecida de um Leibniz aqui soçobram frente à ferocidade de um jogo de
probabilidades de um empirista radical, e seu nome é David Hume.
O destino tem uma elegância, joga com os elementos do mundo
de forma combinada, o acaso é caótico, gosta de improvisar, entende o mundo
como abertura radical em que cabe tudo e em que, por outro lado, nada nem
ninguém faz sentido, para o partidário do acaso vale tudo, o jogo é feito por
quem joga e não por um ente oculto que na mitologia eram as parcas do destino,
tecendo a sorte e o revés, e que no cristianismo ganhará o nome de
predestinação. O acaso é um revolucionário que diz ao destino que ele só se dá
com o que já aconteceu, o que virá é sempre um susto ou até um surto, o caos
das decisões humanas estão imbricadas no nada, e nada faz sentido para o acaso.
Quanto ao ler o futuro nas cartas ou nas pedras, ou ainda em
conchas, esta é a tentação dos que creem no jogo de sorte e revés e diz que o
mundo tem olhos ou um olho que tudo vê e que já sabe de tudo de antemão, ao
contrário do acaso que é cego e diz que o mundo é cego e no extremo é como um
gênio maligno que nos leva à demência, ou ainda tem como resultado a
desistência do jogo, que é quando na Antiguidade um cético pirrônico suspende o
seu juízo sobre as coisas e afirma que a palavra verdade é inútil, pois esta não
existe no mundo em que vivemos, e até mais, tanto este mundo não faz o menor
sentido, como pior, não existe outro mundo.
E, voltando à leitura do futuro, quando falamos de destino,
este só nos é evidente na perspectiva fácil do que já ocorreu, isto é, com as
coisas que já se sucederam, pois estas se encaixam com mais facilidade no que
damos o nome de destino do que o que se sucederá, pois a certeza do sido é mais
evidente e joga mais fácil com a palavra e conceito destino do que a incógnita
do futuro e, portanto, quando o destino quer ser um caminho de decifração do
futuro, queremos providenciar a mesma evidência e sentido que temos de nossa
experiência pretérita e até presente para o futuro.
Por sua vez, no destino visto pela adivinhação estamos diante
de um futuro que também é fruto da necessidade e que é tecido matematicamente
por parcas plenamente conscientes do que estão fazendo, e no jogo de
adivinhação este futuro tem a mesma evidência de uma experiência pretérita já
bem processada como sentido, pois para o destino, tudo faz sentido, e no
extremo o crente das parcas é tão poderoso que pode ver o que quiser.
Quando um adivinho abre as cartas de um Tarô de Marselha, por
exemplo, o sentido é depreendido de uma combinação já preestabelecida, o
destino precisa da harmonia dos elementos, o destino através da leitura do
futuro quer dar nome aos elementos e dizer que eles são uma consciência viva,
vivíssima, que faz tudo funcionar com uma estética que é como de um universo
esférico, e é tão perfeito que, o destino, este desejo de saber o todo de todo
jeito, este é o desejo.
Destino, desejo, pois o jogo de adivinhação é uma combinação
do desejo do consulente com a palavra destino embarcando na sua viagem que tem
no consultor mais um condutor de seu desejo, satisfação e frustração, como a
aritmética do destino que vê através de adivinhações milenares o segredo do
mundo, ou melhor, o feitiço do tempo, e o anseio é respondido, pois para o
crente do destino esta é a única resposta que ele admite, senão está perdido.
Quanto ao acaso, na senda radical de sua suspensão do juízo
de verdade, joga mais com o erro e o susto, gosta do improviso e da combinação
aleatória de sucessos e fracassos, estes como frutos de um livre-arbítrio que
joga cego no seu caminho em que tudo cabe e nada faz sentido. Até mesmo no
determinismo biológico e evolucionista, nas teorias sociais em que a pessoa se
forma e se comporta pelo seu contexto, o acaso, mesmo assim, tem mais força do
que uma visão religiosa de predestinação.
Pois, para o cético o jogo cego do acaso comanda até mesmo
mecanismos evolucionários, adaptações ao meio, caminhos da espécie, pois aqui
não temos o comando de nenhum Deus ou panteão de deuses, e muito menos de
parcas, a natureza aqui não nos dá um sentido absoluto, não dá socorro, o susto
continua, o acaso conduz a natureza sem deuses e cegamente até mesmo em
possíveis continuidades biológicas e sociológicas, pois o reino do acaso não
prevê as regras, as coisas acontecem desta maneira e não de outra por adaptações
naturais que não recebem influxo ou centelha de nada que crie o universo
inteligentemente, as coisas simplesmente são e são como são.
Num terceiro ponto, tentando quase inutilmente jogar
simultaneamente com destino e acaso, e isto com a palavra futuro, uma vez que
as coisas são como são, temos que talvez não nos caiba chamar isto de moira
(destino) ou acaso, isto é, dar o nome de Deus e necessidade ou de nada, mas
por serem coisas, são coisas simplesmente, um sendo todo e qualquer ao mesmo
tempo. Por conseguinte, num nível subatômico vemos o mundo se desmanchar em
ondas e partículas (o que seria vários pontos a favor do acaso), e de outro
lado jogar com sincronicidades junguianas (um destino que estaria no
lusco-fusco de uma lógica combinatória de coincidências), seja destino (Deus)
ou acaso (nada), prefiro chamar de sucessão, tempo, natureza, sociedade, psiquê,
tudo junto, num grande jogo em que necessidade e improviso são a mesma coisa.
Estamos diante de um jogo duplo entre a ideia de
predestinação e a ideia de um improviso puro e bruto em que se tem toda gama de
matizes, de sentidos e faltas de sentido, de coisas em que tudo se encaixa
(desejo de destino) e em que nada se encaixa (a frustração do acaso), dando o
crente do destino a palavra destino como sinônima de sorte, e à palavra acaso
como sinônimo de azar, e quanto ao cético do acaso, ele chama destino de
delírio e acaso de nada.
O crente do destino, no extremo, acha que tem uma missão no
mundo, e se torna messianista, sua missão é espiritual, e seu destino é sua
missão, como missionário ele diz que aquele que joga com o acaso é louco,
herege, ímpio, quanto a este, o cético do acaso, ele vê na missão espiritual um
delírio, e também vê esta missão como uma megalomania que tem o nome destino,
que no consultório psicanalítico, por sua vez, será desejo e inconsciente.
A missão é daquele que deseja escrever a sua missão, mas ele
é um fervoroso desejante, mais do que sua fé, ele tem em seu desejo a sua
certeza, e o destino dele é o de um missionário, sendo aqui o messianismo o dom
visionário em que o desejo do homem imortal quer tudo e pela fé tem esta
certeza, a fé impõe a sua certeza, “evangeliza”, e sua certeza é sua missão, o
destino aqui é o extremo ao qual este pode chegar, ao qual damos o nome de messianismo.
Quanto ao cético do acaso, seu desejo está no mundo, o mundo
da vida, na sua simplicidade, ele é um filósofo do prosaico, ou melhor, ele é
um cronista e não um filósofo, ele é um cronista que vive seu cotidiano e se
faz como pessoa neste cotidiano, sua indagação foi diluída, não se tem vida
após a morte, imortalidade da alma, iluminação espiritual, e muito menos
destino, ele até mesmo pode se livrar de qualquer reino da natureza, seja este
reino até mesmo a teoria evolucionista, e viver num grande caos, pulando
carnaval, e tudo terminando na quarta-feira.
Gustavo Bastos, filósofo e escritor.
Link da Século Diário : http://seculodiario.com.br/36921/14/destino-e-acaso
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