PEDRA FILOSOFAL

"Em vez de pensar que cada dia que passa é menos um dia na sua vida, pense que foi mais um dia vivido." (Gustavo Bastos)

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Internet e sistemas complexos - 6

“problemas não são isolados, mas reflexo de uma concentração de comando”

O processo de desmembramento das big techs, mesmo se for efetivado realmente, ainda seria algo que duraria décadas para ser concluído. Deste modo, na visão de uma internet renovada, embora o processo de desgarramento destas empresas seja longo, o fornecimento de uma interoperabilidade robusta e obrigatória já abriria o caminho para a renovação e diminuiria o fluxo financeiro das big techs e seus movimentos de aquisições e domínios.

Um dos meios de interoperabilidade é o de guerrilha, que se dá por engenharia reversa, bots, raspagem e demais táticas não autorizadas, e que passou a ser chamada de “comcom” ou compatibilidade competitiva. Tal tática era a forma que as pessoas descobriam tanto para reescrever softwares como para conserto de carros etc. Depois foram publicadas uma série de leis na tentativa de sufocamento destas iniciativas.

A comcom opera como diversidade tática, em contraste com o pensamento de curto prazo que abriu caminho para uma oligarquia na internet. Na UE (União Europeia) os mandatos de interoperabilidade já possuem vários anos de experiência, junto a um conhecimento de como as big techs tentam driblar tais limitações. Nos Estados Unidos, por sua vez, esta interoperabilidade ainda está restrita a softwares de videoconferências.

Junto à necessidade de iniciativas regulatórias corajosas, com uma visão avançada sobre estratégias de litígio, estas devem vir acompanhadas de políticas governamentais que favoreçam a competição, sobretudo em infraestrutura física, investimentos e aquisições. Mais uma medida poderá vir das universidades ao recusar o financiamento de pesquisas por parte de big techs, pois há sempre uma lista de condições, enviesando todo o processo.

Em face desta recusa de pesquisas condicionadas pelas big techs, as universidades devem ter pesquisas tecnológicas financiadas publicamente e com resultados divulgados também publicamente, aproveitando o ensejo para uma investigação sobre a concentração de poder na internet, e de como recuperar a diversidade do sistema. 

Para tal, por sua vez, deve-se ter o apoio a iniciativas que permitam a gerência de recursos comuns, na criação de redes comunitárias, dentre outros meios de colaboração, no fornecimento de bens públicos como água potável, estradas e defesa, por exemplo, que são bens essenciais. 

Visto que os problemas não são isolados, mas reflexo de uma concentração de comando e de controle da internet, um dos meios mais fortes que temos para debelar este poder das big techs é a participação agressiva do Estado de Direito para equilibrar estas relações de poder e de riqueza empresarial, acabando com as lacunas e optando pelo melhor caminho. 

Por sua vez, nas SDOs (organizações de desenvolvimento de padrões), que eram abertas e colaborativas, ainda quando foram criados os protocolos e padrões técnicos que formam a infraestrutura da Internet, agora estas recebem controle de algumas empresas, em que padrões que parecem espontâneos são, na verdade, resultado de escolhas comerciais de grandes empresas.

Tal controle acaba moldando também a pesquisa na internet, que virou um monopólio global, prejudicando a credibilidade das SDOs, o que pode provocar a perda do mandato global destas para a administração da internet no futuro. Existe, portanto, uma necessidade de uma mudança radical das SDOs, com padrões de internet abertos e globais, pela costura da interoperabilidade, que cria um tecido mais resistente e que protege contra a fragmentação e o domínio perene.

Um exemplo recente de tática antimonopólio veio da Califórnia, em 2018, com a aprovação da Lei de Privacidade do Consumidor da Califórnia, dando o direito aos consumidores californianos de optar por não vender ou compartilhar dados pessoais ao visitar sites da internet, com uma opção de controle de privacidade global que podia ser habilitada pelo usuário, o chamado sinal GPC.

Foi com esta inovação técnica independente, que era um método automatizado de controle de dados pessoais, o GPC, que se abriu caminho para soluções técnicas de controle de dados pessoais por parte de usuários, sem precisar recorrer a instâncias jurídicas de direitos autorais ou de privacidade. O GPC automatiza, para os residentes da Califórnia, a solicitação de aceitar ou rejeitar a venda de seus dados, como o rastreamento baseado em cookies nos sites. 

Contudo, especialistas ainda estão conduzindo uma especificação técnica através do desenvolvimento de padrões globais da Web no World Wide Web Consortium, ao passo que o GPC ainda é incompatível com navegadores como o Chrome e o Safari, levando um tempo para a sua adoção ampla, para que possa, de fato, virar uma prática antimonopólio na pilha de padrões.

Por meio de acordos financeiros opacos entre os mecanismos de busca e os navegadores temos uma padronização enviesada que oferece pouca transparência para os principais provedores de infraestrutura da internet. Por sua vez, os navegadores são peças de infraestrutura de alta complexidade que indicam o caminho de uso da internet para bilhões de usuários da Web, com fornecimento gratuito. 

Por fim, são os mecanismos de busca que deveriam ser cobrados por uma taxa pelos governos para a manutenção dos navegadores e outras infraestruturas da internet, com um financiamento transparente, através de uma supervisão multissetorial, transnacional e aberta. Como espaço em que se cria conhecimento e no qual opera a inteligência planetária, a internet pouco permite de inovação por estar concentrada e sendo tomada por hostes tóxicas e disfuncionais.

O rewilding da internet, por fim, implica em iniciativas de regulamentação, definição de novos padrões e de novas formas de organização e edificação de infraestrutura, através de compartilhamento de estratégias, segundo a tática de interoperabilidade, criando este novo feixe de interrelações mais resilientes, de diversidade, abertura e liberdade, nesta internet renovada, com o fim do extrativismo de uma monocultura tecnológica comandada por big techs.

(continua)

Gustavo Bastos, filósofo e escritor.

Blog : http://poesiaeconhecimento.blogspot.com 


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